Para Gustavo Gutiérrez. Memória grata. Artigo de Jesús Martínez Gordo

Gustavo Gutiérrez | Foto: Xaverianos.org

23 Outubro 2024

O artigo é de Jesús Martínez Gordo, doutor em Teologia Fundamental e sacerdote da Diocese de Bilbao, professor da Faculdade de Teologia de Vitoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, publicado por Religión Digital, 23-10-2024.

Eis o artigo.

Tive a sorte de conhecer Gustavo Gutiérrez (1928-2024) em diferentes ocasiões. No primeiro, dei-lhe um exemplar do livro que, escrito como capítulo da minha tese de doutorado, eu havia publicado no ano anterior: "A força da fraqueza. A teologia fundamental de Gustavo Gutiérrez" (1994). Conversamos longamente, sentados – ainda me lembro – em um dos bancos dos jardins de Albia, em Bilbao, em Espanha. Era uma tarde ensolarada e primaveril. Foi um prazer estar lá e respirar o ar que, naquela época e naqueles tempos, ainda podia ser desfrutado com tranquilidade.

O conteúdo central do encontro girava em torno da estrutura metodológica que presidiu a leitura de sua obra e a escrita do texto que ele tinha em mãos e que eu estava olhando ao apresentá-lo a ele: em sua contribuição teológica, eu lhe disse, percebo duas fases, claramente diferenciadas, mas não justapostas. Na primeira, sublinhastes o diagnóstico – naturalmente sócio-teológico – da pobreza e, consequentemente, sublinhastes a importância da libertação com os prediletos de Deus. Na segunda, continuei, prestastes maior atenção à associação de Jesus com eles e, portanto, ao encontro e à relação com Ele neste processo libertador. Esse é o sentido, esclareci, de minha defesa da existência de dois Gustavo Gutiérrezs, I e II.

Confesso que ele não estava entusiasmado com tal distinção; entre outras razões, porque soou para ele - como ele me disse - como uma ruptura e rejeição do primeiro em favor do segundo. Em seguida, indiquei-lhe, em minha defesa, que a chave para tal distinção – mas não de forma alguma, em termos de ruptura e negação, mas de continuidade e desenvolvimento – estava no que ele mesmo chamou de "o fato principal": a grande maioria dos latino-americanos são pobres e cristãos. Se um tal "fato importante", indiquei, preside a toda a sua contribuição, entendo que você priorize, em primeiro lugar, a determinação de quem são os pobres, as causas e consequências da pobreza, bem como o processo de sua libertação, a fim de prestar, em uma fase posterior, maior atenção à fé e espiritualidade dos pobres latino-americanos e ao seu fundamento teológico. Assim explicado, ele me disse, eu concordo. Tal diferenciação é correta, claramente metodológica, mas nunca teológica.

Desde então até hoje, a minha reflexão sobre este tema girou em torno de três pontos, que considero cruciais tanto na teologia da libertação como pelo seu significado na Europa Ocidental nesta primeira parte do século XXI: a importância da unidade entre fé e pobreza; o fundamento e o alcance da identificação de Jesus com os pobres e o relacionamento com Deus que brota, mesmo para os europeus, dessa identificação.

Estas são três preocupações que venho contrastando, há pouco tempo, com as interpelações que vêm das chamadas novas teologias e espiritualidades (e até ateologias), ou seja, daquelas propostas que, muito interessadas no encontro e na relação com Deus ou com o Todo na "mesmice", no silêncio ou na intimidade, acredito que negligenciam – e, às vezes, desprezam esse encontro e relação com Deus na libertação com os pobres ou na construção de um mundo mais fraterno e justo.

São três pontos que, capitalmente, devo a Gustavo Gutiérrez e ao estudo de sua obra.

Fé e pobreza

Mais de cinquenta anos depois que Gustavo Gutiérrez publicou sua teologia da libertação, permanece inegável que a grande maioria dos pobres na América Latina são cristãos, assim como são religiosos em outros lugares.

Na Europa Ocidental, diferentemente do que acontece nesses lugares, recentemente nos deparamos com propostas que, reativas ao que entendem ser um excesso de compromisso em favor da justiça, sem, supostamente, experiência de relacionamento com Deus, priorizam a união com Ele na parte mais íntima de si mesmo (a chamada "mesmice") ou com o "Todo" (no caso, por exemplo, da mística ou espiritualidade "sem Deus" de André Comte-Sponville) ou tentando reviver uma espiritualidade tridentina da adoração eucarística, muitas vezes com desprezo pelo discurso teológico e pela promoção da justiça.

Portanto, negligenciando (e às vezes encurralando) a solidariedade com os párias da terra como lugar ou mediação – tão relevante quanto a chamada "mesmice" – para o encontro com o Deus de Jesus de Nazaré ou – na expressão de algumas teologias – com o "Absoluto" que, quase sempre, tende a ser sem rosto histórico, sem "carne", sem programa e apenas fruitivo; ou, exclusivamente, na chamada adoração do Santíssimo Sacramento.

A identificação de Jesus com os pobres

Hoje em dia, é comum reconhecer a impossibilidade de transferir – e menos ainda, de forma acrítica – o "fato maior" latino-americano (e sua variante de religiosidade e exploração em outras partes do mundo) para a Europa Ocidental.

Isso não nos impede de reconhecer a necessidade de pesquisas sobre o chamado "quarto mundo" e as novas faces da pobreza que ajudem a reconhecê-las em meio a um bem-estar social crescente – e desigual. Nem lembrar "oportuna e inoportunamente, com ocasião e sem ela", a exploração do terceiro mundo na qual se baseia a qualidade de vida desfrutada pelo primeiro mundo, apesar de, com frequência e infelizmente, ser uma lembrança mais ouvida nesse primeiro mundo como curiosidade do que como urgência mobilizadora.

Sem deixar de reconhecer a importância decisiva desses dados, acredito que não seja supérfluo mostrar – de forma atualizada – a verdade teológica e a experiência espiritual que é transparente e murmura na identificação de Jesus com os pobres e que o magistério eclesial não proclamou com a insistência e a importância exigidas ao longo de sua história bimilenária: os pobres são os favoritos de Deus não porque são cristãos, religiosos ou bons, mas porque Deus, identificando-se com eles, é bom e misericordioso.

E se Deus se identifica com eles, é evidente que na sua libertação nos encontramos numa situação privilegiada de união com Ele. Isto é testemunhado e confirmado na ausência de um magistério institucional, contínuo e vigoroso no tempo pela vida e obra de inumeráveis cristãos, monges, santos, mártires e teólogos; e, entre estes últimos, de Gustavo Gutiérrez.

Talvez, já disse a mim mesmo mais de uma vez, não faria mal explorar o escopo e a importância dessa "identificação". Até o momento, estou convencido de que estou me referindo – graças a Gustavo Gutiérrez – a uma questão maior; especialmente se, como resultado, se conclui que a experiência e a relação com Deus nos pobres não são possíveis entre outras; nem mesmo o "preferencial". Diferentemente dessa posição, entendo que a relação com Deus, identificada com os pobres, é única ou singular, pois eles são constituídos como "os outros Cristos". E esta não é uma questão menor; nem para a teologia nem para a espiritualidade.

Desta singular experiência de encontro com Deus nos últimos anos e da teologia que dela resulta, há um arsenal de testemunhos, espirituais e teológicos, ao longo da história cristã.

Quando entro nestes caminhos, vem-me imediatamente à mente, entre outros, o conselho de São Vicente de Paulo (1581-1660) às Filhas da Caridade, convidando-as em sintonia com o melhor do Evangelho e da tradição latina a "deixar Deus", ou seja, a oração e também a Eucaristia e a sua adoração. "pelo amor de Deus", isto é, para cuidar dele nos pobres.

Este é o segundo dos caminhos que percorri ao longo dos anos, acompanhado pela teologia de Gustavo Gutiérrez, aquela primeira conversa com ele nos jardins Albia em Bilbao e algumas outras contribuições de bispos e teólogos, especialmente latino-americanos, embora não só.

Antecipações tabóricas

Mas, como já disse, há uma terceira preocupação que - referindo-me à situação espiritual dos cristãos na Europa Ocidental - penso que é importante, pelo menos, salientar, mesmo que brevemente.

Como é sabido, a partir do Édito de Milão (313) e, sobretudo, com a queda do Império Romano, iniciou-se e consolidou-se um regime de cristianismo no qual, com o passar do tempo, o principal interesse da hierarquia eclesiástica acabou por ser a preservação do poder, com um progressivo e lamentável desrespeito pela centralidade que os pobres têm no Evangelho, nos santos Padres, nos mártires, monges, santos e teólogos dos primeiros e posteriores tempos. Somente com a convocação do Concílio Vaticano II e, em particular, com a assinatura da célebre Declaração das Catacumbas de Domitila, na véspera de sua conclusão (1965), é que essa centralidade foi novamente reconhecida.

A partir desse momento, realizaram-se os diferentes encontros dos bispos latino-americanos no período pós-conciliar, a teologia da libertação de Gustavo Gutiérrez viu a luz do dia e acelerou-se a recuperação do "fazer" na teologia e na espiritualidade latinas como uma área em que também é possível experimentar a união e a relação com Deus.

Mais de cinquenta anos depois de Gustavo Gutiérrez ter publicado sua teologia da libertação, é urgente cuidar, melhor do que foi feito até agora, da identificação de Jesus com os párias do mundo, se não quisermos que o interesse por uma experiência religiosa apenas na adoração eucarística, na "mesmice" ou na intimidade - às quais as chamadas novas teologias e espiritualidades são tão sensíveis - acabe sendo descuidadamente absolutizado da "ex-centralidade", dos pobres e, por extensão, do compromisso com a justiça e a igualdade.

Isto significa que devemos prestar mais atenção à articulação entre o programa das Bem-aventuranças, à atualização do Calvário em tantos dramas contemporâneos e ao cuidado do encontro alegre com Deus nos Tabores do nosso tempo, ou seja, a uma experiência de relação e união com um Deus de Amor e Anti-mal, na qual também há espaço para a fruição, consolação, reparação e não só – como às vezes se acentuou excessivamente – provocação e picada.

A atenção à identificação de Jesus com os pobres nos calvários contemporâneos, sem o cuidado devido ao Tabor, acaba deixando um amontoado de "cadáveres" nas sarjetas do desespero e do desencanto, dado o enorme poder do mal e do sofrimento e a fragilidade da solidariedade. Mas não só pela indubitável dureza da tarefa, mas também pelo descaso do encontro com um Deus que, aguilhão e necessitado de ajuda, é também carícia, consolação, fruição e reparação.

É a crítica que – como autocrítica – recebo daqueles cristãos que entram em espiritualidades que absolutizam a adoração eucarística, o silêncio ou que se recriam em metodologias introspectivas nas quais não há mais espaço para a libertação como fonte de experiência espiritual, ou seja, de união e relação com Deus, identificado com os últimos.

Ao contrário deles, acredito que esse reajuste deve ser realizado sem negligenciar a centralidade do programa das Bem-aventuranças e da atualização do Calvário, como recorda, por exemplo, o Mestre Eckhart (1260-1327) quando insiste que "se um homem estivesse em êxtase como São Paulo, e soubesse que um doente precisava de uma sopa, Acho melhor que você deixe o êxtase e sirva aos necessitados com muito amor." É um texto que, por mostrar a centralidade e a importância da identificação de Jesus com os pobres, sinto muita falta na grande maioria das chamadas novas teologias e espiritualidades, incluindo aquela que tenta reavivar a adoração eucarística como tábua de salvação espiritual e pastoral.

É uma teologia e espiritualidade que - intimamente ligada à da libertação - eu tipifico como "Jesu-Cristã" porque não está apenas relacionada a Deus Amor e Anti-mal no silêncio, no deserto, na natureza, na oração contemplativa, na adoração eucarística, nos sacramentos ou no mais íntimo de si mesmo, mas também, e de preferência, na prática da misericórdia e da justiça na vida cotidiana. E o faz "adorando a Deus" e dando conta da "mesmice" em termos de "mesmice excêntrica", isto é, em libertação com os párias deste mundo.

Aqui está a terceira das minhas preocupações, incompreensível sem a teologia da libertação, uma "carta de amor a Deus, à Igreja e ao povo ao qual pertenço", como lembrou Gustavo Gutiérrez na introdução da 14ª edição espanhola. "O amor", ele então apontou, "continua a viver, mas se aprofunda e a maneira de expressá-lo varia".

A teologia de Gustavo Gutiérrez é – e é chamada a perdurar – como aguilhão e provocação, além de carícia, consolo e alegria.

Obrigado Gustavo por me ter acompanhado nesta jornada!

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