05 Abril 2023
O artigo é de Michael Moore, publicado por Religión Digital, 04-04-2023.
Algumas palavras preliminares de contextualização necessária: tenho a honra de estar, nestes dias, na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas) em El Salvador, mais especificamente no Centro Monseñor Romero, oferecendo um curso sobre a teopoética de Pedro Casaldáliga. E, relendo seu livro Cartas abertas em frente ao Jardim de Rosas, me deparei com o seguinte poema que ele escreveu, contemplando este mesmo lugar, há mais de trinta anos:
Poema dos Mártires (Imagem: Religión Digital)
Refletindo mais uma vez sobre estas sugestivas décimas, e no contexto da Semana Santa, chegaram-me estas breves reflexões. O poema se refere ao assassinato irracional dos seis jesuítas e das duas leigas (a cozinheira e sua filha) perpetrado em 16 de novembro de 1989. Após o massacre, seus corpos foram arrastados para o pequeno jardim que antecede o que hoje é chamado de "residência dos mártires" (onde, com emoção, me hospedo). O sangue derramado daqueles oito inocentes fecundou a terra de onde surgiram as rosas que, ainda hoje, adornam o jardim como um testemunho mudo que fala de uma beleza crucificada, da morte que engendra a vida, da ressurreição do absurdo e do absurdo.
Olhando para o jardim e meditando sobre o poema, me perguntei qual seria "a lição" que "das cadeiras graves" a Universidade Centro-Americana dar aos feridos (o povo salvadorenho, hoje ferido novamente, desta vez, com "feridas de medo"). E ensaio como resposta: aceitar o risco de uma possível morte como consequência de opções de vida inegociáveis. Os mártires da Universidade Centro-Americana não morreram: foram mortos... foram assassinados, como Jesus de Nazaré.
E então me veio uma chave hermenêutica que considero fundamental para entender algo do que celebramos na Semana Santa: não des-historicizar. Não desistoricizar o Acontecimento total que é Jesus Cristo, ou seja, compreender sua morte à luz de sua vida e sua ressurreição à luz – ou na escuridão – de sua morte. Jesus morreu como morreu porque viveu como viveu. E o Pai o resgatou da finalidade da morte porque ele viveu como viveu. Acho que se esquecermos esse horizonte histórico de compreensão do mistério pascal, acabaremos reduzindo a Semana Santa a um conjunto de celebrações piedosas, mais ou menos emocionantes, mas que não nos permitem reler nossas histórias atuais à luz de deles.
Porque, se comemoramos eventos históricos que aconteceram há dois mil anos, não é simplesmente para relembrar algo que aconteceu com Ele ontem, mas para perceber o que pode acontecer conosco hoje. Ou seja: sustento que essas comemorações devem nos confrontar novamente, como todos os anos, sobre nossa "opção fundamental" de vida que mais tarde, com mais ou menos coerência, deve se cristalizar em nossas opções cotidianas.
A Causa do Reino e a ignomínia da cruz – sua consequência imediata, mas penúltima – se interpretam mutuamente. "Pela tua Causa eu me destruo", testemunhou o poeta com certo ar de reivindicação em seu soneto "Antes que o galo cante". Pedro Casaldáliga conheceu em primeira mão os sofrimentos que comporta o seguimento encarnado de Jesus, assim como sofreram Ignacio Ellacuría e companheiros mártires e, alguns anos antes, dom Romero... porque "nenhuma sinagoga bem estabelecida pode compreender Cristo". E é por isso que o profeta do Araguaia nos adverte, como o de Nazaré já havia nos questionado: “Vocês também querem me abandonar?” (Jo 6,67). Não há acompanhamento sem liberdade. Mas uma liberdade que deve ser constantemente exercida para não cair na mera inércia. Por isso, acho que, a cada Semana Santa, voltamos a nos fazer aquela pergunta que Jesus fez aos seus discípulos quando tudo se tornava um tanto confuso e perigoso... e muitos haviam decidido buscar outros caminhos e outros messias: a salvação sem a cruz.
“Depois do sangue, a palavra é o maior poder”, afirma Pedro Casaldáliga com veemência num dos seus diálogos com Teófilo Cabestrero. Os seis mártires jesuítas, relembrados no poema enfocado aqui, são um testemunho de ambos os poderes: o da palavra pronunciada a partir do ensino na Universidade Centro-Americana e nos vários locais onde aqueles religiosos praticaram o Reino, e o de o sangue derramado, consequência direta daquela palavra subversiva, e que servia como uma espécie de lacre divino que a confirmava. É de se esperar que o derramamento de sangue não seja mais necessário, mas também é de se esperar que aquele “maior poder” da palavra continue a ser usado. Aqui e em todas as universidades que se autodenominam católicas.
Como teólogo e professor, isso me leva a questionar que tipo de teologia estamos ensinando, tanto em seminários e faculdades especificamente de teologia quanto em outras carreiras onde geralmente é ensinado – obrigado – a fazer algumas disciplinas teológicas (que, em muitos casos, não costumam ultrapassar o nível de comentários irrelevantes ao Catecismo da Igreja Católica). Que pastores, que teólogos e que profissionais estamos formando e para quê? Que incidência real tem esta formação para formar uma igreja mais jesuana ao serviço de um mundo tão necessitado de salvação? O que define uma universidade para que ela possa e deva ser chamada de “católica”? Ajudamos o poder da palavra a alimentar-se da razoabilidade do discurso da fé e não de argumentos de autoridade hoje muito insustentáveis – entre outras coisas – pela falta de autoridade moral e credibilidade de quem os julga?
“…e Obdulio cuida das rosas / da nossa libertação”, conclui o poema. Obdulio, o jardineiro, era marido de Elba e pai de Julia, as duas mulheres mártires, assassinadas juntamente com os jesuítas. Dizem que ele morreu, pouco depois deles, de tristeza. Enquanto escrevo estas linhas, um menino se aproxima para regar as rosas. Não sei seu nome, mas, sem dúvida, é também um trabalhador do “povo ferido”. Para que as rosas continuem gritando palavras de libertação, é necessário que este novo jardineiro – para mim, anônimo – continue regando-as todos os dias. E que nós, aqueles de nós que de alguma forma detemos o poder da palavra de nosso ministério, reconsideremos se nossas pregações e teologias são verdadeiramente libertadoras.
Porque toda teologia é de libertação ou não é teologia; e não estou me referindo a uma certa corrente teológica, mas apontando que o próprio evangelho estava em Jesus e deveria estar conosco uma palavra de libertação, de salvação, de humanização. Palavras que se pronunciam definitivamente na ressurreição que relativiza o poder da morte e dos vitimizadores, mas não antes de passar pelo Getsêmani e pelo Gólgota. A ressurreição é, portanto, a reação do Pai diante da ação dos homens (poderosos)... uma ação que sempre será respeitada por aquele Deus onipotente que se torna impotente diante do homem arrogante. “Não sabes se impor, amor frustrado?” Casaldáliga lança-se insolentemente na cara de Deus (no soneto intitulado “Por que me abandonaste?”). Mas é uma pergunta retórica porque o poeta sabe bem que o discreto Deus de Amor se frustra quando seus filhos se recusam. Deus não sabe se impor. Não é que ele não queira: o Onisciente não sabe.
Concluo porque o sol se põe e o roseiral se cobre de sombras. Não des-historicizar a Semana Santa implicará, em última análise, duas coisas fundamentais: primeiro, ler o nosso presente a partir da dialética vida-morte que cruzou Jesus, dialética que nos convida a repensar nossas últimas opções e suas possíveis consequências, no hoje concreto de nossa vivência. Em segundo lugar, uma vez que Jesus aceitou morrer para revelar o que Deus não quer, isso significará o convite para impedir a crucificação de inocentes, exercendo o poder da palavra e do sangue… que também se derrama gota a gota quando se tocam nos perigosos rincões da nossa história, em lento martírio, menos espetacular mas não menos doloroso. E, entretanto, seguir avançando, iluminados pela luz mortiça da Ressurreição que surge ameaçando a Vida e que, como a utopia de Galeano, nos ajuda a caminhar, “esperando contra a mão” (que não é pouco).
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Michael Moore: “Não de-historicize a Páscoa” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU