“As fronteiras geográficas nunca foram um obstáculo à nossa amizade e sintonia (...). Hoje, quero compensar a distância física nesta efeméride tão significativa fazendo um exercício de 'razão anamnética' de sua vida e pensamento".
A epístola é de Juan José Tamayo, teólogo espanhol, publicada por Religión Digital, 14-12-2023.
Querido Leonardo,
Não quero deixar de participar da festa do teu 85º aniversário nesta efeméride. Escrevo para reiterar minha amizade e meu reconhecimento neste longo percurso já octogenário. Nos conhecemos há quarenta e três anos. Foi em Astúrias, em um congresso sobre a III Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Puebla de los Ángeles (México). Desde então, foram muitos os nossos encontros e experiências compartilhadas em diferentes lugares do planeta: o Fórum Mundial de Teologia e Libertação nos Fóruns Sociais Mundiais (Porto Alegre, Nairóbi, Belém do Pará, Senegal...), os Encontros de Ameríndia, a Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), a Fundação Valores de Monterrey (México), os Congressos de Teologia convocados pela Associação de Teólogas e Teólogos Juan XXIII, a Universidade Carlos III de Madri, além de nosso contato epistolar constante e o envio e comentários de nossos artigos, seus prólogos para meus livros e minhas resenhas dos teus.
Juan Tamayo com Leonardo Boff. (Foto: Acervo pessoal | via Religión Digital)
As fronteiras geográficas nunca foram obstáculos para nossa amizade e sintonia. Em 1999, tivemos uma conversa de vários dias em Madri, que se materializou no meu livro "Leonardo Boff: bcologia, mística e libertação" (Desclée de Brower, Bilbao, 1999), que mantém a mesma relevância desde então, pois os temas sobre os quais falamos foram abordados olhando para o futuro. Naquela conversa, você me contou – e assim refleti no livro – como Joseph Ratzinger passou de mecenas, que o ajudou financeiramente na edição de sua tese de doutorado em alemão, a inquisidor, que o condenou em 1984 impondo um período de silêncio, que você aceitou com um gesto de humildade, e em 1992 sujeitando-o a várias proibições que representavam uma humilhação que você não estava disposto a aceitar. Após a última condenação, você decidiu deixar a ordem franciscana, mas não o espírito de São Francisco, que mantém intacto.
Imagem: Divulgação
Antes da pandemia, nos encontramos várias vezes na Cidade do México, Puebla de los Ángeles e Monterrey. Desde a covid-19, não nos vemos. Hoje, quero compensar a distância física nesta efeméride tão significativa fazendo um exercício de "razão anamnética" de sua vida e pensamento.
Durante os 85 anos de vida, você percorreu um itinerário fecundo que se ramifica em múltiplos caminhos: a experiência religiosa, a teologia, a ecologia, a política, a academia, o púlpito, a cátedra, a floresta, os fóruns sociais, os fóruns mundiais de teologia e libertação, os congressos de Ameríndia, o acompanhamento às comunidades eclesiais de base, ao MST...
"Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar", dizia Antonio Machado. Você fez caminho ao andar, deixando sua marca por onde passou e continua passando. Sempre a partir do pensamento crítico e heterodoxo, da experiência da ternura, da razão do coração – seguindo Pascal, cujo 4º centenário de seu nascimento celebramos este ano –, do amor à Pacha Mama e do seguimento de Jesus de Nazaré, o Cristo Libertador, sobre o qual você escreveu a primeira cristologia latino-americana historicamente significativa em 1972. Depois, viriam outras de colegas e amigos, incluindo as de Juan Luis Segundo e Jon Sobrino.
"O melhor da religião", escrevia Bloch no frontispício de seu livro O ateísmo no cristianismo, "é que cria hereges". Acredito que você é um excelente exemplo desse aforismo, talvez trocando "herege" por "heterodoxo". Aí reside a criatividade em todos os campos de seu ser, do saber e do fazer humano nos quais você trabalhou e continua trabalhando incansavelmente. Sua vida e seu pensamento mostram que você é um intelectual que quebra paradigmas (e alguns crânios endurecidos de colegas, bispos e algum inquisidor, outrora seu mecenas), abre novos horizontes e propõe alternativas onde parece que não há saída ou se acredita que a saída é única.
Reconheço você como um dos teólogos mais inovadores da teologia latino-americana, que propõe uma ética centrada nas "virtudes para outro mundo possível", na construção de uma fraternidade sororal eco-humana e em uma Teologia do cativeiro e da libertação, título de um de seus primeiros livros que li, publicado pela Edições Paulinas em 1978, o mesmo ano em que minha obra Um projeto de Igreja para o futuro na Espanha foi lançada na mesma editora.
O teólogo Leonardo Boff. (Foto: Reprodução | leonardoboff.org)
Em seu trabalho teológico, você soube conciliar exemplarmente e de maneira ininterrupta ao longo de seis décadas o rigor metodológico e a denúncia profética, uma forma diferente de fazer teologia e o compromisso político com os pobres da terra e com a natureza oprimida, cujos gritos você soube ouvir e aos quais quis responder com razão cordial. O rigor metodológico é demonstrado com o uso da dupla mediação da teologia da libertação: socioanalítica e hermenêutica, que é apreciada em todas as páginas de seus livros e nos artigos que nos surpreendem frequentemente por serem reflexões sobre os acontecimentos, cheias de profundidade e sabedoria vital.
Você utiliza a mediação das ciências humanas e sociais para um melhor conhecimento da realidade, descobrindo os mecanismos de opressão que atentam contra a vida dos pobres e da natureza, e libertando a teologia de sua talvez falsa neutralidade social, de sua suposta neutralidade política e de sua apenas aparente indiferença ética.
Você recorre à hermenêutica, necessária para o estudo e interpretação dos textos fundamentais do cristianismo e para não cair no fundamentalismo, uma das manifestações mais perversas das religiões que, seguindo o ditado latino "corruptio optimi pessima", transformam o vinho espumante das origens em vinagre intragável. Através da hermenêutica, você analisa o pré-texto e o con-texto desses textos, descobre seu sentido primordial emancipador e questiona sua significação e sentido hoje à luz dos novos desafios e das novas perguntas que a dura realidade nos apresenta.
Uma realidade que construímos, na qual não podemos nos instalar de maneira confortável e acrítica, mas somos chamados a desconstruí-la para reconstruí-la de maneira criativa e inclusiva, em um mundo onde todos os mundos possam coexistir. Assim, desmentimos o antigo adágio conformista do pensamento conservador: "as coisas são como são e não podem ser de outra maneira" e compartilhamos, pelo contrário, a afirmação do filósofo da esperança e da utopia, Ernst Bloch, que inspira grande parte de nossa teologia: "Se os fatos não coincidem com o pensamento, pior para os fatos". Razão e esperança caminham juntas em sua vida, seu sentir, suas obras e reflexões.
Você é considerado, e com razão, um dos principais cultivadores da teologia da libertação (TL). Você teve acesso a ela a partir do impacto causado pelas favelas de Petrópolis, onde realizou um intenso trabalho sociopastoral desde o início da década de 1970. Sua reflexão teológica em chave libertadora também nasceu da necessidade de responder às perguntas feitas por um grupo de padres comprometidos com o mundo indígena da selva amazônica há cerca de cinco décadas:
As experiências vividas no mundo da pobreza extrema, da marginalização cultural e da degradação da natureza, por um lado, e a necessidade de responder às perguntas que surgiam daí, por outro, levaram você a se dedicar inteira, profissional e vitalmente a fundamentar a nova metodologia da teologia da libertação, que começou durante o período de cativeiro vivido durante a ditadura brasileira e os regimes militares no continente latino-americano, que pareciam "eternos".
A teologia mostrou pouco interesse pela ecologia, desde Francisco de Assis até o Papa Francisco. Você preencheu esse vazio realizando uma reflexão teológica sob uma perspectiva ecológica, questionando a suposta – e falsa! – força emancipadora do paradigma científico-tecnológico da modernidade. Um paradigma seletivo, centrado no ser humano, que não é universalizável, nem integral, nem mesmo humano!
Como alternativa, você propõe um novo paradigma em que o ser humano não concorre com a natureza, mas dialoga e se comunica simetricamente com ela, com relações de sujeito para sujeito, e não de sujeito para objeto. O ser humano e a natureza formam uma trama de relações multidirecionais caracterizadas pela interdependência, não pela autossuficiência, pela fragilidade do mundo e pela vulnerabilidade humana, não pela onipotência, insolência e arrogância.
Estabelece-se, então, um pacto entre todos os seres do cosmos regido pela solidariedade cósmica, fraternidade-sororidade sem fronteiras, sem corporativismos ou tribalismos, e pelo cuidado, virtude fundamental da ética eco-humana. É a "opção Terra", título de um de seus livros mais belos. Cuidadança é a nova forma de nos relacionarmos com a Terra e os seres humanos, que deve se harmonizar com a cidadania. A ética do cuidado, que você desenvolve em seus livros, é inseparável da ética cívica.
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Muitos de nós somos discípulos que seguem suas lições de ecologia integral, incluindo o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si', sobre o cuidado da casa comum, de 2015, que se inspira em seus textos e em seu testemunho de amor à terra, e começa com o Cântico das Criaturas: "Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, mãe terra, que nos sustenta, governa e produz vários frutos com flores coloridas e ervas... Esta irmã clama devido aos danos que causamos devido ao uso irresponsável e ao abuso dos bens que Deus colocou nela". A encíclica ecoa suas críticas ao antropocentrismo, incluindo o antropocentrismo cristão.
Não quero terminar esta lembrança e felicitação sem mencionar um de seus livros mais recentes, O doloroso parto da Mãe Terra (Trotta, Madri, 2022), onde você alerta para as "densas sombras" que pairam sobre a humanidade e a natureza hoje, agravadas pela covid-19, e lembra que "todos os alertas foram acionados: a terra entrou no vermelho" e que a humanidade tem uma dívida ecológica com a terra.
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Seguindo as encíclicas Laudato Si' e Fratelli tutti, do Papa Francisco, você propõe como resposta à crise ecológica uma ecologia integral: ambiental, política, social, econômica, cultural e espiritual. Para isso, devemos renunciar ao paradigma civilizatório do ser humano como senhor e dono da natureza, que dominou os últimos três séculos de nossa história, e optar pelo paradigma do irmão e da irmã, ou seja, da fraternidade universal, amor político e amizade social.
Os pais fundadores da Modernidade, você lembra, viam o ser humano como o senhor e dono da natureza, e não como parte dela. Para eles, a Terra não tinha propósito e a natureza não tinha valor em si mesma, mas estava apenas ordenada ao ser humano, que podia dispor dela a seu bel-prazer.
Esse paradigma alterou a face da Terra e trouxe benefícios inegáveis, certamente, mas, em seu desejo de dominar tudo, criou o princípio de autodestruição de si mesmo e da natureza com armas químicas, biológicas e nucleares. Seguindo esse paradigma, chegamos a um ponto em que o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou sobre o aquecimento global que está crescendo de maneira inesperada: "Temos apenas esta escolha: a ação coletiva ou o suicídio coletivo".
Com a lucidez que o caracteriza, você afirma que se assumirmos o virar para o paradigma do irmão e da irmã, uma janela de salvação se abrirá. Seremos capazes de superar a visão apocalíptica da ameaça ao fim da espécie humana, por uma visão de esperança, de que podemos e devemos mudar de rumo e ser, de fato, irmãos e irmãs dentro da mesma Casa Comum, incluindo a natureza. Seria o "bem viver" do ideal andino, em harmonia entre os humanos e com toda a natureza.
Isso requer "uma conversão ecológica global" que vá de uma civilização tecnocapitalista, antropocêntrica e individualista para uma civilização da solidariedade e do cuidado com toda a vida; uma civilização biocêntrica que garanta o futuro para a natureza e a humanidade. Essa civilização leva a uma mudança na imagem da divindade: do Deus todo-poderoso para o Deus apaixonado amante da vida, que não permite que a humanidade e a natureza pereçam.
Você se refere à mudança de era que estamos vivendo: a ecozoica, que requer três atitudes: espiritualidade, sustentabilidade e cuidado, que é a tradução da com-paixão para com a natureza, depredada pelo modelo de desenvolvimento científico-tecnológico ecocida. As três atitudes requerem nossa colaboração e comprometimento.
Você escreveu este livro não a partir da razão instrumental, nem da neutralidade científica, mas da razão cordial que une inteligência, sentimentos, amor à terra e empenho na transformação de um planeta ameaçado de destruição. Tenho certeza de que sua leitura contribuirá para a conversão ecológica global que Francisco pede, uma conversão coletiva certamente em todas as esferas da vida: política, econômica, social, cultural, religiosa, educativa, mas também pessoal, que mude nosso estilo de vida para contribuir para o nascimento de uma comunidade eco-humana-fraterna-sororal.
"A razão não pode florescer sem esperança. A esperança não pode falar sem razão", escreve Ernst Bloch em sua magnífica obra O princípio esperança, que você leu em alemão durante seus estudos em Munique e cita frequentemente. Razão e esperança ou, melhor ainda, otimismo militante, docta spes, é o que melhor define sua vida, sua personalidade, sua obra. Aos 85 anos, você continua praticando a "esperança contra toda (des)esperança".
Termino agora. Não prolongarei mais esta epístola, que deseja apenas expressar amizade e manifestar agradecimento. Às vezes, você foi acusado de utópico, uma acusação que compartilho contigo. Nossos acusadores não percebem que essa acusação, mais do que um insulto, é um elogio. Como no poema de Eduardo Galeano, a utopia serve para caminhar, o que, no seu caso, não é pouco, considerando as pernas feridas. Por essa razão, como mencionei na sua apresentação no Congresso Ameríndia de 2017, na Cidade do México, você não pode nem quer se ajoelhar diante do poder, qualquer que seja ele, incluindo o do Vaticano. Um verdadeiro milagre! O milagre da esperança e da utopia. Ad multos annos, Leonardo.
Seu amigo na tribulação e na esperança,
Juan José Tamayo, teólogo espanhol da libertação.