30 Setembro 2014
Reproduzimos esta entrevista, realizada na Universidade de Munique, na Baviera (22 de outubro de 1979). Ainda é interessante, não só para compreender o percurso teórico do teólogo recentemente falecido, mas também para a história da teologia, enquanto se estende de sua atividade acadêmica até os limiares da grande obra “Teologia sistemática”, composta nos anos Oitenta e Noventa. É de notar que Pannenberg entra no Catálogo Queriniana desde 1974; e tem sete títulos na Biblioteca de teologia contemporânea, além de algum título menor no Giornale di teologia. A “Teologia sistemática” em três volumes – uma grande obra da teologia do século vinte – é integralmente disponível em três idiomas: o original alemão, o inglês-americano e a língua italiana.
A entrevista foi realizada pela Universidade de Munique com o teólogo Wolfhart Pannenberg e reproduzida por Rosino Gibellini no livro Teologia e Ragione. A notícia foi publicada pelo boletim eletrônico Teologia@Internet, 26-09-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Recordo-o em algumas conversações na Faculdade de teologia evangélica da Universidade de Munique da Baviera, onde também assisti a algumas de suas lições em 1975: elegante, em pé diante do estrado e cultíssimo nas citações. Também se pode dizer que Pannenberg foi o teólogo que conhecia igualmente como poucos a história do pensamento cristão. Apresentei-o publicamente na Itália, convidado para uma palestra sobre o tema “Cristianismo e sociedade”, na Biblioteca Germânica de Milão e no Instituto Stensen de Florença. Encontrei-o também na America Academy of Religion, em Filadélfia nos USA, em novembro de 2005, onde apresentou uma palestra sobre o seu percurso com o título “Uma peregrinação intelectual”.
Eis a entrevista.
Prof. Pannenberg, Você completou os seus estudos universitários de filosofia e de teologia primeiro em Basiléia e depois em Heidelberg. Como vê hoje o ensinamento de seus grandes mestres: Karl Barth, Gerhard von Rad, Nicolai Hartmann, Karl Jaspers e Karl Löwith?
Em teologia certamente o meu débito maior é com Karl Barth e Gerhard von Rad. Do grande estudioso veterotestamentário de Heidelberg adquiri uma perspectiva de teologia da história, que eu depois procurei estender ao cristianismo primitivo e à história da igreja e que transpus numa concepção sistemática. A permanente proximidade do meu pensamento a Karl Barth escapou em geral aos meus críticos. Mas, na realidade há um vasto acordo com os pensamentos fundamentais de Barth – a soberania de Deus, a singularidade de sua revelação em Cristo, a universalidade da teologia – também se depois cheguei à convicção que estes pensamentos fundamentais deviam ser desenvolvidos numa via de todo diversa daquela praticada pelo próprio Barth. Principalmente o pensamento da soberania de Deus sobre o mundo não pode encontrar aplicação na forma de uma dualística contraposição de Deus à realidade natural, mas, se Deus é o Criador de todas as coisas, então o teólogo deve partir da confiança de que a presença de Deus constitui tudo o que é. Neste sentido, o meu modo de proceder em teologia, orientado mais historicamente ou, dito em termos mais gerais, orientado empiricamente, é inspirado pelo pensamento barthiano da soberania de Deus. Dos meus mestres de filosofia nenhum foi de importância tão duradoura. Em Karl Löwith me atraía o seu esforço de busca dos pressupostos teológicos da filosofia da história, que durante os meus anos heidelbergianos de estudo me parecia convergir com o trabalho teológico de Gerhard von Rad, embora fosse claro que para von Löwith a dependência da filosofia da história de pressupostos teológicos valia antes como argumento de crítica. Sua própria posição de um retorno a uma compreensão pré-histórica, ‘natural’ do mundo sempre me pareceu estranha. Karl Jaspers mediou-me a posição do protestantismo liberal, que reconhece o tema da religião como essencial para o ser - humanos, mas que nutre, todavia, reservas nos confrontos do cristianismo. Também hoje ainda me parece necessário fazer frente intelectualmente a semelhantes questões críticas dirigidas à teologia. Todavia, como filósofo Jaspers não conseguiu, no decurso do tempo, convencer-me, por causa de sua sub-valoração da tarefa de uma penetração conceitual-filosófica da experiência do mundo: a esta ele deixava demasiadamente em função do positivismo de cada ciência e limitava a filosofia a uma auto-compreensão do homem sobre sua situação vital. No que se refere à exigência de uma penetração filosófica da experiência do mundo, recebi mais impulsos de Nikolai Hartmann, que me introduziu na grande tradição filosófica. Todavia, tornei-me rapidamente convicto que Hartmann, em sua tentativa de renovação da metafísica permanecia demasiado dependente do neokantismo. O meu mestre de filosofia mais importante foi depois Hegel, que de certo modo redescobri sozinho, quando como livre docente preparava, em 1956, as minhas primeiras aulas sobre história da teologia do século XIX.
Sua Habilitationsschrift de 1955 sobre o tema Analogia e Revelação permaneceu como “Incompleta”, pelo menos até agora e ainda não foi publicada (*). Como se coloca este trabalho no contexto de se iter teológico, e quando a obra será completada e publicada?
Minha Habilitationsschrift de 1955 sobre Analogia e Revelação permaneceu incompleta principalmente por um motivo extrínseco, porque a partir de 1961 eu estava todo preso no fazer frente aos ataques ao programa Revelação como história. Em conexão com isto pareceu-me, então, necessário escrever também uma Cristologia, para aplicar este programa a uma central da teologia cristã. Mas, há também um motivo mais profundo no fato de que minha Habilitationsschrift tenha permanecido incompleta. A história do conceito de analogia devia ser exposta a partir da filosofia pré-socrática até o nosso século e, enquanto em 1955 eu tinha chegado somente ao século XIII, nos anos seguintes continuei a exposição até Kant. Mas depois, durante o trabalho chegou um deslocamento nas minhas concepções em discussão com a doutrina da analogia. Sobretudo então eu não estava satisfeito daquilo que se me propunha com a palavra-chave “Revelação” para uma fundamentação alternativa do discurso teológico sobre Deus nos confrontos da doutrina da analogia. Toda a minha evolução teológica pode ser compreendida como um contínuo estar envolvido com este problema. Há aí, sobretudo uma estreita conexão entre minha crítica ao conceito de analogia e a evolução de minha teologia da história na linha da teologia franciscana do tardio século XIII e do século XIV com sua acentuação da contingência do agir divino. O ponto de partida para isto encontra-se já na minha crítica a Duns Scotus, em minha dissertação de Heidelberg de 1953. A alternativa à doutrina da analogia para uma fundamentação do discurso cristão sobre Deus, que há alguns anos considero para mim tê-la encontrado, até agora a expus de modo sistemático somente nas minhas lições acadêmicas de dogmática. E deverá ser publicada um dia desta forma. Mas, antes há outros projetos. Após o que voltarei voluntariamente a empenhar-me com a história do conceito de analogia.
Quando começou o Heidelberger Kreis, que teria dado o seu fruto maior no fascículo-programa Revelação como história em 1961? Como funcionava o Círculo? Como se dissolveu? E que coisa resta do trabalho feito e dos projetos cultidvados?
O Heidelberger Kreis nasceu da necessidade de nós estudantes de Heidelberg ganharmos uma visão global da teologia, que nos professores de Heidelberg encontrávamos na disparidade das várias disciplinas, e isto na base do trabalho de Gerhard von Rad, que se apresentava como prometedor de uma nova orientação para toda a teologia. O escrito programático Revelação como história, de 1961, fez depois a tentativa de coligar exegeticamente teologia histórica e teologia sistemática, em referência, sobretudo ao problema, que então sob o influxo de Karl Barth era considerado como fundamental, do conceito de revelação. O Círculo de Heidelberg, já a partir de 1951, em suas reuniões primeiramente semanais, e sucessivamente, após a partida de Heidelberg de alguns membros do Círculo a intervalos mais distanciados, havia tratado de modo análogo toda uma série de outros temas teológicos, e precisamente mediante uma nova formulação das questões dogmáticas na base dos resultados da ciência exegética e histórica sobre os referidos temas. Os membros do Círculo tinham de tempos em tempos a função de se tornarem intérpretes de uma disciplina teológica específica e de fazê-lo de modo que nas discussões as suas problemáticas não viessem a ser desatendidas. O Círculo se dissolveu pouco após a aparição de Revelação como história. Junto aos motivos pessoais agiu um importante motivo de fundo: com o tempo não houve mais um pleno acordo sobre a importância fundamental da Ressurreição de Jesus para a teologia vista na sua totalidade. Alguns membros do Círculo não queriam mais ver esta questão como a questão fundamental. E, como o Círculo desde o início se propusera não só de discutir, mas de chegar de quando em vez a uma concepção que pudesse ser compartilhada por todos os membros, parece então conveniente pôr fim ao trabalho comum.
Nos anos sessenta a teologia alemã foi influenciada pela filosofia de Ernst Bloch. Você mesmo escreveu em 1965 um ensaio muito citado, de título O Deus da esperança, que revela inspiração da filosofia da esperança de Bloch. Como avalia hoje complexivamente a influência de Ernst Bloch sobre a teologia?
O influxo de Ernst Bloch sobre minha teologia foi com frequência supervalorizado. Eu li Bloch pouco antes de terminar o meu livro de Cristologia, e, portanto somente em 1963, enquanto Moltmann já há tempo e muito mais profundamente tinha sido influenciado por ele. E constatei certa convergência da direção escatológica da minha teologia com o pensamento de Bloch; estava, pois, pronto em 1965 à miscelânea em honra de Bloch. Em referência ao alargamento filosófico da perspectiva, descoberta originariamente a partir da Cristologia e, em espécie, a partir da tradição da páscoa, reconheço ter recebido impulsos de Ernst Bloch. Mas, Bloch jamais colocou a questão no modo pelo qual a mim parecia que fosse posta, isto é, no sentido de uma rigorosa prioridade ontológica do futuro como futuro de Deus. Por isso a possibilidade de aprender de Bloch era para mim limitada. Acrescente-se a isso que a rigorosidade do conceito filosófico jamais foi a força do pensamento de Bloch. Ele foi antes um grande escritor que empregava toda a vastidão de sua cultura para dar colorido a um quadro visionário, que traía sua inspiração de uma conjunção de fé judaica e marxismo. Bloch, no entanto jamais atingiu o rigor do trabalho conceitual de um Aristóteles, de um Kant ou de Hegel.
Em 1973 apareceu junto à prestigiosa Cada Editora Suhrkamp de Frankfurt a sua obra Epistemologia e teologia. Esta obra tem sido vista por alguns críticos como um “ir além e contra Barth”. Como avalia Você esta sua obra no contexto da teologia alemã do nosso século?
O meu livro Epistemologia e teologia de 1973 nasceu no quadro de um projeto mais vasto, de uma interpretação teológica da razão, que deveria assumir a forma tanto de uma exposição histórica como também sistemática da crítica da consciência. Ao conceito de ciência era dedicado no quadro deste projeto um capítulo, que acabou por superar os seus limites. Além disso, a intensa discussão epistemológica daqueles anos sugeria tratar previamente este tema num livro específico, a fim de dar destaque à teologia na base daquela discussão geral. O livro tem, pois, aos meus olhos um valor parcial. Isso assinala o ponto no qual minha fadiga por uma renovação, fundada a partir do espírito da escatologia, da doutrina filosófica do conhecimento de uma parte, e da tradição ontológica e metafísica da outra, se intercalava com as problemáticas atuais do nosso tempo.
Por diversas vezes você falou de uma Teologia da razão, que gostaria de escrever. Para quando prevê a realização de tal projeto?
O projeto de uma teologia da razão foi desenvolvido por diversas vezes em forma de lições e existe nesta forma. O meu propósito inicial era aquele de reelaborar este projeto mediante uma utilização mais ampla da história da teoria filosófica do conhecimento, como também da discussão atual das questões conexas. Desse modo, no entanto, resultaria uma obra em mais volumes, que me afastaria demasiado de outros compromissos mais urgentes. Acabei por dar a precedência a este projeto ao meu livro de antropologia, que estou ultimando, ao qual presumivelmente deveria seguir uma monografia sobre a eclesiologia. Somente quando estiver ultimada uma apresentação global da dogmática do ponto de vista da doutrina sobre Deus, retornarei a temas mais filosóficos, ao projeto de uma teologia da razão e de uma interpretação da tradição ontológica a partir da perspectiva da escatologia.
Tem sido escrito que alguns ensaios seus são a expressão mais clara de uma Hegelrenaissance em teologia. Como você vê a relação de seu pensamento com Hegel e, mais em geral, da teologia cristã moderna com Hegel?
É-me difícil delinear, no breve giro de algumas frases, a minha relação com a filosofia de Hegel. Por um lado, considero Hegel como o maior filósofo da época moderna. Ele é simultaneamente o filósofo que se situa ante o cristianismo com a maior abertura. Mas, há motivos, que há alguns anos expus numa análise sobre o significado do cristianismo na filosofia de Hegel, os quais vetam que a teologia cristã se possa identificar simplesmente com a filosofia de Hegel. No entanto, eu de fato não me considero um hegeliano, embora alguns dos meus discípulos tenham enveredado por esta estrada. Para mim, Hegel representa o maior desafio para um contra-projeto, que não seja pelo menos do nível de sua reflexão didática, mas que deve equiparar-se com isso.
Com frequência você faz referência ao Iluminismo e à necessidade de aceitar o desafio lançado pelo Iluminismo para uma racionalidade crítica também em teologia. Mas, de uma parte, jamais faz referência às querelas sobre o Iluminismo introduzidas pelos Francofortenses, e, da outra, Lhe foi criticado – por ex. por alguns representantes da teologia da libertação – de não fazer as contas com o desafio lançado pelo segundo Iluminismo, representado por Marx e pela filosofia da práxis em geral.
O Iluminismo do século XVIII foi um fenômeno muito complexo. Em parte se dirigiu contra o cristianismo, e até contra toda religião. Mas, talvez isto seja apenas uma linha marginal. Em sua tendência de fundo o Iluminismo inglês, e também o alemão, não era anticristão. Mas continha o desafio para uma reformulação dos conteúdos religiosos e cristãos sobre o terreno da razão moderna. Neste sentido me parece que o Iluminismo seja fundamental nos confrontos da orientação pré-moderna da teologia que se confia a uma instância de autoridade que lhe garanta de maneira prévia a verdade. Aquilo que, em conexão com o neo-marxismo, se chama o ‘segundo’ Iluminismo da Escola de Frankfurt, a meu aviso, está em conexão muito alentada com o Iluminismo. Na medida em que se trata de marxismo e de neo-marxismo, eu acho que neste movimento é perdida a universalidade da razão iluminista. Parece-me que ela sofra uma contradição a favor de outra, desta vez marxista, por fé na autoridade. Com o marxismo me confrontei com muito empenho desde os inícios de meus estudos em Berlim e rapidamente cheguei ao resultado de que se tratava de um tipo de pensamento significativo, mas também de todo datado no século XIX e desgastado para o nosso tempo. Sem os países que hoje fundam o seu ordenamento social sobre uma ideologia marxista, seria este também o juízo geral. A atualidade do marxismo se funda menos sobre raízes racionais do que não sobre raízes políticas e emotivas. Por isso, precisamente o neo-marxismo da Escola de Frankfurt me parece que represente um limite à sua pretensão de introduzir uma renovação do Iluminismo. Por quanto diz respeito aos teólogos da libertação, compartilho com estes teólogos o juízo sobre a necessidade de uma renovação das estruturas sociais e também econômicas da convivência humana, a partir o espírito cristão. Mas, eu não penso que o marxismo, com sua envelhecida teoria da economia e com o seu messianismo secularizado, seja de alguma ajuda. Parece-me que não seja a força, e sim a debilidade dos teólogos da libertação, o fato de que eles estejam em vasta medida dependentes do instrumental analítico do marxismo, ao invés de aprontar um próprio instrumental da teoria da sociedade fundado sobre bases cristãs. O marxismo é hoje uma alternativa à fé cristã. Neste sentido, se pode aprender muito disso. Mas, não se pode assumi-lo sem que vá perdida a integridade da perspectiva cristã.
Como avalia a situação atual da teologia da ‘ecumene’ cristã?
A unidade ecumênica cristã está no centro do emprego prático da minha teologia. Uma cristandade ecumênica só pode ser pluralista, e sua realização será, portanto, possível somente no terreno de uma compreensão da verdade que se tenha libertado do dogmatismo e da intolerância dos séculos precedentes e, precisamente por isto, torne possível uma nova validez universal do cristianismo e uma correspondente ação por uma reestruturação também da convivência social dos homens. Infelizmente a evolução dos últimos dez anos mostra uma progressiva estagnação do processo ecumênico para a realização de uma unidade dos cristãos. Estamos diante de uma resignação muito difusa. Pode dar-se que da perspectiva de um país profundamente marcado em sentido católico-romano em sua cultura e população não pareça tão urgente a necessidade de uma unidade cristã. Mas, em vista da situação humana e especialmente em vista da cultura ocidental em sua globalidade, não me parece possível nenhuma brecha em direção a um novo futuro do cristianismo sem a superação das contraposições confessionais. A chave da operação está nas mãos da Igreja católico-romana. Do Papa, que se compreende como o supremo detentor do ofício da inteira cristandade, que é responsável pela unidade de todos os cristãos, dever-se-ia esperar que ele se fizesse intérprete no modo mais agudo possível não só da unidade da hodierna igreja católico-romana, mas da unidade ecumênica de todos os cristãos. Os diálogos ecumênicos sobre as contraposições doutrinais confessionais progrediram nas últimas duas décadas muito mais do que pensa a maior parte dos cristãos. Devemos perguntar-nos, diante desta situação, se as igrejas ainda tenham o direito de permanecer separadas e se excluindo reciprocamente da comunhão da eucaristia. É verdade, esta questão deverá encontrar gradual solução nas tratativas recíprocas das igrejas. Mas, a iniciativa decisiva, sem a qual nenhum progresso é possível na questão ecumênica, deve partir do Papa. E, se do bispo de Roma devesse partir tal iniciativa, então a mesma encontraria reconhecimento de sua pretensão de ser guia universal na cristandade.
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Entrevista teológica com Wolfhart Pannenberg - Instituto Humanitas Unisinos - IHU