13 Março 2023
O cardeal Walter Kasper completou 90 anos no dia 5 de março. Embora oficialmente aposentado, ele continua sendo um dos cardeais alemães mais influentes no Vaticano.
Nesta entrevista, ele faz um balanço e oferece um olhar sobre o futuro da Igreja. A entrevista foi publicada originalmente pela agência KNA e republicada por Settimana News, 10-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Senhor cardeal, quando repensa os 90 anos de sua vida, o que o emociona de modo particular?
Sobretudo a gratidão. Pelo fato de ainda estar relativamente saudável, de poder fazer tudo sozinho, e isso não é algo evidente nesta idade. E por tudo o que me foi concedido viver nestes anos.
A época do Concílio Vaticano II, há 60 anos, também faz parte dessas experiências. Quais suas lembranças?
Foi um tempo de partida! Foi uma surpresa total quando soubemos pelo telejornal que João XXIII havia convocado um concílio ecumênico. Naquela época, eu frequentava a Universidade de Tübingen, onde obtive meu doutorado e, posteriormente, minha habilitação.
O Concílio despertou um grande entusiasmo e foi um grande momento para mim também. Ele mudou muitas coisas. Quem diz que a Igreja não pode ser reformada deveria ter em mente essa profunda mudança! Eu a vivi. Na época, éramos felizes por sermos católicos. As portas haviam sido abertas. De repente, teólogos católicos e protestantes puderam se encontrar e discutir entre si, o que não ocorria antes.
Cultivamos muito bem essa troca em Tübingen. Uma vez por mês nos encontrávamos, eu, Küng, Moltmann, Jüngel, primeiro para jantar e, depois de comer, bebíamos alguns copos de vinho e discutíamos apaixonadamente até depois da meia-noite. Foi um momento formidável.
No entanto, isso não lhe impediu de se pronunciar posteriormente pela exclusão de Küng da faculdade de teologia.
Aquelas foram as semanas mais difíceis da minha carreira acadêmica. Eu tinha uma relação de colega com ele e tinha aprendido muito com ele. Mas não estava de acordo com ele em alguns pontos cruciais. Antes da revogação da licença de ensino, a faculdade estava dividida, alguns eram contrários e protestavam, outros achavam que a disposição estava certa no que diz respeito aos conteúdos. Eu era um deles. Mas foram outros que decidiram.
O que não me agradou foi o modo como Küng reagiu e polemizou publicamente. Ele provou ser um suíço teimoso.
Voltando ao Concílio, 60 anos depois parece que questões relevantes hoje não foram abordadas naquela época.
Questões muito importantes foram abordadas, mas obviamente não todas. Por exemplo, o Concílio colocou a interação entre bispos e papa, mas também entre leigos e clero, sobre novos fundamentos teológicos. Mas não esclareceu como isso deveria funcionar exatamente.
E é isso que o Papa Francisco quer agora esclarecer com o Sínodo sobre a Sinodalidade. Por outro lado, a forma sinodal remete à tradição, porque os sínodos fazem parte da vida da Igreja desde o início. Depois da Idade Média, isso havia se ofuscado um pouco, mas agora está revivendo em novas modalidades. Não se deve esquecer que os leigos, especialmente os detentores de poder, também tiveram grande influência nos sínodos do passado.
Que novos temas foram somados? A questão das mulheres, o problema da identidade e da orientação sexual?
O Concílio já disse algo sobre a questão da mulher, sobretudo no que diz respeito à sua posição na sociedade. Mas a questão das mulheres dentro da Igreja permaneceu muito nas sombras e agora está reaparecendo. O mesmo vale para outros assuntos. As relações homossexuais eram um tabu na época. Tudo isso se manifestou depois de 1968, ou seja, depois do Concílio.
Quem mais tarde abordou esses temas foi seu aluno, o teólogo moral Eberhard Schockenhoff, falecido em 2020. Para o Caminho Sinodal na Alemanha, ele foi um pioneiro nesses temas. Como era sua relação com ele?
Éramos amigos. Todas as vezes que ele vinha a Roma, havia uma viva troca de ideias. Nem sempre concordamos em tudo. Mas a relação continuou e se tornou muito sólida. Li muito do seu livro póstumo sobre a ética sexual. Já existe uma clara reavaliação nele, mas meu aluno não foi tão longe quanto o Caminho Sinodal agora. Tratava-se de aberturas, mas sempre baseadas na Bíblia e na Tradição. É o que falta agora, sobretudo para dar um bom fundamento teológico ao Caminho Sinodal.
Chegamos ao Caminho Sinodal. O que o senhor acha dele? Aonde nos leva?
Temo que atualmente estejam se alimentando de ilusões. Acho quase impossível que as resoluções do Caminho Sinodal possam ser implementadas na Igreja universal. Naturalmente, existem pessoas em outros países que também pensam da mesma forma. Mas estão bem longe de constituir uma maioria. Isso vale para a ordenação das mulheres, por exemplo. Ou para a ideia de cogestão democrática na liderança da Igreja. A Igreja não é uma democracia! Grande parte desse tema em particular não foi pensado teologicamente ou em termos de Tradição. A Igreja não pode ser reinventada.
Outros bispos e cardeais estão agora alertando para um cisma. O senhor também teme isso?
O Caminho Sinodal enfatiza repetidamente que não quer nenhum cisma, e eu acredito nisso. Mas também se pode tropeçar em um cisma. Mais ou menos como as grandes potências tropeçaram na Primeira Guerra Mundial, embora ninguém realmente a queria. É preciso considerar atentamente esse fato. Mesmo na Alemanha, as questões que vêm de outras Conferências Episcopais devem ser levadas a sério, e não se deve presumir que já se conhece a verdade. Essa atitude torna os alemães impopulares no exterior. Se encontro cardeais aqui em Roma, eles balançam a cabeça quando se fala dos alemães. Então, tento explicar algumas coisas.
Uma semana após seu 90º aniversário, completa-se o 10º aniversário da eleição do Papa Francisco. Presumo que o senhor estava do lado dele naquele momento. Já se arrependeu alguma vez?
Eu estou do lado do Papa Francisco. Isso não significa que eu considere correta toda palavra que ele diz ou todo ato que ele faz. Mas, uma vez eleito um papa, vale para ele o princípio de lealdade, especialmente na Cúria, caso contrário não funciona. Agora já não o vejo com tanta frequência como antes, mas, quando ele me telefona, dou-lhe conselhos se ele pedir.
Francisco está sob pressão de dois lados: há os conservadores, que rejeitaram seu estilo desde o início, e agora também há críticas do Ocidente, por exemplo na Alemanha, onde estão pressionando pelas reformas. Ele é um homem do Sul, tem problemas completamente diferentes que são importantes para ele, isso deve ficar claro. O que ele pôs em movimento exigirá outro pontificado ou dois, antes de ser plenamente implementado. Espero que, depois dele, venha alguém que implemente esses impulsos de acordo com sua sensibilidade.
Alguns reformadores acreditam que a mudança é a melhor resposta para a crise epocal da Igreja deste tempo. Qual a sua opinião?
A Igreja vive uma crise muito profunda. Não ver isso seria uma loucura. E a causa não é apenas o escândalo dos abusos. A crise é muito mais ampla e profunda. Diz respeito a todo o mundo ocidental. A Igreja se encontra em uma convulsão epocal. Não se pode simplesmente continuar como antes, isso está fora de questão.
Mas nenhum de nós sabe como será o futuro da Igreja em detalhes. Tudo o que eu sei é que, se não tivesse vivido a aventura do Concílio, dificilmente poderia suportar esta crise. Mas acredito que dar respostas é a tarefa de uma nova geração na Igreja agora.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
‘‘A Igreja se encontra em uma convulsão epocal. Não ver isso seria uma loucura’’. Entrevista com Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU