13 Julho 2024
O artigo é de Ricardo Mauti, sacerdote da Arquidiocese de Santa Fé, na Argentina, e doutor em Teologia (UCA), publicado por Religión Digital, 03-07-2024.
Depois de ensinar teologia em várias universidades alemãs como Wuppertal e Bonn, estabeleceu-se em Tübingen, onde lecionou teologia sistemática de 1967 a 1994. Junto com Eberhard Jüngel e Wolfhart Pannenberg, Moltmann foi um dos teólogos alemães mais importantes desde o início dos anos 60. Sua influência se estendeu à teologia católica e ortodoxa, e suas ideias tiveram um enorme impacto nas várias Teologias da Libertação do Terceiro Mundo. Mas sua influência vai além dos círculos acadêmicos; o forte componente experiencial e prático de sua teologia o aproximou de várias comunidades de base na América Latina, que interpretaram o mundo dos pobres e crucificados a partir de suas intuições e propostas teológicas.
O pensamento de Jürgen Moltmann (1926-2024) é duradouramente marcado por O princípio esperança, obra principal de Ernst Bloch (1885-1977), escrita entre 1954 e 1959, originalmente publicada em três volumes, onde Bloch elabora uma teoria filosófica da utopia. Segundo Bloch, tudo o que é real tende a "autotranscender-se", movendo-se de seu "ser-assim" para o "ainda-não-ser". Com base nisso, desenvolve uma teoria do progresso social que o ser humano deve empreender. No fim desse progresso, vislumbra-se um bem perfeito ou um reino da plenitude: "A verdadeira gênese não está no começo, mas no fim, e começará apenas quando a sociedade e a existência se tornarem radicais, isto é, quando atingirem sua raiz.
Mas a raiz da história é o ser humano trabalhador, criador, que reconfigura e supera o que é dado" (cf. Ernst Bloch, O princípio esperança, volume III, Trotta, Madri, 2007, p. 127). A partir da filosofia blochiana da esperança, Moltmann elabora em sua Teologia da esperança (1964) uma investigação sobre o fundamento da esperança da fé cristã e sobre a responsabilidade que ela tem no pensamento e na ação profana. Moltmann observa desde o início que "as múltiplas polêmicas que aparecem em sua obra não devem ser vistas como rejeições e condenações de sua parte. Pelo contrário, ele as concebe como diálogos necessários sobre um assunto comum, tão rico que demanda perspectivas sempre novas" (Jürgen Moltmann, Teologia da esperança, Sígueme, Salamanca, 2006, p. 13; 29-31).
Teologia da Esperança de Jürgen Moltmann (Foto: Reprodução)
À utopia social de Bloch, Moltmann opõe o "Deus da esperança" paulino (Rm 15,13). Ao contrário de uma razão humana que se auto-empodera, a interpretação cristã da história baseia-se em uma promessa dada por Deus. Isso de forma alguma condena o ser humano à inatividade; pelo contrário, habilita-o a agir a partir de uma fé que também é eficaz politicamente (cf. Moltmann, Teologia da esperança, p. 21; 425). Nesse sentido, Moltmann vê o específico da ação social e política dos cristãos na medida em que a fé cristã se refere constitutivamente ao O Deus crucificado (cf. Dirk Ansorge, História da teologia cristã: épocas, pensadores, direções, Sal Terrae, Santander, 2023, p. 356).
Segundo Jon Sobrino, para Moltmann, Deus é "um Deus que tem o futuro como caráter constitutivo". É o Deus da promessa que se cumprirá no futuro e, por isso, é o Deus da esperança. Deus age no e dentro do presente como o poder do futuro. Moltmann critica Bultmann pela falta de futuro em sua visão da realidade: "apenas com a esperança no futuro do mundo pode o crente suportar a dor que sente diante da impiedade deste mundo". E esta "futuridade" de Deus está fundamentada na ressurreição de Jesus.
Neste sentido, todas as afirmações anteriores sobre Deus tomadas da história de Israel, da lei, da aliança ou da existência do mundo como tal, perdem força, reduzindo-se a meros ditos históricos, em comparação com esta nova autodefinição escatológica de Deus como o que ressuscita os mortos. Além disso, Moltmann acrescenta afirmações que enfatizam o presente. A questão de Deus é feita no solo da experiência histórica e em conceitos temporais sobre a questão de sua vinda. Em particular, ele destaca que Deus é um Deus crucificado, e por isso em um processo trinitário que culminará no fim da história (cf. Jon Sobrino, A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas, Trotta, Madri, 2007, p. 81; 140).
A história cristã tem produzido poucos exemplos de casamentos cujos membros foram ambos teólogos renomados. Por mais de cinquenta anos, o casamento de Elisabeth Moltmann-Wendel e Jürgen Moltmann foi uma cooperação teológica frutífera. Tudo começou em 1948, quando os dois jovens estudantes de teologia se encontraram na Universidade de Göttingen. Jürgen chegou depois de passar três anos como prisioneiro de guerra, durante os quais se converteu ao cristianismo. Elisabeth veio de Potsdam (perto de Berlim), onde nasceu, e onde sua família continuou a viver durante os períodos separados pela Guerra Fria.
Desde o início, eles foram unidos pelo amor à teologia. Jürgen cresceu em uma família secular e encontrou a fé depois de escapar por pouco da morte aos dezessete anos em Hamburgo, além de ter enfrentado o desespero típico de um prisioneiro de guerra. Elisabeth, que cresceu em uma família cristã e se formou nos estudos bíblicos "clandestinos" da Igreja Confessante, começou seus estudos teológicos em Berlim. Foi em Göttingen onde ambos realizaram suas teses de doutorado sob a orientação do mesmo "Doktorvater", Otto Weber, um convertido que apoiou o partido nazista e perseguiu a igreja confessante, mas que ficou conhecido por sua monumental obra Fundamentos da dogmática (Grundlagen der Dogmatik, Neukirchen & Moers, 1955).
Desde então, seu pensamento tem mostrado profundas semelhanças de espírito e compromissos comuns, sem deixar de apresentar notáveis diferenças em seus tratamentos teológicos. A diferença de tonalidade pode dever-se em parte às suas perspectivas de gênero, ou talvez reflita o fato de que Elisabeth vem originalmente de um fundo luterano, enquanto Jürgen se identificou com as tradições reformadas. As diferenças também surgem, é claro, de suas vocações teológicas específicas: ele como principal teólogo ecumênico na prestigiosa faculdade protestante de Tübingen, e ela como principal teóloga feminista da Europa central.
Em todo caso, sempre apreciaram os matizes de suas diferenças e tentaram mantê-las vivas, dentro de um profundo respeito mútuo. No entanto, os aspectos comuns de suas teologias são inequívocos. Ambos são teólogos da reconciliação, sempre em busca de novas maneiras de falar sobre a vinda do Shalom de Deus à terra. São teólogos da paz, dentro dos conflitos do mundo moderno e pós-moderno. Ambos sustentam suas teologias ecumênicas no sentido mais amplo e as desenvolvem nas fronteiras existenciais, culturais e étnicas. Ao longo de suas vidas e graças a milhares de contatos e amizades globais, eles chegaram a compreender que não há teologia sem conversão, e suas teologias revelam que ouviram tanto ou mais do que falaram.
Há 50 anos, Walter Kasper observou que "para quem, no atual caos das opiniões teológicas e na esterilidade das polêmicas intraeclesiais, busca um diagnóstico claro e preciso da situação, eu recomendo o livro de Jürgen Moltmann O Deus crucificado" (Walter Kasper, A teologia em debate: chaves da ciência da fé, Sal Terrae, Santander, 2016, p. 472).
Na verdade, apenas pelas duas primeiras seções sobre "A crise de relevância da fé cristã" e "A crise de identidade da fé cristã" (cf. Jürgen Moltmann, O Deus crucificado, Sígueme, Salamanca, 2010, p. 30-42; 42-50), vale a pena ser lido. Hoje pode-se dizer o mesmo, e com ainda mais ênfase. Moltmann afirma que as igrejas, após uma fase restauracionista, entraram em uma fase de abertura e saída para o mundo, seguida agora por uma fase de resignação e crise. A razão da crise reside em um "dilema entre identidade e compromisso".
Pois na medida em que os cristãos e as igrejas tomam consciência de sua alarmante perda progressiva de relevância e credibilidade na sociedade moderna e começam a se comprometer, expõem-se ao perigo de uma perda de identidade. Eles se assemelham a um camaleão, que sempre adota as cores do ambiente. Se, pelo contrário, apenas se preocupam temerosamente com sua identidade, tornam-se uma "seita" fechada sobre si mesma. A crise de relevância e a crise de identidade são complementares. Onde há identidade, a relevância se torna problemática, e onde há relevância, a identidade também encontra seu problema.
A resposta de Moltmann a essa situação aporética é: "Relevância apenas em virtude de uma identidade experimentada e acreditada" (O Deus crucificado, p. 42, 43, 356, 377). Mas a fé cristã só adquire identidade através da cruz de Cristo. Na cruz ocorre uma dupla identificação: Deus se identifica com os ímpios e abandonados por Deus, entre os quais nós mesmos nos incluímos e com os quais devemos nos identificar cristãmente. Isso nos introduz ao livro O Deus crucificado, publicado na Alemanha em 1972, que, segundo Richard Bauckham, talvez seja um dos melhores estudos modernos sobre a teologia da cruz (cf. Richard Bauckham, A teologia de Jürgen Moltmann, T&T Clark, Nova York, 2006, p. 3, 58, 108, 228).
Embora Moltmann mesmo não esteja certo disso, ele considera que "o livro fazia parte da minha luta pessoal com Deus, do meu sofrimento sob o lado escuro de Deus, o rosto escuro de Deus, o 'hester panim' (Deus oculta o seu rosto), como dizem os judeus, o abandono por parte de Deus no qual as vítimas e a impiedade dos culpados na história humana de violência e sofrimento se encontram".
Moltmann faz um relato autobiográfico de seu encontro existencial com o mistério da cruz, do crucificado e da ação de Deus: "Em julho de 1943, aos dezessete anos de idade, eu estava deitado no chão ouvindo as bombas caírem ao meu redor em minha cidade natal de Hamburgo. Quarenta mil pessoas, incluindo mulheres e crianças, morreram como resultado daquele bombardeio ou dos incêndios subsequentes. Milagrosamente, eu sobrevivi. Até hoje, não sei por que não morri como meus companheiros. Minha pergunta naquele inferno não era: Por que Deus permite que isso aconteça?, mas sim: Onde está Deus?. Ele está longe de nós, ausente em seu céu, ou está entre nós, sofrendo conosco?; Deus compartilha nosso sofrimento?". Essa experiência limite lhe colocou dois problemas: um é o problema teorético de acusar a Deus diante da dor das vítimas (o chamado problema da teodicéia). O outro é o problema existencial sobre a comunidade com Deus no sofrimento. Logicamente, o primeiro problema pressupõe um Deus apático e intocável em seu céu, enquanto o segundo é a busca por um Deus compassivo, "o companheiro no sofrimento que nos surpreende".
Moltmann assume com perplexidade a catástrofe de seu povo alemão no terrível crime contra o povo judeu conhecido pelo vergonhoso nome de "Auschwitz". É impossível para ele esquecer as imagens dos mortos no campo de concentração de Bergen-Belsen, que foram mostradas aos prisioneiros de guerra ingleses em outubro de 1945. Incrível, mas verdadeiro, todos esses crimes aberrantes foram cometidos em nome de "seu" povo alemão. Moltmann reconhece com profunda dor que os horrores dos crimes do Holocausto têm pesado sobre ele e muitas pessoas de sua geração na Alemanha desde o fim da guerra.
Muitos anos se passaram antes que grande parte do povo alemão pudesse emergir do silêncio que fecha as bocas das pessoas sobre as quais pesa a memória das vítimas. Daí as inevitáveis perguntas: Deus permitiu que isso acontecesse?; Onde está Deus?; Ele está longe das vítimas da violência ou está ao lado delas? O livro O Deus crucificado foi repetidamente descrito como teologia cristã "depois de Auschwitz". Moltmann reconhece a verdade dessa afirmação, na medida em que ele tentou "falar com Deus, confiar em Deus e falar sobre ele sob a sombra de Auschwitz e diante da imagem das vítimas".
A questão de Deus nesta obra é "idêntica ao grito das vítimas clamando por justiça e ao desejo dos perpetradores do crime de desfazer o caminho da morte". O Deus crucificado tem sua história na biografia de Moltmann. Em 04-04-1968, enquanto participava de um congresso sobre Teologia da esperança na Duke University, alguém entrou repentinamente na sala Harvey Cox gritando: "Eles atiraram em Luther King!" O congresso foi encerrado imediatamente e os participantes voltaram para suas casas, pois grandes distúrbios ocorreram em muitas cidades americanas. Dias depois, Moltmann retornou a Tübingen, prometendo aos seus amigos americanos que, quando voltasse, não falaria mais de teologia da esperança, mas de teologia da cruz (cf. Jürgen Moltmann, Elisabeth Moltmann-Wendel, Paixão por Deus: uma teologia em duas vozes, Sal Terrae, Santander, 2007, p. 79-81).
Outro evento singular está ligado a esta obra de Moltmann e sua repercussão, conforme narrado pelo teólogo salvadorenho Jon Sobrino, um dos membros da comunidade dos seis jesuítas e duas colaboradoras, Julia Elba e sua filha Celina, que foram assassinados em 19-11-1989 na casa da Universidad Centroamericana "José Simeón Cañas", em El Salvador. Sobrino estava naquele momento viajando pela Tailândia, ministrando um curso de cristologia a missionários/as, quando foi surpreendido por uma ligação à meia-noite de Londres, onde um amigo íntimo lhe deu a triste notícia.
Naquele dia, ele havia falado em sala sobre a morte na cruz de Jesus de Nazaré, mas, embora a cruz de Jesus o afetasse, não tinha nem de longe o peso da notícia que acabavam de lhe dar. Na manhã seguinte, desceu para a eucaristia e a comunidade havia preparado o altar com flores lindamente dispostas no chão. Sobrino não falou durante a missa, e no final alguém timidamente perguntou se ele queria dizer algo, e ele simplesmente disse: "Tenho uma má notícia para lhes dar: mataram toda a minha família. E tenho uma boa notícia: vivi com pessoas boas" (cf. Charo Marmol, Conversas com Jon Sobrino, PPC, Madri, 2018, p. 324).
Durante quinze anos, Sobrino pregou na missa em memória dos mártires, usando o gênero de "cartas dirigidas a Ellacu" (Ignacio Ellacuría, reitor da universidade e líder intelectual do grupo). Na carta de 05-11-1994, intitulada "Voltar ao profundo e escondido", ele diz:
"Alguns pensam que há esperança quando as coisas vão bem e acontecem como desejamos. Mas isso, por necessário, bom e justo que seja, ainda não é esperança. A esperança é outra coisa. É a convicção de que a bondade não é ilusória, de que o amor é mais forte do que a morte. A esperança precisa ser lúcida e pressupõe objetividade, realismo, mas, em última análise, surge e cresce onde há amor".
E cita a obra Retorno ao Futuro (cf. J. Moltmann, Umkehr zur Zukunft, Verlag, Munique, 1970, p. 76): "Não toda vida é ocasião de esperança, mas sim a vida de Jesus que, por amor, carregou a cruz", escreveu Jürgen Moltmann, teólogo alemão que veio rezar no "Jardim das Rosas" há algumas semanas atrás. E acrescentou:
"Lembrar Jürgen Moltmann nesta carta não é apenas ornamental. Após assassinar os jesuítas no terreno fora da casa, introduziram o cadáver de Juan Ramón Moreno em um dos quartos, que resultou ser o meu. Na confusão, caiu da estante do meu quarto um único livro. Era O Deus crucificado de Moltmann, e ficou ensopado no sangue de Juan Ramón. Enviei-lhe uma foto de seu livro ensanguentado. Quando Moltmann veio a El Salvador em 24 de fevereiro deste ano, ele me disse que não vinha para dar nenhuma conferência, mas para rezar no "Jardim das Rosas". E assim ele fez por muito tempo".
O teólogo da libertação Víctor Codina (†2023) visitou El Salvador em 2008 para um encontro de teólogos e recebeu o mesmo testemunho sobre a visita e o espírito de oração de Moltmann no jardim onde descansam e esperam sua ressurreição os mártires da UCA (cf. Víctor Codina, Testemunhos e sonhos pastorais: do sul e do norte, Bonum, Buenos Aires, 2022, p. 176). Moltmann sempre reconheceu que "O Deus crucificado" foi um livro comprometido, no melhor sentido da palavra. Ele encorajou as pessoas a pensarem por si mesmas sobre o sofrimento e o Cristo crucificado.
Ele reconhece ter recebido grande apoio de teólogos anglicanos como Kenneth Woolcombre e Richard Bauckham (que citamos), mas também de teólogos da libertação como Jon Sobrino e Leonardo Boff, com quem compartilhou um livro: (Jürgen Moltmann-Leonardo Boff, Há esperança para a criação ameaçada?, Dabar, México, 2016); assim como do teólogo minjung coreano Ahn Byun-Mu e, para sua surpresa, também do teólogo ortodoxo romeno Dumitru Staniloae, que considerou a dor de Deus incluída no conceito de um Deus misericordioso (cf. Jon Sobrino, Cartas a Ellacuría 1989-2004, Trotta, Madri, 2004, p. 65, 66, 68, 90).
A posição de Moltmann em relação à Teologia da Libertação experimentou uma mudança completa em sua vida e pensamento. Em 1975, ele escreve uma carta aberta ao teólogo metodista argentino José Míguez Bonino, onde reage duramente às críticas que a teologia da libertação fazia à sua própria teologia. Ele rotulava a teologia da libertação como provincialismo teológico e criticava o uso indiscriminado do marxismo. Sem rodeios, ele afirmava que na TdL havia mais recursos das teorias sociológicas de socialistas ocidentais do que da história de vida e do povo latino-americano (cf. Jürgen Moltmann, A teologia da libertação: carta aberta a José Míguez Bonino, Iglesia Viva 60 [1970], p. 559-570).
Dez anos depois, Moltmann mudaria seu julgamento sobre a Teologia da Libertação, reconhecendo sem sombra de dúvida sua solidez teológica e afirmando de maneira eloquente: "Os teólogos da libertação enraizaram-se nas comunidades de base, que são um sinal promissor de reforma da Igreja e da sociedade, e injetam vida de uma maneira que tem algo de milagroso em uma Igreja um tanto apática com o centralismo. E aí, agora, a teologia da libertação tem sua relevância organizativa. Diferente do marxismo! Por isso hoje posso dizer que a teologia da libertação é uma teologia sólida e saudável, e deixo cair completamente as complicações que formulei naquela carta minha. Sei que existem muitas objeções contra a teologia da libertação, especialmente em relação à Igreja popular. No entanto, acredito que a experiência que está por trás do nome Igreja popular é uma nova experiência do Espírito Santo, uma nova experiência pentecostal. É a comunidade dos fiéis que deseja ser sujeito de sua própria história" (cf. Ignacio Ellacuría, Jon Sobrino, Mysterium Liberationis: conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación I, Trotta, Madrid, 1990, p. 63-64).
Isso é chamado de honestidade intelectual, abertura mental, fidelidade à realidade, e essas palavras de Newman sobre "desenvolvimento dogmático" poderiam muito bem se aplicar a Jürgen Moltmann: "Em um mundo superior, acontece de outra maneira, mas aqui embaixo, viver é mudar, e ser completo é ter mudado frequentemente" (J. H. Newman, An Essay on the Development of the Christian Doctrine, Longmans, Green & Co., London, 1875, p. 63). Moltmann, dentro de sua tradição reformada, contribui com sua teologia para uma interessante recepção do que significa ser "católico". Em sua "História de uma vida", ele escreve sobre as assembleias da mundialmente reconhecida revista internacional Concilium, e afirma com convicção que o termo "católico" não deve ser entendido em um sentido confessional limitador. "Não me custou nada identificar-me com essa catolicidade autônoma. Nesse sentido, Concilium me fez 'católico', me converteu, por assim dizer, em um católico evangélico, embora não romano" (cf. J. Moltmann, Weiter Raum: Eine Lebensgeschichte, Gütersloh, 2006, p. 241; citado por Hans Küng, Verdade controvertida: memórias", Trotta, Madri, 2009, p. 306).
Moltmann faz uma reflexão aguda sobre "vigiar e orar" na espiritualidade cristã. A vigilância sempre acompanha a verdadeira oração. Orar é bom, mas vigiar é melhor. Muitas vezes, as pessoas de nosso tempo pensam que aqueles que rezam não pertencem a este mundo, mas têm um pé no além. Muitos consideram que a oração é para pessoas que não têm mais nada a fazer, que só lhes resta o rosário, a adoração eucarística ou o hinário (tradições católicas e protestantes, todas legítimas). No entanto, que a oração tem a ver com o despertar para a "realidade", com a "vigilância" do que pode acontecer, a "atenção" ao presente e a "expectativa" da vida futura, é algo que muito poucos sabem ou têm em mente.
Moltmann observa que, em parte, nós, cristãos, provocamos e levamos muitas pessoas a pensar assim. Nossa linguagem corporal na oração não sugere uma vigilância particular. Fechamos os olhos e olhamos para dentro de nós mesmos em busca de sabe-se lá o quê. Juntamos as mãos, nos ajoelhamos e baixamos os olhos, até mesmo nos prostramos no chão. Ninguém que nos visse teria a impressão de que somos um grupo de pessoas que "esperam" por alguém. Essas atitudes, generalizadas pela "tradição" ("consuetudinis ecclesiae" [costumes da igreja], como Lutero diria), não são mais uma confiança "cega" em Deus, que é expressada por esses tipos de oração e meditação? Por que fechamos os olhos? Não seria muito mais autêntico e verdadeiro, com nossa fé confessada, orar com os olhos abertos e a cabeça erguida? O relato mais impressionante sobre a vigilância é também a hora mais difícil de Jesus: a noite no Getsêmani. O título na Bíblia de Lutero é profundamente revelador: "A luta em Getsêmani", porque trata-se nada menos que da luta interna de Jesus com o abandono por parte de Deus. Sua oração ao Deus a quem chama de Abbá, Pai querido, não é respondida. O cálice da morte eterna não é afastado dele. É a noite do que o filósofo judeu Martin Buber chamava de "eclipse de Deus" que cai sobre ele, sobre os "seus" e sobre "este mundo".
Esta é a razão pela qual, nesta hora, Jesus começou a "sentir pavor e angústia", diz Marcos, "tristeza e angústia", diz Mateus. "Minha alma está triste até a morte", diz aos discípulos (Mt 26, 38). Durante seu ministério na Galileia, Jesus frequentemente se retirava para orar sozinho durante toda a noite nas colinas; mas nesta hora da paixão, ele teme estar só com seu Deus e suplica aos discípulos: "Fiquem aqui e vigiem comigo" (Mt 26, 36). Jesus ora e luta com a escura e misteriosa vontade de seu Deus, e espera que seus discípulos também vigiem em oração. Mas isso não acontece, Jesus "entra" nesse eclipse de Deus vigiando e orando em solidão: "Não se faça a minha vontade, mas a tua". Os discípulos caem em um sono profundo e inconsciente: "Simão, estás dormindo? Não pudeste vigiar nem uma hora?" (Mc 14, 37).
Esta cena, tão triste para Jesus e tão vergonhosa para os discípulos, repete-se três vezes. Jesus debate-se com o lado sombrio de Deus, e a esmagadora inconsciência do sono desce sobre os discípulos até que a noite tenha passado e o dia do Gólgota tenha começado, enfrentando-o Jesus ativa e resolutamente: "Levantem-se! Vamos! Olhem, o que me vai entregar está próximo" (Mc 14, 42).
Em uma cela do mosteiro de Santa Croce, em Florença, há um magnífico afresco de Fra Angelico sobre a cena do Getsêmani. Jesus está orando e os discípulos estão dormindo; mas há pessoas vigiando ao lado de Jesus, duas mulheres. Uma olha com os olhos bem abertos na direção de Jesus enquanto ele ora. A outra está lendo a Bíblia. Estas mulheres são Marta e Maria. Estão vigiando com Jesus e cuidando dele na hora em que ele se vê abandonado por Deus, assim como as mulheres à distância quando Jesus foi crucificado e os discípulos homens fugiram. Moltmann introduz a pergunta teo-lógica: por que os discípulos ficaram dormindo?
Certamente pensariam que se o Mestre, a quem tinham seguido sem medo nem tremor, começava a temer, era porque algum perigo cruel e inescrutável deveria estar à espreita, sem dúvida. Que perigo? Com suas curas de doentes, expulsões de demônios, Jesus tinha comunicado a "proximidade" de Deus de maneiras que podiam ser vistas e percebidas pelos sentidos. Mas para os discípulos, essa proximidade agora se converte claramente em ausência de Deus. Sua sensação de que Deus os havia encontrado é completamente deslocada, tornando-se uma sensação de estar perdidos e sem nada a que se agarrar. É como se tivessem sido derrubados de repente. Por isso, sua reação é a insensibilidade e o sono da desesperança.
Qualquer um que tenha experimentado algo semelhante na vida sabe o que acontece. O perigo iminente pode nos estimular, mas o perigo sem saída nos insensibiliza e nos refugiamos no sono, um sono que nos protege do insuportável. Não é o sono natural e revigorante; é o sono petrificador de todos os nossos sentidos que nos deixa doentes. Temos os olhos abertos, mas somos surdos e não ouvimos nada. Estamos apáticos e não sentimos nada. O sono paralisante que caiu sobre os discípulos de Jesus no Getsêmani não foi apenas um problema deles. Também é um problema nosso. Nosso modo de reagir à crescente crise ecológica ou aos abusos na Igreja não é diferente. Não percebemos a capacidade de destruição da camada de ozônio com a ajuda dos nossos sentidos, nem a desfiguração do rosto de Deus nas vítimas de abusos. A cruz revela a autoimpotência do Deus crucificado. Este "lugar" da revelação é profundamente ecumênico segundo Moltmann. Pois ao pé da cruz estamos todos de mãos vazias.
O ecumenismo surge apenas onde nos descobrimos como irmãos e irmãs, como famintos que sofremos uma pobreza comum (Rm 3, 23), como cativos no mesmo pecado. Quanto mais nos aproximamos da cruz e dos crucificados e crucificadas pelo ódio, discriminação, guerra, fome e submissão em todas as suas formas, mais nos aproximamos de Cristo, mais nos aproximamos uns dos outros. Ao pé da cruz e dos crucificados da história, não somos contados como católicos, protestantes ou ortodoxos. Ali os ímpios são justificados, os inimigos reconciliados, os cativos libertados, os pobres enriquecidos e os tristes repletos de esperança (cf. J. Moltmann, Elisabeth Moltmann-Wendel, Paixão por Deus, p. 67-69; J. Moltmann, O Deus crucificado, p. 176-178; J. Moltmann, Um novo estilo de vida: sobre a liberdade, a alegria e o jogo, Sígueme, Salamanca, 1981, p. 73).
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Jürgen Moltmann, um teólogo em luta com Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU