25 Março 2023
"Comblin revela neste escrito ampla visão histórica, aguda capacidade crítica, intuições profundas, lucidez conjugadas com humor e pitadas de ironia distinguindo conceitos, situações, dificuldades e possibilidades no processo de evangelização", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), da Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, sobre o livro "O Espírito Santo e a Tradição de Jesus", de José Comblin.
100 anos! No dia 22-03-2023, celebramos o centenário natalício do Pe. José Comblin. Erudito e de rara lucidez é reconhecido como o “profeta da liberdade”, “teólogo timoneiro”, “demolidor de mitos” e “profeta missionário itinerante da Boa-nova universal da Tradição de Jesus” –, Comblin nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 1923, e chegou ao Brasil em 1958, onde lecionou em São Paulo e Campinas. Durante os anos 1960, atuou em Santiago, Chile; em Recife, no Instituto de Teologia (Iter); e também no Ipla, em Quito, Equador. Em 1972, foi expulso do Brasil e voltou para o Chile. Expulso também de lá pela ditadura, retornou ao Brasil, onde foi anistiado em 1986. Em 1981, protagonizou a fundação do Seminário Rural, em Serra Redonda (PB). Em 1989, fundou a Escola de Formação Missionária em Juazeiro (BA). Faleceu em março de 2011, em Simões Filho (BA).
Em seus últimos anos, José Comblin se dedicou à elaboração conclusiva de seus pensamentos sobre o Espírito Santo e o projeto de Jesus, temas priorizados ao longo de sua vida. É o autor de um livro inacabado: O Espírito Santo e a Tradição de Jesus (Paulus, 2023). Esta obra póstuma foi organizada por Ermínio Canova é a terceira versão das quatro versões diferentes deste livro, observando que a quarta versão Comblin a perdeu por razão de falha de domínio da tecnologia de computação.
O Espírito Santo e a Tradição de Jesus, livro póstumo de José Comblin. (Foto: divulgação)
Em relação a esta terceira versão que vem à público: Alder Júlio Calado e Hermínio Canova, ao introduzirem esta obra composta de treze capítulos, assinalam que Comblin trata de nos convocar para uma compreensão mais profunda da Tradição de Jesus, partindo da distinção entre religião e Evangelho. Nesta perspectiva, as provocações trazidas por Comblin buscam distinguir, na forma e sobretudo no conteúdo, o que pertence ao terreno do Evangelho e o que pertence à tradição religiosa.
Calado e Canova observam que, para sustentar a tese principal, ou seja, a distinção entre fé e religião, ou, mais precisamente, entre Evangelho e religião, Comblin, na introdução (p. 11-35), aponta os vários argumentos que traz para essa tese: fé, religião e diferença entre fé e religião. Para tanto, começa relembrando a característica prevalente, ao longo da história da Igreja, principalmente a partir do século IV, início da era constantiniana, longo período durante o qual se constata um progressivo afastamento das fontes evangélicas e neotestamentárias, produzido pelo clero, em íntima conexão com os imperadores. Esse afastamento crescente das fontes evangélicas foi sendo alimentado pela substituição das fontes evangélicas pela teologia da cristandade, graças à qual o clero foi substituindo o Evangelho, ainda que mantendo traços soltos dessa fonte, seu projeto de poder, expresso pela força da lei, de decisões conciliares que faziam valer como princípio determinante as práticas eclesiásticas, caracterizadas pela religião: a efetivação de uma doutrina bastante eivada da lógica helenística, fundada não mais em práticas concretas, mas em práticas diretamente inspiradas no Evangelho, num sistema de conceitos, por meio do qual obrigava os leigos a uma obediência incondicional.
Expressões dessa doutrina podem ser exemplificadas na elaboração de documentos tais como o Código de Direito Canônico e o Syllabus, entre outros. Além da elaboração de uma doutrina sem nexo direto com o Evangelho, essa religião também se traduzia na elaboração de práticas, disciplinas, rituais a serem praticados pelos diferentes membros da Igreja, ainda que pouco voltados para os valores fundamentais da Tradição de Jesus. Por último, essa religião era protagonizada por uma casta, pelos sacerdotes, por meio da imposição da obediência aos leigos e às leigas.
Nos demais capítulos, Comblin trata de historicizar como se deu esse distanciamento, por meio da religião, em relação aos princípios do Evangelho. A partir dos diferentes períodos da história da cristandade, o autor passa a analisar e a ilustrar, por meio de exemplos candentes, essa história de afastamento das fontes do Evangelho.
São, portanto quatro partes distribuídas em 13 capítulos, a saber:
1) a primeira parte, composta de dois capítulos, concentra-se nas origens da Tradição (p. 37-74): o Espírito Santo na vida de Jesus (p. 39-44), o Espírito Santo na Igreja: o nascimento da tradição evangélica (p. 45-74);
2) a segunda parte, com quatro capítulos, aborda a tradição evangélica (p. 75-140): primeiro milênio (p. 77-94), a tradição na cristandade medieval (p. 95-112), a tradição nos tempos da reforma (p. 113-126), a tradição na ruína da cristandade (p. 127-140);
3) a terceira parte traz quatro capítulos que giram em torno da tradição religiosa (p. 141-277): origens da tradição religiosa (p. 143-155), a religião na cristandade (p. 157-22), a religião tridentina (p. 223-248), a religião tridentina enfrenta a modernidade (p. 249-277);
4) a quarta parte intitulada: na aurora do século XXI (p. 279-341) traz uma abordagem mais prospectiva e está estruturada em três capítulos: a conjuntura (p. 281-305), a tradição evangélica no presente (p. 305-324), a tradição religiosa no presente (p. 325-341).
Trata-se de um ensaio sem as preocupações com o rigor acadêmico. Quanto às referências bibliográficas, o que temos é uma listagem feita pelo autor, à medida que ia consultando e compondo as sucessivas redações (p. 343- 344), e os livros consultados e marcados para inclusão nas referências (p. 344-348).
Comblin revela neste escrito ampla visão histórica, aguda capacidade crítica, intuições profundas, lucidez conjugadas com humor e pitadas de ironia distinguindo conceitos, situações, dificuldades e possibilidades no processo de evangelização. Como se sabe Comblin foi fiel à vocação para a liberdade, e ao serviço ao povo de Deus; não se perdeu nos meandros da instituição, de sua doutrina e dos cultos, mas entrou firme e permaneceu no caminho do Evangelho de Jesus e do Reino. Se na atualidade cresce o sentimento de que somente se pode evangelizar voltando às raízes com a convicção de que a história acumulou muita poeira e muitas construções inúteis, e que os discursos acumulados escondem a mensagem do Evangelho, torna-se urgente redescobrir a novidade do Evangelho.
O leitor encontrará nesta obra as intuições e as provocações comblianas para um exame de consciência de nossa condição de discípulos e discípulas do caminho e missionários e missionárias a serviço do projeto de Jesus. Este escrito, que é uma versão definitiva do testamento teológico-espiritual do Pe. Comblin, é um convite para fazermos essa redescoberta da novidade do Evangelho e que está em andamento no pontificado do Papa Francisco.
COMBLIN, José (Org. por Ermínio Canova). O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. São Paulo: Paulus, 2023. 352 p. (Coleção Espiritualidade Bíblica). ISBN 9786555628074.
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O Espírito Santo e a Tradição de Jesus. Artigo de Eliseu Wisniewski - Instituto Humanitas Unisinos - IHU