07 Julho 2023
“Hoje não se pode pensar em uma política anticapitalista sem pensar em uma política contra a guerra. E não temos um movimento internacional contra a guerra, precisamos construí-lo. Penso que os movimentos feministas já começaram a construir este movimento. Um movimento de construção que mude as relações sociais, que vá da resistência à reexistência, como propõem os movimentos feministas de Abya Yala”. A reflexão é de Silvia Federici, em artigo publicado por La Haine, 04-07-2023. A tradução é do Cepat.
Silvia Federici é uma intelectual feminista e autora de Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Editora Elefante, 2019).
É fundamental falar sobre a guerra porque ela se tornou um elemento permanente da política capitalista em escala internacional. O fato de hoje haver guerras em grande parte do planeta não é obra do acaso: é parte fundamental do desenvolvimento capitalista, da expansão das relações capitalistas no mundo. Marx já havia enfatizado que no capitalismo a violência é uma força produtiva. Então, essa produtividade da guerra se manifestou desde as primeiras décadas do desenvolvimento da sociedade capitalista, com o imperialismo, mas agora continua.
Dedico-me aqui, por um momento, à última forma de guerra que vimos desde os anos 1980, em conjunto com a reestruturação da economia global, quando começa uma nova época da economia capitalista, uma época em que a guerra é um elemento permanente e essencial. É uma época que começa com a crise da dívida, que foi criada artificialmente e que afetou grande parte dos países que saíram do colonialismo, da colonização.
Com a crise da dívida, esses países foram recolonizados, sobretudo através das políticas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, cuja estrutura em si tem sido uma guerra, porque praticamente obrigou os governos dos países endividados a destruir e cortar todos os investimentos na reprodução social. Obrigou-os a fazer cortes na educação, na saúde, no transporte público, nas necessidades básicas, no emprego em massa e, acima de tudo, obrigou-os a mudar o rumo de sua economia. A economia não deve ser orientada para o bem-estar da população, mas para a exportação de todos os bens primários e materiais que um país possa ter.
Isso significou um grande empobrecimento e um aumento da mortalidade. Basta pensar em toda a epidemia gerada pela falta de cuidados médicos, pela desnutrição, pela falta de tantos serviços. Esse ajuste estrutural desestrutura o tecido social e cria a condição de guerra no sentido mais clássico.
Criou-se toda uma economia predatória. Hoje vemos um exemplo com o que está acontecendo no Sudão. É muito interessante ver que as guerras que vimos na África e em outros países nos últimos anos têm sua origem no ajuste estrutural. O empobrecimento permitiu que muitos jovens fossem recrutados para o exército. Aqueles que não foram forçados a migrar, muitas vezes não tiveram outra alternativa senão juntar-se aos exércitos, enquanto ao mesmo tempo os chefes dos países lutavam entre si para se apropriar das riquezas da terra, da fonte da riqueza. Portanto, hoje, como no princípio do capitalismo, a guerra é um instrumento de acumulação muito importante. É um instrumento de enriquecimento e de mudança de política econômica.
Aqui também quero recordar a obra dos anos 50 do economista austríaco Joseph Schumpeter [referência ao livro Capitalismo, socialismo e democracia], na qual falava de destruição criativa. No ciclo econômico da sociedade capitalista há momentos fundamentais necessários de destruição criativa. Este é outro aspecto da importância da guerra no capitalismo tanto hoje como no passado: a destruição criativa significa que a guerra serve para cortar tudo o que não é mais necessário, os ramos secos da economia capitalista. Isso, por sua vez, prepara o terreno para impor uma derrota à população e empurrá-la para uma nova forma de exploração. Prepara o terreno para um novo ciclo econômico, para uma nova forma de desenvolvimento. Opera no terreno físico e social criando novas subjetividades e destruindo as relações de solidariedade e trabalho coletivo.
Então a guerra cria um mundo novo. Isso explica porque a sociedade capitalista cria periódica, sistemática e estruturalmente esses grandes momentos de guerra, incluindo a atual situação de guerra permanente.
Acredito que as mulheres têm uma posição privilegiada para falar sobre isso, pois temos uma vasta experiência na guerra travada contra nós. Nós, mulheres, falamos na perspectiva da reprodução da vida cotidiana, da vida social, daquela reprodução que a guerra procura destruir. Assim, apesar de os homens serem os que formam os exércitos, são as mulheres que experimentam em seus corpos, em suas vidas, em suas comunidades, os efeitos mais devastadores da guerra: ter filhos, gravidez, cuidar dos doentes e dos idosos. É algo que não pode ser conceituado: o horror de ter a responsabilidade pela reprodução da vida em um momento em que tudo o que acontece perto de você destrói a vida. É por isso que acho importante fazer uma leitura feminista da guerra.
Comecei [a minha aula] sobre a guerra contra as mulheres lendo a história da caça às bruxas de três séculos atrás, de uma violência que foi organizada para mudar o estatuto do que significa ser mulher na sociedade capitalista. Claro, a guerra é um dos instrumentos mais poderosos para a desvalorização do trabalho e da vida das mulheres. Com efeito, a caça às bruxas criou uma ideologia e uma nova legislação sobre o que significa ser mulher. Por exemplo, no período final da caça às bruxas na Europa, as mulheres não tinham estatuto jurídico: elas eram representadas perante o Estado pelos homens, pelo varão, pelo pai.
E essa guerra continuou fundando subjetividades, práticas e condições sociais. Continuou a repetir-se com a instituição da pena capital, com a pena de morte contra o adultério, com as mulheres sendo queimadas na Inglaterra dos séculos XVII e XVII, com a proibição do aborto. Vimos nos anos 50 a prática da lobotomia contra as mulheres que recusavam o trabalho doméstico, a esterilização das mulheres negras, a grande campanha de controle populacional nas décadas de 1970, 80 e 90, quando as mulheres foram acusadas de serem as responsáveis pela existência da pobreza no mundo. Existe toda uma ideologia, uma orquestração prática também, com milhões de médicos e enfermeiras que forçaram as mulheres a tomar anticoncepcionais em nome da redução do crescimento populacional em escala mundial. Por tudo isso podemos falar de uma guerra contra as mulheres.
Se eu olhar a literatura feminista dos últimos 20 anos, posso ver que o tema da guerra está sempre presente. Claudia von Werlhof sempre falou da guerra contra as mulheres. Maria Mies, a feminista alemã recentemente falecida, escreveu livros seminais como Patriarcado & acumulação em escala mundial (Editora Timo, 2023). Ela disse em um de seus livros que o patriarcado em tempo de paz é uma guerra contra as mulheres. Porque o patriarcado desvaloriza as mulheres e cria as condições para que sejam dominadas, subjugadas. É uma guerra sem necessidade de armas, porque a arma é a violência doméstica tolerada pelos governos.
Quando falamos de guerra não falamos apenas da guerra física, com exércitos, com armas, com bombas. Devemos pensar o conceito de guerra como uma prática cujo objetivo é destruir as condições fundamentais da vida e destruir os sujeitos que não se adaptam, destruir as populações inteiras para estabelecer uma nova forma de relação econômica.
Como escrevemos, com a companheira Verónica (Gago), hoje as finanças são uma guerra. O ajuste estrutural é uma guerra, a política extrativista é uma guerra contra a natureza, contra as comunidades expulsas de suas terras ancestrais. O extrativismo e as finanças estão ligados, porque um país, uma vez condenado ao ajuste, deve abrir suas portas para a exploração, para a mineração, para a extração do petróleo, para o agronegócio, para o desmatamento.
Então, devemos pensar o conceito de guerra de uma forma ampla e olhar para quem são os explorados. Quais são os objetivos? Quais são os efeitos e as consequências? E, naturalmente, como se pode resistir? Quais são as formas mais eficazes de resistência a esta guerra?
No meu caso, como muitas outras e outros colegas, falo do comum. Comum é criar formas coletivas de reprodução. O discurso do comum não é apenas ideológico. A solidariedade deve ser construída criando condições materiais para a produção em comum da vida cotidiana. São essas formas coletivas de reprodução que criam um tecido social capaz de resistir ao avanço dessa guerra. A criação de um entramado comunitário é muito importante.
Para mim, a entrada das mulheres nos exércitos é muito deprimente. Aqui vemos como uma parte do feminismo foi totalmente cooptada pelo capital, pela sociedade capitalista. Porque esta integração das mulheres, que tem sido celebrada como busca pela igualdade, é na verdade uma derrota. O capitalismo criou uma divisão do trabalho muito forte em que os homens é que vão matar, as mulheres é que dão a vida e a maternidade não é valorizada.
Por exemplo, toda atividade relacionada à guerra, à produção de armas, é considerada produtiva, é algo que acumula capital. As feministas têm lutado para que o trabalho doméstico seja reconhecido como trabalho produtivo, mas no plano do capital não é. Então, essa divisão, a igualdade, não é que as mulheres devem entrar no exército. A igualdade é que os homens deixem de ser servir ao capital na sua guerra. Devem deixar de ser soldados ou carcereiros. Onde está o movimento trabalhista? Por que o movimento trabalhista continua produzindo coisas que destroem a vida? A revolução começa dizendo “não”.
Na realidade, o que está acontecendo é que muitas mulheres foram assassinadas e violentadas por seus companheiros de exército, pelos oficiais. Por quê? Porque no exército eles têm que desumanizar você para que se acostume a matar os outros. Devem destruir sua humanidade.
É um trabalho educativo que devemos fazer: educar contra qualquer forma de guerra e entender sua dimensão financeira.
O escritor africano Chinua Achebe em seu livro O mundo se despedaça (Companhia das Letras, 2009) relata a chegada dos colonialistas na Nigéria no século XIX. Ele diz: “the center cannot hold” (O centro não aguenta). O centro dessas sociedades, após a chegada do colonialismo, é destruído. A sociedade está fragmentada, não há um centro onde as pessoas possam se reconhecer. Isso também aconteceu na Líbia, Afeganistão, Síria, Sudão. Faz-se isso com o auxílio da guerra e das finanças. Hoje, na Ucrânia, o setor financeiro tem uma presença poderosa na privatização de terras. Ao final da guerra, o desastre não será apenas pelas bombas, mas também pelas medidas financeiras impostas.
Hoje não se pode pensar em uma política anticapitalista sem pensar em uma política contra a guerra. E não temos um movimento internacional contra a guerra, precisamos construí-lo. Penso que os movimentos feministas já começaram a construir este movimento. Um movimento de construção que mude as relações sociais, que vá da resistência à reexistência, como propõem os movimentos feministas de Abya Yala.
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Guerra, reprodução e lutas feministas. Artigo de Silvia Federici - Instituto Humanitas Unisinos - IHU