25 Setembro 2024
"Nestes tempos que oscilam entre uma radical cultura do cancelamento e uma férrea autodefesa nacionalista-soberanista, semelhante obra se torna uma grade crítica que permite identificar um paradigma polimorfo diferente, não apenas teológico, mas também sociocultural, para nós pouco conhecido ou até mesmo desconhecido, para nos conscientizar de que não é apenas o Ocidente tradicional que crê, pensa e opera na galáxia cristã", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 22-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mesmo para um especialista pode ser uma surpresa — nos tempos dramáticos de Gaza e das relativas manifestações pró-palestinas — que já em 1989 tenha sido publicado um ensaio com o título A Palestinian Theology of Liberation (Uma teologia palestina da libertação). O autor era um teólogo anglicano, nascido em 1937 no vilarejo palestino de Beisan, destruído pelo exército de Israel na guerra de 1948: seu nome é Naim Stefan Ateek, e um dos autores que mais influenciaram seu pensamento foi, paradoxalmente, um judeu, Marc H. Ellis, na época professor da Baylor University de Wako, no Texas, cuja principal obra se intitulava Rumo a uma teologia da libertação, publicada em espanhol na Costa Rica.
A Palestinian Theology of Liberation (Uma teologia palestina da libertação), de Naim Stifan Ateek (Foto: Divulgação)
Essa introdução pretende mostrar o quão interessante é o volume com o emblemático título Teologias do Sul, de um dos maiores teólogos da Espanha, Juan José Tamayo, nascido em 1946, ex-professor de várias universidades nacionais e estrangeiras. O horizonte que ele vasculhou, coletando uma imponente documentação, cuidadosamente examinada e selecionada, é impressionante para um leitor do hemisfério norte, convencido de que básico e prevalente seja apenas a elaboração de teólogos e filósofos europeus de acordo com os cânones de suas linguagens e, especialmente, de suas seleções temáticas. Significativa é a reação do próprio Tamayo ao final dessa longa jornada intercontinental: “Os itinerários de diálogo que percorri me despertaram do sono dogmático, me libertaram da inocência cultural, me sacudiram da confortável posição da modernidade europeia e me abriram novos horizontes epistemológicos”. Nestes tempos que oscilam entre uma radical cultura do cancelamento e uma férrea autodefesa nacionalista-soberanista, semelhante obra se torna uma grade crítica que permite identificar um paradigma polimorfo diferente, não apenas teológico, mas também sociocultural, para nós pouco conhecido ou até mesmo desconhecido, para nos conscientizar de que não é apenas o Ocidente tradicional que crê, pensa e opera na galáxia cristã.
Assim, nos deparamos com uma narrativa religiosa que revela facetas policromáticas, elaboradas, no entanto, por meio de alguns fios resistentes comuns, que não são apenas simplesmente pós-coloniais e, portanto, críticos das espiritualidades hegemônicas induzidas, mas que revelam sua própria originalidade, mesmo que muitas vezes caracterizada por instâncias apaixonadas e até mesmo coloridas. Sob esse prisma, o programa proposto por Tamayo vai muito além da alegada “descolonização” do subtítulo, e é isso que desponta nas páginas gerais de abertura, uma verdadeira chave hermenêutica para se embrenhar no mapa geográfico subsequente.
Ele é articulado de acordo com os continentes, começando pela África, uma terra despojada pela colonização não apenas de matérias-primas, mas também de sua identidade espiritual. Na realidade, ela se revela um pluriverso religioso tradicional autônomo que se encontrou, cotejou e, às vezes, confrontou com o cristianismo. Com uma clareza e uma concretude extraordinárias que tornam seu texto destinado a um público muito mais amplo do que o hortus conclusus teológico, Tamayo consegue identificar todas as nervuras ideológicas desse mundo, penetrando até mesmo nos cantos menos conhecidos.
Vamos mencionar apenas um, o ubuntu, que é um conceito filosófico bantu capaz de ordenar a sociedade de acordo com um personalismo dialógico, em que cada indivíduo é portador de um valor intrínseco e de uma dignidade que gera respeito mútuo. A nossa proposta de “justiça restaurativa” já está inserida nessa concepção, que também serviu de guia para a pacificação na África do Sul, defendida pelo conhecido bispo anglicano Desmond Tutu, após a era sombria do apartheid.
Mais árdua (mas de resultado eficaz) foi a decifração de outro pluriverso religioso, o asiático. Ele seguiu duas artérias temáticas fundamentais, a libertação (e aqui entra em cena a referência palestina delineada no início, mas o leque se amplia para incluir as religiões muçulmana, hindu, budista e confucionista) e o diálogo inter-religioso, começando pela própria definição da categoria básica “religião”. Aqui também não faltam ramificações por sendas secundárias, como o pensamento dalit, a camada social indiana mais baixa e fora de casta, ou a teologia minjung coreana, “povo”, ou seja, a multidão de oprimidos, pobres e marginalizados. O terceiro continente é, obviamente, a América Latina, talvez o mais debruçado sobre o nosso horizonte, não apenas por causa do Papa Francisco, mas também pelo forte impacto que teve a teologia da libertação com suas muitas iridescências, meticulosamente catalogadas por Tamayo. De fato, ela se articulou em uma densa rede de trajetórias, às vezes um tanto acaloradas: basta mencionar o diálogo com o marxismo, a dialética com a Cúria Romana, a descolonização cultural, a ruptura epistemológica e política com a teologia europeia. A esses percursos se somaram outros, também efervescentes, como a ecoteologia, a abordagem feminista e queer, a contribuição da cultura indígena e até mesmo aquela teopoética da libertação que teve seus arautos em Ernesto Cardenal, Pedro Casaldáliga, Rubem Alves.
Muito mais pode ser descoberto no ensaio de Tamayo, destinado a interessar vários âmbitos que vão além do perímetro teológico. Exemplar nesse sentido — além do que já sinalizados — é a cosmovisão holística do Sumak Kawsay, o “bom viver” das religiões indígenas retomado na reflexão teológica, especialmente sul-americana.
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A teologia vista de outros lados do mundo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU