06 Agosto 2024
"Francisco vincula o trabalho teológico com a ideia de Igreja como 'hospital': 'que a teologia seja expressão de uma Igreja que é 'hospital de campanha', que vive sua missão de salvação e cura no mundo'", escreve Ernesto Cavassa, padre, em artigo publicado por Religión Digital, 03-08-2024.
O padre jesuíta Ernesto Cavassa é doutor em Teologia, docente e foi Provincial da Companhia de Jesus no Peru (1998-2004), presidente da Conferência de Provinciais Jesuítas da América Latina (CPAL, 2005-2012) e reitor da Universidade Antonio Ruiz de Montoya (2014-2019). Desde dezembro de 2019, é diretor geral de Fé e Alegria no Peru.
Três dias após a conclusão da primeira fase do Sínodo sobre a Sinodalidade, no dia 01-11-2023, na Solenidade de Todos os Santos, foi divulgado o de motu proprio intitulado Ad theologiam promovendam (ATP) do Papa Francisco. A coincidência da data de sua publicação com outros eventos importantes, como a clausura do Sínodo e a inauguração da COP28 em Dubai, pode fazer com que essa carta seja deixada de lado. Por isso, é importante não a negligenciar.
O motu proprio visa "promover a teologia no futuro" (ATP 1). No contexto do movimento sinodal, Francisco quis expressar sua opinião sobre esse tema tão importante e controverso, a respeito da atualização dos Estatutos da Pontifícia Academia de Teologia. Não é a primeira vez que ele faz isso. Em dezembro de 2017, ele havia publicado a constituição apostólica Veritatis gaudium (VG) sobre as universidades e faculdades eclesiásticas, que começa com um prólogo significativo que este motu proprio cita algumas vezes. Portanto, é importante ler ambos os documentos em conjunto.
Vamos percorrendo o documento, destacando as principais características do trabalho teológico ressaltadas por Francisco, comentando-as e recorrendo a outros documentos significativos — como a exortação apostólica Evangelii gaudium ou o documento final da primeira sessão da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo, intitulado Uma Igreja Sinodal em Missão — quando parecer conveniente, com o objetivo de contribuir para uma melhor compreensão.
A ideia de uma teologia em saída e das fronteiras corresponde ao Francisco dos primeiros anos de seu pontificado. Ela está presente em seu primeiro documento próprio, a exortação apostólica Evangelii gaudium (EG), de novembro de 2013, em seu primeiro capítulo, dedicado à transformação missionária da Igreja. O primeiro tópico refere-se a "uma Igreja em saída", que remete ao dinamismo "em saída" próprio da palavra de Deus (cf. EG 20). Abraão, Moisés e Jeremias encarnam esse movimento no Antigo Testamento. Desse movimento nasce o envio, a missão, a alegria de ser enviado.
Para Francisco, "a Igreja em saída é a comunidade dos discípulos que primereiam (um neologismo típico do Papa), que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam" (EG 24). Estes verbos fazem parte do dinamismo de uma Igreja que sai de si mesma, de sua autorreferencialidade, e se dirige às fronteiras, às periferias. Diz o texto: "Sua alegria em comunicar a Jesus Cristo se expressa tanto em sua preocupação em anunciá-lo em outros lugares mais necessitados quanto em uma saída constante para as periferias de seu próprio território ou para os novos âmbitos culturais" (EG 30).
As periferias, as fronteiras, não são apenas geográficas ou territoriais, mas existenciais e sociais. Uma das chaves fundamentais do pensamento de Francisco é a ideia de fronteira como espaço de encontro e diálogo. As fronteiras são espaços liminares onde as diferenças se encontram, se entrelaçam, dialogam, debatem e brigam. São os espaços da diversidade que, assumida através do diálogo, enriquece e permite o crescimento. São as fronteiras das "profundas transformações culturais" às quais o documento se refere (cf. ATP 1).
Nesse contexto, a teologia não pode se limitar a "propor de maneira abstrata fórmulas e esquemas do passado" (ibid.). A Igreja em saída leva a uma teologia em saída e não "de escritório", que tem "cheiro de povo e de caminho", e que seja capaz de derramar "óleo e vinho sobre as feridas do homem" (ATP 3).
As fronteiras também são lugares de conflito. Isso é evidente nas guerras que nos afetam atualmente na Ucrânia, em Gaza e em tantos outros lugares. Ou nos milhares de migrantes forçados a deixar suas terras em busca de um futuro melhor. Por isso, para Francisco, a Igreja em saída é também um "hospital de campanha". É "a Igreja pobre com os pobres" a que ele se referiu em sua primeira coletiva de imprensa após ser escolhido como bispo de Roma. Essa referência ao "corpo chagado" do pobre se repete na I Jornada Mundial dos Pobres em 2017: "Se realmente queremos encontrar Cristo, é necessário que toquemos seu corpo no corpo chagado dos pobres, como confirmação da comunhão sacramental recebida na Eucaristia"[2].
Em uma carta de 2015, dirigida ao grande chanceler da Universidade Católica Argentina, Francisco vincula o trabalho teológico com a ideia de Igreja como hospital: "Que a teologia seja expressão de uma Igreja que é 'hospital de campanha', que vive sua missão de salvação e cura no mundo". E, se for assim, ele acrescenta essa intuição fundamental: "Ensinar e estudar teologia significa viver em uma fronteira, aquela na qual o Evangelho encontra as necessidades das pessoas a quem é anunciado, de maneira compreensível e significativa"[3].
Posteriormente, em Veritatis gaudium, Francisco insiste que a teologia deve acompanhar os processos sociais e culturais e, "particularmente as transições difíceis" (VG 4). Além disso, citando a carta ao grande chanceler, Francisco sublinha que "a teologia também deve se responsabilizar pelos conflitos: não apenas os que experimentamos dentro da Igreja, mas também os que afetam o mundo inteiro" (ibid.).
A fronteira, lugar de vulnerabilidade e conflito, interpela a teologia. O trabalho teológico que brota da proximidade com os sofredores está chamado "a interpretar profeticamente o presente e a ver novos itinerários para o futuro" (ATP 1).
O conceito de teologia contextual não é novo na reflexão teológica. Teólogos como Robert Schreiter e Stephen Bevans, acadêmicos e ao mesmo tempo missionários, refletiram sobre esse ponto para sublinhar "uma maneira de fazer teologia que leva em conta o espírito e a mensagem do Evangelho, a tradição do povo cristão, a cultura a partir da qual se reflete teologicamente e as mudanças sociais que ocorrem na cultura"[4].
Não podemos assegurar que Francisco conheça esses autores, mas, sem dúvida, o conteúdo da mensagem do motu proprio coincide com as ideias básicas desse enfoque teológico. Daí a importância que o documento pontifício atribui à “cultura”, a qual menciona várias vezes, e à estreita vinculação entre a teologia e “uma cultura de diálogo e encontro”, na qual “só pode se desenvolver” o trabalho teológico (ATP 4).
Nesse marco de diálogo e encontro, as “grandes palavras” da Tradição são “contextualizadas”. “Devemos – diz Bento XVI –, através do estudo e das orientações dos mestres de teologia e da nossa experiência pessoal com Deus, concretizar, traduzir essas grandes palavras de forma que elas se encaixem no anúncio de Deus ao homem de hoje”[5]. A esse modo de trabalhar teologicamente, Bevans o denomina “modelo de tradução”. Mas não se trata de uma tradução literal, e sim de reler, a partir de novos contextos, o significado central da expressão e formulá-lo de modo que possa ser compreendido em seu sentido próprio pelos novos destinatários. Costuma-se denominar essa tradução como “equivalência dinâmica”.
Bevans desenvolve outros modelos de teologia contextual, como o antropológico ou o que coloca ênfase na prática histórica dos cristãos. Neste segundo modelo, tanto Bevans quanto Schreiter situam a teologia da libertação. O modelo antropológico enfatiza a identidade cultural e certos aspectos dentro dela a partir dos quais se reflete a palavra de Deus, a tradição, o magistério e o papel social da Igreja. Esse é o modelo das teologias que destacam as relações de gênero (teologia feminista, a partir da mulher) ou a dimensão étnico-cultural (teologia indígena, teologia negra)[6].
Para ler o artigo completo, clique aqui.
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O trabalho teológico segundo Francisco: uma teologia em saída e das fronteiras. Artigo de Ernesto Cavassa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU