04 Julho 2012
Para Míguez Bonino, como um teólogo fiel e arraigado no seu tempo e situação, a missão do evangelho é o sentido maior da vida cristã e da tarefa teológica. Em sua reflexão foi ficando cada vez mais claro que a obediência da fé deve se expressar na vivência do amor eficaz. Não por acaso, um dos livros que li ainda durante o curso de teologia tinha por título: Ama y haz lo que quieras (1972) (Ama e faça o que queres),uma citação de Agostinho que ele soube atualizar como poucos para a vida no contexto latino-americano", testemunha Roberto E. Zwetsch, doutor em Teologia, docente da Faculdades EST, de São Leopoldo, em artigo publicado pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação - ALC, 03-07-2012.
Eis o artigo.
"Onde está o centro de tua vida?" - perguntou-se em oração o estudante de Medicina que, ao responder-se, deixou para trás os livros de anatomia para enveredar-se pela teologia.
As igrejas cristãs e a teologia latino-americana acabam de se despedir de um de seus teólogos mais influentes, coerente e sábio. No dia 30 de junho faleceu, na cidade de Buenos Aires, o teólogo, pastor, professor, pai, irmão de fé e de luta José Míguez Bonino. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, ouvi-lo em algumas oportunidades e, mais recentemente, escrever sobre sua teologia da missão, uma das veias de sua longa trajetória teológica e de fé que estava latente na sua obra e que pude resgatar e apresentar a ele com muita alegria. José Míguez ainda pôde conhecer o que escrevi e aprovar, mesmo enfrentando dias difíceis após a enfermidade que o acometeu nos últimos anos.
Com um misto de tristeza e saudade, de reconhecimento e gratidão, gostaria de compartilhar algo do que aprendi com este estudioso das Escrituras, da vida e da realidade latino-americana. Creio que a obra teológica de José Míguez Bonino ainda será revisitada por muito tempo em nossa Pátria Grande, por sua pertinácia, argúcia e senso de realidade da parte de quem conheceu em profundidade a vida e a história das igrejas da América Latina, tanto no que diz respeito às igrejas evangélicas quanto à Igreja Católica Romana. Ele foi um dos poucos evangélicos que participou das reuniões do Concílio Vaticano II (1962-1965), tornando-se testemunha ocular da importância daquele concílio ecumênico para o mundo católico romano, mas também para todo o mundo cristão na primeira parte dos anos de 1960.
José Míguez Bonino nasceu em Santa Fé, Argentina, em 5 de março de 1924. Sua mãe, de origem piemontesa, de quem recebeu o nome Bonino, converteu-se ao evangelho escutando as pregações do missionário metodista Juan Thompson. O pai, um trabalhador portuário, galego, chegou à Argentina em 1900, e foi empregado de uma companhia inglesa de importação. Conheceu a família da esposa no trabalho e foi ela, como narra José Míguez, que o conduziu à fé. Em Buenos Aires, congregaram-se na Igreja Metodista. Mudaram-se para Rosário, onde por algum tempo frequentaram a Igreja Batista. Depois foram viver em Santa Fé, onde retornaram à Igreja Metodista.
José Míguez nasceu e cresceu nesse ambiente de uma família de trabalhadores muito ativa na igreja. Adulto, tornou-se um dos teólogos latino-americanos de maior prestígio por sua coerência teológica, agudez de espírito, produção intelectual e vivência da fé em meio aos conflitos e esperanças que caracterizaram a história da América Latina e, nela particularmente, a história do protestantismo na segunda metade do século XX.
Sobre sua infância e adolescência, José Míguez relembrava com gratidão a vivência “ecumênica” experimentada no seio familiar, pois, dizia, nunca em sua casa assistiu qualquer discussão sobre diferenças entre as igrejas nas quais a família participou. Eram evangélicos e isso bastava. Pai e mãe falavam de seus pastores e amigos considerando a todos de forma igual. Eram ecumênicos sem o saber, escreveu Míguez Bonino. Isso ficou gravado na memória do menino, que só foi batizado aos 12 anos. Após completar o ensino médio, por influência paterna, iniciou a Faculdade de Medicina. Seu coração, porém, estava em outra parte. Gostava de lecionar. Também praticava esportes, o futebol dentre eles, e chegou a conquistar prêmios em competições de atletismo.
Após concluir o segundo ano de medicina, viu-se confrontado com uma pergunta que mudou o rumo de sua vida: “Onde está o centro de tua vida?” E a resposta o constrangeu: “no serviço do Senhor”. Na tarde de um verão sem nada de especial, sentado no pátio da casa, decidiu, em oração, mas sem arroubos espirituais, enveredar pelo caminho da teologia e a preparação para o ministério da igreja. Nessa época, já havia noivado com Noemí, sua futura esposa. Quando comunicou ao pai a decisão, recebeu seu apoio, mesmo ponderando que talvez pudesse ser, no futuro, “um médico missionário”.
O sogro, pregador da Igreja dos Irmãos Livres, advertiu-o sobre os sacrifícios que essa decisão poderia trazer. Mas também o apoiou, abrindo a casa para o jovem casal, durante o tempo em que o genro estudou na Faculdade Evangélica de Teologia, em Buenos Aires (1943-1947). Em 1945, no meio do curso, fez seu ano de inserção prática na Bolívia, numa feliz coincidência: o missionário de uma congregação devia passar um ano nos EUA. Ele foi convidado a substituí-lo junto com uma atividade docente na Escola Metodista de Cochabamba. Mais tarde escreveu que aquele foi “seu curso intensivo em realidade latino-americana”, pois teve oportunidade de conhecer a realidade indígena no país vizinho, a pobreza e o sincretismo do povo, sua música e dança, que aconteciam todos os fins de semana debaixo da janela do seu quarto.
Nos estudos teológicos, sentiu-se desde cedo atraído pelos estudos bíblicos e da história. A teologia sistemática de tendência liberal lhe parecia inconsistente. Acabou enveredando pelos estudos bíblicos, pela história contemporânea da igreja e a teologia ecumênica, além de aprofundar-se no diálogo com as ideologias e a luta pelos direitos humanos.
Foi nessa época que conheceu a teologia de Karl Barth, o teólogo da Teologia Dialética, trazida da Europa por pastores reformados franceses que vieram lecionar em Buenos Aires, como o Dr. Foster Stockwell. Barth e a teologia dialética ajudaram esses estudantes a integrar as preocupações sociais, a crítica ideológica e a fé evangélica. Mais tarde, a contribuição de Paul Tillich e dos irmãos H. Richard e Reinhold Niebuhr, o testemunho e martírio de Dietrich Bonhoeffer, a teologia ecumênica de Visser’t Hooft, primeiro secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), além de sua participação em eventos ecumênicos como o I Encontro Ecumênico do Pós-Guerra, numa conferência de juventude celebrada na Noruega em 1945, irão repercutir positivamente na sua teologia, que se tornou radicalmente evangélica e ecumênica, ao mesmo tempo.
Casou-se com Noemí em 1947 e desse matrimônio nasceram três filhos: Néstor, Eduardo e Daniel. Depois de escrever a tese de licenciatura sobre o debate entre Lutero e Erasmo (na qual Lutero saiu vencedor, “ao menos nos meus papéis”, como escreveu posteriormente com fina ironia), o jovem pastor foi enviado à congregação metodista de San Rafael, Mendoza, ao pé dos Andes. Nessa cidade reencontrou-se com um pastor batista que conhecera no tempo de estudante e com ele iniciou uma parceria evangelística e de aprofundamento bíblico. Ambos decidiram oferecer às suas congregações e pessoas interessadas breves seminários sobre “Bíblia e Sociedade”, discorrendo sobre temas candentes da época. Essas aulas lhes abriram a oportunidade para longas conversas com todo tipo de gente, desde fundamentalistas, cristãos moderados até socialistas e agnósticos.
Míguez Bonino contou sobre este período: “Estava convencido de que, se íamos levar a sério a evangelização, (esta) não podia ser tarefa do pastor somente, mas de toda a congregação, pessoal e coletivamente. E isso significava oferecer uma sólida formação bíblica desde a Escola Dominical e dali em diante”.
Outro meio que dinamizou seu ministério foi um programa dominical na rádio da cidade. Nele, o pastor procurava relacionar a “fé evangélica aos fatos da vida cotidiana da cidade e do país”. Ocorre que não demorou muito para que as autoridades sugerissem ao gerente da rádio que “poderia haver programas melhores para este horário”, o que significou que o programa foi sumariamente suspenso. Assim acontece quando se relaciona de forma coerente o evangelho com a vida das pessoas.
Mais tarde, relembrando esses anos de ministério, Míguez Bonino afirmou que neles adquiriu as convicções fundamentais de toda a sua vida. Essas convicções ele as levou para o ensino teológico. Desde os anos de 1950, tornou-se professor na Faculdade Evangélica de Teologia de Buenos Aires. Fez os estudos de doutorado no Union Theological Seminary, de Nova Iorque, concluído em 1960, defendendo tese sobre o tema Escritura e Tradição no pensamento católico e protestante.
Depois de retornar a Buenos Aires, tornou-se reitor da Faculdade Evangélica de Teologia que acabou se associando à Faculdade Luterana de Teologia, surgindo dessa união o atual Instituto Universitário ISEDET. Participou de várias instituições ecumênicas como ASIT – Associação de Seminários e Instituições Teológicas, ISAL – Igreja e Sociedade na América Latina, CETELA – Comunidade de Educação Teológica Ecumênica Latino-Americana e Caribenha, FTL – Fraternidade Teológica Latino-Americana, CLAI – Conselho Latino-Americano de Igrejas. Em 1975, foi eleito como um dos presidentes do CMI. Sua liderança e contribuição à causa ecumênica na América Latina, confirmada mais de uma vez durante sua longa vida, são um testemunho que marcou a segunda metade do século XX no cristianismo latino-americano.
Mas uma área em que a contribuição de Míguez Bonino mais se tornou decisiva foi na teologia. Hoje em dia poucos se dão conta que a Teologia da Libertação na origem foi uma teologia ecumênica, elaborado a muitas mãos e mentes, e a partir de referenciais evangélicos que moviam corações e mentes de teólogos tanto evangélicos quanto católico-romanos. Quando em 2012 se estará lembrando os 40 anos da Teologia da Libertação, é importante registrar este lado ecumênico tão importante para o desenvolvimento da teologia na América Latina.
Não por acaso muitos dos teólogos e teólogas dos inícios são procedentes de diferentes igrejas evangélicas. Podemos citar alguns dos mais conhecidos: Rubem Alves, Julio de Santa Ana, Elsa Tamez, Beatriz Melano Couch, Milton Schwantes, e o próprio José Míguez Bonino. Ele foi um dos primeiros teólogos protestantes a apresentar a teologia da libertação para um amplo público ecumênico de fala inglesa, ao escrever o livro Doing Theology in a Revolutionary Situation, publicado em 1974, na Filadélfia, EUA.
Devido ao golpe militar perpetrado contra o governo civil na Argentina em 1976, a versão em espanhol foi publicada na Espanha, pelo Editorial Sígueme, em 1977, com o título La fe en busca de eficacia: una interpretación de la reflexión teológica latinoamericana de liberación. Este livro foi traduzido ao português apenas em 1987 e publicado pela Editora Sinodal, de São Leopoldo, com o mesmo título da edição espanhola.
Um marco em sua vida pública foi seu compromisso evangélico e como cidadão na defesa de pessoas perseguidas durante a ditadura militar argentina. Por isso, ajudou a fundar a Assembleia Permanente dos Direitos Humanos em seu país. Nunca soube refugiar-se numa falsa neutralidade, o que lhe valeu não poucos dissabores. Mas também amizades profundas. Contou ele que certa vez, na saída de uma das reuniões da Assembleia, no período obscuro da ditadura, não pôde evitar dizer a um de seus amigos comunistas: “Boa noite, dom Jaime, que Deus o bendiga”. O amigo o mirou confundido, mas logo, sério e visivelmente comovido, replicou: “Sim, José, que Deus nos bendiga”. E continuou a ser um militante comunista.
A preocupação sociopolítica, que o acompanhou por toda a vida, levou-o a ser eleito, em 1994, como membro independente (isto é, sem vínculo partidário, o que não aconteceu no caso brasileiro!) da Convenção Nacional Constituinte que reformulou a Constituição da Argentina pós-ditadura. Numa avaliação, Míguez Bonino afirmou que ele e seus companheiros e companheiras conseguiram bem menos do que esperavam da nova Constituição, mas que essa experiência só reafirmou a luta pela vida e pela justiça, as quais desafiam permanentemente a fé e o compromisso cristãos. Sem se afastar do ministério pastoral, onde quer que tenha atuado, conseguiu durante mais de 50 anos de vida ativa aliar a docência ao pastorado, algo raro entre teólogos acadêmicos. Ele testemunhou de forma lapidar sobre suas convicções mais arraigadas, ao comemorar 80 anos e ser homenageado por ex-alunos e toda a comunidade acadêmica do ISEDET, de Buenos Aires, dizendo:
- A missão é o privilégio e a responsabilidade de todo o povo de Deus, a missão e a responsabilidade “ecumênica” de todo o povo de Deus, a missão é o anúncio e o tornar presente o Reino de Deus, o Reino do shalom (paz), da tsedaqah (justiça), da hesed(bondade, amor) – por parte de todo o povo de Deus.
Para Míguez Bonino, como um teólogo fiel e arraigado no seu tempo e situação, a missão do evangelho é o sentido maior da vida cristã e da tarefa teológica. Em sua reflexão foi ficando cada vez mais claro que a obediência da fé deve se expressar na vivência do amor eficaz. Não por acaso, um dos livros que li ainda durante o curso de teologia tinha por título: Ama y haz lo que quieras (1972) (Ama e faça o que queres),uma citação de Agostinho que ele soube atualizar como poucos para a vida no contexto latino-americano.
Num de seus últimos livros, Rostos do protestantismo latino-americano, traduzido ao português pela Editora Sinodal (2003), Míguez Bonino propõe criticamente ao mundo evangélico uma “evangelização a partir de baixo”, o que significa valorizar as experiências religiosas dos setores populares, mas sob a chave interpretativa da teologia da trindade. Por isso ele defendeu uma cristologia pneumática, uma cristologia relida desde a ação atual do Espírito Santo. Escreveu ele: “uma teologia trinitária tentará ver e ouvir o que o Espírito do Senhor – o Jesus Cristo presente – opera na fé desses setores populares para atualizar a unidade da Palavra eterna da criação, da carne histórica de Jesus Cristo e da experiência da fé do povo”.
É essa mesma teologia que permitirá às igrejas cristãs, em particular às igrejas evangélicas, recuperar na sua caminhada de missão e evangelização a tradição profética que Jesus assumiu e reclamou para si. Num contexto de tantas injustiças sociais, tanta confusão teológica e práticas cristãs mesquinhas, é essa tradição profética que poderá desafiar as igrejas, comunidades e cada pessoa de fé a se engajar nas lutas por libertação de todas as formas de escravidão e por um ambiente ecologicamente preservado e humanamente habitável. Que a teologia e o testemunho de José Míguez Bonino continuem a repercutir por toda a América Latina por muito tempo.
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A pergunta que mudou a trajetória de José Míguez Bonino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU