Uma entrevista perdida nos arquivos, em que o grande conservacionista fala da interligação entre as alterações climáticas e a biodiversidade, além do valor da natureza que vai além de sua capacidade de armazenamento de carbono.
O artigo é de Gustavo Faleiros, cofundador da InfoAmazonia e editor de Investigações Ambientais do Pulitzer Center, publicado por InfoAmazônia, 21-10-2024.
“Valorizar a floresta apenas por seu carbono é provavelmente o mais baixo valor de que se pode atribuir à biodiversidade. É como valorar um chip de computador apenas por seu silício”.
Ouvi essa frase em agosto de 2016 de ninguém menos que Thomas Lovejoy, o famoso ambientalista e biólogo que influenciou gerações de conservacionistas na Amazônia e no mundo. Como defensor da natureza, ele também falou ao pé do ouvido de muitos poderosos, tendo sido conselheiro dos presidentes americanos Ronald Reagan, George Bush e Bill Clinton.
“Tudo está compreensivelmente muito focado nas alterações climáticas. Mas a biologia do planeta e as alterações climáticas estão intrinsecamente interligadas. Em Paris, foi muito encorajador ver [a meta] de 1,5ºC emergir. É um objetivo muito mais seguro do que 2ºC. Há outro aspecto muito importante de tudo isto, que é o fato de haver tanto excesso de CO2 na atmosfera. Séculos de destruição e degradação dos ecossistemas”, disse.
Para ilustrar o valor da biodiversidade, Lovejoy deu um exemplo surpreendente, ainda mais se considerarmos que ele falava sobre isso antes da pandemia de Covid-19. O exame de PCR, tão fundamental para os diagnósticos da doença, foi desenvolvido graças à descoberta de uma enzima produzida pela bactéria Thermus aquaticus, que sobrevive a altas temperaturas nas fontes termais do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos.
“Este pode ser o exemplo mais extremo de que me lembro, mas esse tipo de coisa está sempre a acontecer, e os benefícios para a humanidade são enormes. Defender a conservação da biodiversidade também tem um aspecto ético e moral. Todos os organismos vivos hoje têm um pedigree que remonta a 3,7 bilhões de anos”.
Encontrei-me com Lovejoy na conferência global da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), realizada em Honolulu em 2016. A reunião da IUCN, uma das ONGs ambientais mais antigas do mundo, reunia grandes ícones da conservação. Estavam presentes E.O. Wilson, considerado um dos pais do termo biodiversidade; Jane Goodall, a pesquisadora que abriu novos caminhos na primatologia; Russell Mittermeier, também primatólogo e influente conservacionista; além de outras estrelas.
Muitos brasileiros, ambientalistas e pesquisadores, seguiram os passos de Lovejoy. Ele atuou na Amazônia desde os anos 1970 e desenvolveu estudos pioneiros sobre os impactos do desmatamento na biodiversidade da floresta. Seus experimentos na Reserva Ducke, em Manaus, sobre a fragmentação florestal, ainda hoje estão ativos e permitem compreender a importância dos corredores para a biodiversidade, bem como o sinistro impacto da construção de estradas na floresta amazônica.
Sua contribuição mais recente ocorreu ao lado do climatologista Carlos Nobre, com quem se tornou um dos principais expoentes da teoria do ponto de não retorno na Amazônia. Em um artigo de fevereiro de 2018, Lovejoy e Nobre descreveram o que significaria a quebra do ciclo hidrológico na Amazônia e como a chegada de um ciclo vicioso de seca e queimadas poderia transformar a floresta tropical em uma grande emissora de gases de efeito estufa.
Lovejoy nos deixou em dezembro de 2021, e até este momento eu não tivera a oportunidade de publicar esta entrevista. Imagino agora o que ele diria sobre as duas secas recorde que tivemos neste ano e em 2023. Na conversa de 2016, ele me pareceu otimista ao dizer que havia “uma oportunidade” no fato de entender que “um sistema de grande escala” como a Amazônia poderia se quebrar e que isso nos impulsionaria a agir.
Confesso que me arrependo de ter mantido esta entrevista guardada por tanto tempo. Uma dessas coisas que acometem os jornalistas: guardar material na gaveta e não encontrar tempo para publicá-lo. Foi realmente um privilégio ter estado com ele por 45 minutos, entrevistá-lo e falar abertamente sobre sua visão da conexão entre as crises do clima e da biodiversidade.
Nesta semana, em que começa em Cali, na Colômbia, o 16º Encontro das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Biodiversidade, a COP16, resolvi olhar novamente o arquivo da entrevista, e o que encontrei foi realmente incrível. Nossa conversa foi, em grande parte, ditada por um artigo que ele havia publicado com o Guardian, e que, infelizmente, não está mais disponível. No texto, ele criticava a redução do tema da conservação das florestas e de outros ecossistemas diante do esforço concentrado dos governos e ONGs para resolver a crise climática.
“A natureza global é feita de pequenos pedaços. Paisagens dominadas pelo homem. Temos de pensar nessa paisagem mais alargada e criar incentivos para que os indivíduos façam o que está certo. E restaurar a vegetação ripária”, ele afirmou.
Lovejoy, junto com E.O. Wilson, também falecido em dezembro de 2021, foi um grande bastião da agenda da biodiversidade. Antes de suas partidas, suas ideias estavam muito alinhadas sobre o momento crucial para impulsionar a conservação de grandes áreas naturais. Wilson, em um manifesto um pouco mais contundente, defendeu em seu livro “Half Earth” que 50% das paisagens naturais do planeta deveriam ser reservadas para a conservação. Já Lovejoy defendeu a ideia de algo em torno de 30% e influenciou a agenda de expansão de áreas protegidas marinhas.
Mas o ponto principal que me marcou foi sua esperança de que as pessoas iriam entender melhor o desafio que temos pela frente se ficassem mais próximas da natureza. Assim como foi — se não um dos inventores, pelo menos um dos grandes propagadores do termo biodiversidade — Lovejoy se tornou um dos pensadores a espalhar o lindo conceito da biofilia, ou seja, o afeto que desenvolvemos por outras espécies, pelos ecossistemas e pela vida além da vida humana.
“Parte do problema é que a maior parte das pessoas não tem consciência de outras espécies. Isso se deve ao fato de sermos primatas sociais, de nos interessarmos muito uns pelos outros e de nos esquecermos de todo o resto (…) O futuro da humanidade é, na verdade, muito melhor se o partilharmos com o resto da vida na Terra”.
A COP16, que ocorrerá nas próximas duas semanas, parece ter enorme potencial para ser um marco na discussão sobre a biodiversidade como elemento central para um mundo mais justo. A Colômbia, assim como o Brasil, é um país megadiverso e também refém de enormes problemas sociais e econômicos. O foco que tem sido explorado pela presidência do encontro, encabeçada pela ministra do Meio Ambiente daquele país, Susana Muhamad, é buscar soluções baseadas na natureza. Seus discursos recentes ressoam as ideias que escutei de Lovejoy: a humanidade precisa fazer as pazes com a natureza.