24 Outubro 2024
Em 2015, Gutiérrez publicou na Itália o livro “Perché Dio preferisce i poveri” (Por que Deus prefere os pobres). Reproduzimos aqui um breve trecho.
O artigo é de Gustavo Gutierrez, teólogo peruano e sacerdote dominicano, considerado por muitos como o fundador da Teologia da Libertação, publicado por L'Osservatore Romano, 23-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde o alvorecer do cristianismo, surgiram duas correntes fundamentais de pensamento em relação à pobreza; ambas podem ser ligadas aos Evangelhos e ao testemunho de Jesus Cristo. A primeira se concentra na sensibilidade de Jesus para com os pobres e seu sofrimento. De acordo com Jesus, os pobres vinham em primeiro lugar: crianças, mulheres, prostitutas e doentes. Portanto, seguir Jesus significava estar aberto aos pobres e empenhar-se para fazer algo para aliviar a condição escandalosa em que eles eram obrigados a viver. A segunda linha de pensamento que deriva do Evangelho, por outro lado, é que o próprio Jesus tinha vivido uma vida de pobreza e que, portanto, os cristãos, desde sua origem, entenderam que, para serem discípulos, eles também de alguma forma teriam que viver uma vida de pobreza.
Ambas as correntes de pensamento são verdadeiras e evangélicas.
Entretanto, devemos interpretar essas duas perspectivas a partir de nosso próprio contexto histórico e de nossa vida.
De certa forma, a primeira perspectiva é encontrada na versão de Lucas das Bem-aventuranças: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus” (6,20). A segunda perspectiva está mais próxima do pensamento de Mateus: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus” (5,3). Acredito que ambas as linhas de pensamento – a pobreza como escândalo e a pobreza de espírito – possam ser úteis para nós, embora seu significado precise ser atualizado para nosso período histórico. Há cerca de um século, surgiu uma nova noção de pobreza. Essa noção tem múltiplas raízes. Uma delas diz respeito à complexidade da pobreza e sua diversidade. Quero dizer com isso que a pobreza, na Bíblia e na nossa época, não é uma questão meramente econômica. A pobreza é muito mais do que isso. A dimensão econômica é importante, talvez primária, mas não é a única. Há outras: cultural, racial, étnica e de gênero, para citar apenas algumas.
Portanto, quero deixar claro que, quando falo sobre pobreza e pobres, não estou falando apenas em nível econômico. Esse último aspecto é importante, mas é, de fato, apenas um aspecto.
A pobreza foi claramente o ponto de partida da teologia da libertação, mesmo que não havíamos compreendido totalmente sua complexidade ou variedade. Neste nosso tempo, as agências internacionais como o Banco Mundial, por exemplo, estão discutindo o conceito da multidimensionalidade da pobreza. O termo usado é difícil, mas a ideia é a mesma. A multidimensionalidade aparece nos relatórios sobre a pobreza no mundo.
Por esse motivo, no contexto da teologia da libertação e apesar de nossas limitações, o conceito de pobreza que havíamos desenvolvido originalmente continua válido até hoje. Nós nos referíamos aos pobres como não pessoas, mas não em um sentido filosófico, pois é óbvio que todo ser humano é uma pessoa, mas em sentido sociológico, ou seja, os pobres não são aceitos como pessoas pela nossa sociedade.
Eles são invisíveis e não têm nenhum direito, sua dignidade não é reconhecida. Nós também os definimos como “insignificantes”.
Insignificância, invisibilidade e falta de respeito são o que os pobres têm em comum. Ao mesmo tempo, essas complexidades comuns são diferentes entre si. O sentido de não pessoa pode ser causado por vários preconceitos: raciais, de gênero, culturais, econômicos e assim por diante. A característica comum aos pobres em nossa sociedade é simplesmente se sentir e ser invisíveis e insignificantes.
Outro ponto importante e relativamente recente é que a pobreza hoje é um fenômeno da nossa civilização globalizada. Durante séculos, os pobres foram mais ou menos nossos vizinhos, vivendo ao nosso lado na cidade e no campo. Entretanto, hoje percebemos que a pobreza vai muito além do nosso olhar, é um fenômeno global se não mesmo universal. Isso é importante porque, se lermos os livros de espiritualidade, de moral ou de liturgia do passado, vemos imediatamente que, quando os escritores abordavam a questão da pobreza e a obrigação moral de cada um em relação a ela, falavam somente de como ajudar diretamente o pobre, aquele que estava perto de nós, que era nosso próximo.
Hoje, ao contrário, devemos nos dar conta de que nosso próximo é aquele que está tanto perto quanto distante. Devemos entender que a relação de “vizinhança” é o resultado de nosso empenho.
“A verdadeira pobreza tem a ver com ... aqueles que não contam nada, aqueles que são insignificantes, por razões econômicas, mas também por cultura, idioma, cor da pele”.
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Por que Deus prefere os pobres. Artigo de Gustavo Gutierrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU