Há gritos que podemos ouvir. Outros, que não. Mortos que lamentamos e muitos, a maioria, que ignoramos. A guerra distingue as vidas que contam daquelas que não contam, a dor dos outros pela qual sentimos empatia daquela que ignoramos, o “nós” contra o “eles”.
A entrevista é de Maddalena Oliva, publicada por il Fatto Quotidiano, 20-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É com essa tese que Judith Butler retorna, com seu Regimi di guerra (Regimes de guerra) finalmente traduzido na Itália. A filósofa estadunidense que mudou o discurso sobre a diferença e a identidade de gênero (seu Gender Trouble, publicado em 1990, fez dela uma estrela, tanto que suas palestras em Berkeley ainda são extremamente concorridas) analisou como, por meio de quadros interpretativos e narrativas que visam à remoção do outro, o apoio à guerra é cultivado e mantido.
Fortemente criticada por sua leitura do 7 de outubro, aceita em conversar conosco justamente sobre Gaza.
Butler, em Regimi di guerra, você escreve: “A guerra é uma lógica de precarização de algumas vidas em detrimento de outras, ela polariza em um nós e um eles a radical igualdade humana, ou seja, a vulnerabilidade da existência”. Quando esse processo começa?
A guerra não é uma coisa única e não existe uma lógica única para todos os conflitos. Há confrontos em que o vencedor lamenta o derrotado com formas rituais. Hoje, no entanto, aos derrotados nem sequer é reconhecida a dignidade do luto, como se não fossem seres vivos. Pensamos na guerra como um evento separado das questões sociais, mas se olharmos para os curdos ou para os palestinos, veremos como a desigualdade social e política culmina em formas de violência que comprometem a própria vida daqueles povos.
Gaza é o ponto mais extremo desse discurso?
O argumento do governo israelense e de parte da população é baseado na “culpa coletiva”. Ou seja, todos os palestinos devem pagar pelo que alguns deles fizeram: tendo votado no Hamas, que cometeu atrocidades e crimes de guerra, foram eles que provocaram a resposta violenta das IDF. “Eles morrem por culpa deles”. Um argumento imoral porque desconhece a destruição maciça do exército israelense em Gaza, primeiro, a ponto de fazer com que se fale em violência genocida, e em Beirute agora.
Parece que somos cada vez mais indiferentes aos mais de 40.000 mortos palestinos. Como é possível? E por que para falar disso é sempre necessário começar relembrando as vítimas de 7 de outubro?
Os ataques de 7 de outubro foram um crime contra a humanidade e devem ser condenados. Mas a condenação e a compreensão histórica não são contraditórias, e essa história não começa em 7 de outubro. Começar tudo a partir daí é explicar a violência de Israel como retaliação ou autodefesa. Não nos perguntamos a que o Hamas reage, qual é sua história, seus objetivos, as relações com o restante dos palestinos. Quando nos é pedido para condenar o Hamas no início de uma conversa, se quer congelar o ponto de partida da história.
Sua leitura do 7 de outubro lhe rendeu muitas críticas...
Se eu continuasse em meu luto como judia, sem ver a devastação pela qual Gaza está passando, eu estaria estreitando minha visão e falharia na leitura do quadro. Minha resposta ao 7 de outubro foi lamentar a perda de judeus israelenses (que irritou alguns de meus amigos palestinos) e a insistência na igual dignidade de luto pelas vidas palestinas (que incomodou muitos sionistas).
Não me encaixo no esquema belicista. E a agressão em Gaza não tem nada a ver com a vocação judaica pela justiça na qual fui criada. O esquema belicista gostaria de um “nós” contra um “eles”.
Uma divisão que é reforçada na guerra. Um grupo de pessoas é representado por um único ponto de vista. E quando aquela multidão se esgota em uma única figura, ela se torna um fantasma: não é mais uma vida humana, mas a encarnação de uma ameaça a ser destruída. Assim normalizamos a morte dos “outros”?
Até certo ponto, sim. Perguntemo-nos por que nossa indignação é reservada aos civis israelenses, embora muitos condenem a morte de palestinos inocentes, inclusive crianças, e por isso saem às ruas para protestar. A guerra restringe o campo das nossas emoções, ativando algumas e atenuando outras. O jornalismo embutido e as mídias nos mostram o horror, parece que o tocamos e sentimos, mas é uma sequência de imagens que não nos faz entender e analisar o que está acontecendo e por quê. É por isso, escrevo, que a guerra se empenha em minar uma democracia razoável. É por isso que temos de ser capazes de entender a guerra plenamente, registrá-la com nossos sentidos e fazer com que a dor e a raiva nos levem a questionar, aberta e coletivamente, aquela destruição, para avaliar se ela é justificável ou não.
Você afirma que a guerra seria uma encenação.
Eu certamente não acho que seja uma farsa, muito pelo contrário! Mas quando um fotógrafo ou uma agência de notícias narra, sempre enquadra. Mesmo que se esforcem para ser neutros. Selecionar um fato em detrimento de outro, seu ângulo, são todos atos de interpretação. O enquadramento participa ativamente de uma estratégia de contenção, impondo o que será considerado realidade para nós, leitores ou espectadores.
Vamos pensar no governo israelense. Dizem-nos que os civis estão sendo mortos porque o Hamas está escondido entre eles: portanto, deveríamos acreditar que eles seriam danos colaterais ou que, ao fornecer abrigo ao inimigo, estão participando da guerra. Mas há notícias que derrubam esse quadro de interpretação: aqueles civis são atacados diretamente, em suas casas, escolas, abrigos.
São os Estados, as mídias ou as redes sociais que impõem os enquadramentos?
Pelo menos em condições de ausência de censura de parte do estado, há muitos atores que, mesmo por meio de um celular, criam enquadramentos, muitas vezes contraditórios. Portanto, devemos nos perguntar não apenas quais são as notícias de Gaza, mas também por meio de quais enquadramentos as recebemos. Criaremos nossa própria ideia, sem que ela nos seja ditada.
No entanto, aqueles que discordam de uma determinada ideia são criminalizados e deslegitimados...
Nesse estado de violência, estou preocupado tanto com a liberdade de imprensa quanto com a liberdade acadêmica. Muito depende do tipo de nacionalismo que os esforços bélicos constroem e consolidam. A ideia de nação não admite migrantes, refugiados, ativistas LGBTQIA+, opositores: todos são ameaças ao Estado e ao seu sucesso na guerra. Somos todos recrutados?
Talvez precisemos nos tornar mais conscientes de como ocorre o recrutamento. As pessoas querem saber imediatamente “de que lado você está”. Podemos até querer assumir uma posição fora do dualismo nós-eles ou contra a guerra como tal: em ambos os casos, nos dirão que estamos do outro lado, ou seja, com o inimigo. Como judia, se eu não apoiar o Hamas - e eu não apoio - sou definida de sionista. Mas se eu criticar o sionismo em sua forma atual, pertenço ao Hamas! Essas duas acusações se encaixam naquela lógica de guerra à qual me oponho. Nosso esforço deve ser o de desenvolver quadros interpretativos que vão além: o objetivo é um mundo não violento no qual coabitem igualdade e liberdade para todos.
A guerra é “masculina”?
Não, há uma masculinidade beligerante em certas formas agressivas de autodefesa e de sadismo. E também há mulheres que adotam essa lógica. Mas existem mulheres, homens e pessoas de outro gênero unidos contra a guerra: para mim, são a esperança.
O resultado das eleições nos EUA afetará o fim da guerra na Ucrânia e em Gaza?
Sim, afetará o envio de armas. Trump é um protecionista que não gosta de gastar dinheiro em guerras distantes: se ele vencer, abandonará Kiev e buscará um acordo que favoreça Moscou. Mas não deixará de apoiar Israel. Quanto a Kamala Harris, estamos esperando para ver até que ponto ela romperá com Biden.
As esquerdas globais parecem estar em um dilema em relação a Gaza, enquanto que sobre a Ucrânia adotaram, com o apoio a Kiev, a lógica da escalada...
Eu não saberia dizer quem ou o que define a esquerda global hoje. Mas vejo algumas grandes mobilizações em prol da Palestina e apelos pelo fim da violência na Ucrânia. Se se quer derrotar o nacionalismo e o autoritarismo, é para os protestos transnacionais que devemos olhar. Lembremos que Bolsonaro e Trump foram tirados pelo voto popular e que a esquerda está crescendo na França, embora tenha sido destituída do poder pela autocracia neoliberal de Macron.
O feminismo pode desempenhar um papel?
Deveria ser a vanguarda. Na Rússia, há associações feministas como a Women in Black e a Code Pink que estão lutando pela paz na Ucrânia. Opor-se à guerra significa, ao mesmo tempo, lutar pela igualdade, pela liberdade e pelo fim da catástrofe climática, para substituir os gastos militares em favor de gastos com educação, moradia e meio ambiente. O feminismo gera os valores mais importantes para qualquer mobilização contra a guerra.