23 Outubro 2024
Boa pessoa, 'pai da teologia da libertação' e mártir da causa
O artigo é de José Manuel Vidal, doutor em Ciências da Informação e licenciado em Sociologia e Teologia e diretor do Religión Digital, publicado por Religión Digital, 23-10-2024.
Pequeno (creio que não chegava a um metro e meio de altura), com grandes espetáculos e feições indígenas, Gustavo Gutiérrez (Lima, 1928-2024) revolucionou as águas da teologia neoescolástica, já agitada pelo Concílio Vaticano II, ao publicar, em 1971, sua obra “Teologia da Libertação”. Foi o início de uma corrente de teologia e teopráxis que semeou uma onda de esperança nas massas desfavorecidas da América Latina e de desconfiança na Cúria do Vaticano.
Gutiérrez foi um pensador extraordinário, um pioneiro e um profeta que soube encarnar a mensagem do Vaticano II na realidade dos oprimidos e colocar a Igreja diante da inevitável situação da “opção preferencial pelos pobres”, se quisesse permanecer fiel à ideologia de Jesus de Nazaré. E como todos os profetas ele pagou um alto preço pela sua audácia.
Além de poder entrevistá-lo e assistir a algumas de suas conferências, tanto na Espanha como na América Latina, tive a sorte de poder compartilhar uma semana inteira de convivência diária com ele e com mais de 45 teólogos da América Latina, o EUA, Quebec e Espanha no I Encontro Ibero-Americano de Teologia. Uma experiência de profunda comunhão, de grande profundidade intelectual e humana, num clima de cordialidade e amizade, de intercâmbio e unidade na diversidade. Por esta razão, os organizadores, os teólogos venezuelanos Rafael Luciani e Félix Palazzi, quiseram chamá-lo de Primeiro Encontro Ibero-Americano (não Congresso) de Teologia.
Naquele clima partilhávamos missas, orações, refeições e lanches. Todas as noites, após o jantar, um dos participantes era escolhido para contar aos presentes suas experiências, suas vivências e o que lhe parecesse adequado. Num ambiente descontraído, comentários e confidências surgiram espontaneamente.
Era 2017 e Gutiérrez já tinha 88 anos, mas completamente lúcido e, como figura de destaque no encontro, nós o 'obrigamos' a ser o centro da conversa depois do jantar por duas vezes. Todos olhamos para ele com respeito e admiração. Quase veneração. Como um santo da Teologia e um resistente. Dos que permaneceram no caminho da opção pelos pobres, quando esta era desaprovada em Roma. E, por isso, sofreram perseguições. E daqueles que, com a chegada de Francisco ao trono pontifício, descobriram, com enorme satisfação, que o próprio Papa reunia as suas teologias e as fazia suas.
Nas conversas, nos almoços e jantares e nas confraternizações pude descobrir um Gustavo simples, humilde, acessível, que nunca se vangloriava de nada, que participava de tudo como mais um, que ouvia a todos com atenção e que nos encantava com suas histórias , enquanto brincava com o cabo de sua bengala. Depois daquela semana de convivência, todos pudemos concluir que Gustavo Gutiérrez, além de ser uma eminência teológica, era uma grande pessoa, uma boa pessoa, um daqueles santos da casa ao lado de que fala Francisco.
Além de boa pessoa, Gustavo Gutiérrez foi o 'pai' da Teologia da Libertação. Ele foi chamado por esse nome durante toda a sua vida. E para explicar esta paternidade, sempre dizia que a TL nasceu da convergência de três processos: a situação da América Latina nos anos 60, a celebração do Concílio e a sua continuação na Conferência de Medellín.
Na década de 60, disse ele, ocorreu “a emergência dos pobres na América Latina”. João XXIII e o Concílio “falam da Igreja dos pobres”. E Medellín “faz parte, para mim, do evento conciliar”. “A LT está localizada nesta confluência de fatores e, nesse processo, eles se alimentam”, explicou.
Gutiérrez sempre quis deixar claro que, na sua opinião, o Vaticano II não foi um Concílio pastoral , como alguns tentam repetir ad nauseam na tentativa de desativá-lo. “O Vaticano II é o Concílio mais teológico de todos na história da Igreja”, afirmou.
Esta fidelidade à causa dos pobres levou-o, durante o tempo de involução eclesial, ao seu martírio incruento ao longo de todos estes anos de marginalização e tentativas de linchamento . A ‘gárgula’, como foi chamado o cardeal Cipriani em Lima, “queria eliminá-lo da presença pública eclesiástica, mas não conseguiu, porque a força dos pobres, que é a de Deus, está com ele”, explicou, na apresentação de um de seus livros, o teólogo Andrés Gallego. E, mais tarde, Francisco e até o Cardeal Müller, o antigo presidente conservador da Doutrina da Fé, reabilitaram-no.
Embora sempre tenha dito sobre isso: “Obrigaram-me a dialogar, mas nunca iniciaram um processo contra mim. Por isso, quando os jornalistas me perguntam se o Papa vai me reabilitar, ele sempre responde que não pode me reabilitar, porque nunca fui deficiente. Claro, houve muitas cartas e idas e vindas.”
Reabilitado ou não, Gustavo Gutiérrez ocupa o seu devido lugar no firmamento teológico católico e pode orgulhar-se de que, graças ao seu martírio incruento, a Igreja passou da era da involução e dos princípios inegociáveis para a da Igreja fora, casa da. pobres, vigários de Cristo.
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Gustavo Gutiérrez, o teólogo do Deus libertador. Artigo de José Manuel Vidal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU