21 Julho 2023
O artigo é de Juan José Tamayo, teólogo da libertação e autor de A teologia da libertação no novo cenário político e religioso (Tirant lo Blanch) e Teologias do sul: a virada descolonizadora (Trotta), publicado por Religión Digital, 19-07-2023.
Com a morte de Franz Hinkelammert em 16-07-2023 em San José da Costa, perdi um grande amigo e a Teologia da Libertação perde uma das vozes mais lúcidas e importantes do pensamento crítico latino-americano que soube articular harmoniosamente quatro campos de reflexão e análises nem sempre bem combinados: filosofia política, economia, sociologia e teologia. A isto se deve somar sua grande humanidade, seu sentido de amizade, seu tratamento primoroso e sua ilimitada solidariedade com os setores populares mais vulneráveis da população mundial.
Nascido em Emsdetter, na Alemanha, em 1931, começou sua atividade intelectual primeiro como estudante de economia e depois como assistente de pesquisa na Universidade Livre de Berlim. Suas primeiras análises se concentraram no conteúdo ideológico da teoria econômica. Ele também fez cursos de filosofia e teologia, este último seguindo os ensinamentos do teólogo Helmut Golwitzer. Chegou ao Chile em 1963 a convite da Fundação Konrad Adenauer e atuou como professor na Universidade Católica do Chile. Participou do clima revolucionário chileno que gerou grandes expectativas para a região latino-americana e para o mundo inteiro.
Ele logo entrou em conflito com a Democracia Cristã, forçando-o a deixar a Fundação Adenauer. Colaborou ativamente com a Unidade Popular e, após o golpe de estado de Pinochet em 1973, retornou à Alemanha, onde foi professor visitante no Instituto Latino-Americano da Universidade de Berlim até 1976. Depois disso, retornou à América Latina, onde viveu ininterruptamente até sua morte. Ele fez uma análise rigorosa do golpe contra Salvador Allende no livro Ideologia da submissão.
Esteve vinculado a setores intelectuais do pensamento alternativo e à Teologia da Libertação, em cujo horizonte se situa sua reflexão criativa sobre a relação entre teologia e economia. Desenvolveu um pensamento interdisciplinar, aberto e livre, sem dogmatismos ou absolutismos, sem universalismos abstratos ou receitas simples. Foi professor de várias gerações de intelectuais, teólogos e cientistas sociais na América Latina e em outros continentes.
Em 1976, junto com o teólogo brasileiro Hugo Assmann, fundou o Departamento de Pesquisas Ecumênicas (DEI), espaço privilegiado de diálogo e encontro entre teólogos, biblistas, filósofos, cientistas e ativistas sociais, do qual participei a partir de 1999. Lá compartilhei debates apaixonados e criativos, entre outras pessoas, com Enrique Dussel, Raúl Fornet Bentacourt, Wim Dierckxsens, Maryse Bresson, José Duque, Loida Sardiñas, Carlos Molina, Henry Mora, Germán Gutiérrez, Silvia Regina da Silva, Pablo Richard, Elsa Tamez, Jung Mo Sung, Maruja González, Estela Fernández, Yohanka León, Yamandú Acosta, Lilia Solano, atual vice-ministra de Participação e Igualdade de Direitos da Colômbia.
Sua principal contribuição é a relação entre teologia e economia, uma relação muito mais próxima do que pode parecer à primeira vista e que abre um novo horizonte na Teologia da Libertação. Analisa criticamente a teologia econômica do mercado de autores como Tockman, Camdesuss e Novak, que se apropriam de categorias e linhas fundamentais da teologia da libertação como a opção pelos pobres e a esperança no reino de Deus encarnada na economia. Esvaziando-o de seu conteúdo libertador.
Sua crítica à economia política neoliberal é que ela reduz a racionalidade à lucratividade e, ao operar dessa forma, o sistema econômico atual torna-se irracional. O resultado dessa redução é visível: distorce as relações sociais e exclui cada vez mais pessoas e povos do sistema econômico. É da superpopulação de que fala o Papa Francisco. As leis de ferro do mercado destroem o tecido social e seu ambiente natural.
O mundo de hoje sente-se ameaçado pela estratégia da acumulação ilimitada, que é a estratégia da globalização neoliberal, tão orgulhosa da eficiência meio-fim desenvolvida pela empresa capitalista, mas tão ineficiente; tão aparentemente universalizante, quando na realidade exclui setores, países, regiões e até continentes inteiros que veem em perigo sua sobrevivência.
Geralmente, os teólogos da libertação descobrem a relevância da economia através da teologia. Hinkelammert fez o contrário: foi da economia que descobriu a teologia. Cultivando a análise da economia política, surgiram suspeitas que ele só poderia verificar com o recurso à teologia. Essa é a desconfiança que norteia Las armas ideológicas de la muerte (Follow Me, 1978), uma de suas obras mais emblemáticas e influentes no pensamento político, econômico e teológico latino-americano.
As armas ideológicas da morte, de Franz Hinkelammert (Paulinas, 1983).
Nesta obra ele faz uma análise rigorosa da teoria do fetichismo de Marx, que considera central para a economia política marxista, cujo principal objetivo é tornar visível o que não aparece diante dos olhos. Em sua análise do fetichismo, Hinkelammert faz uma distinção lúcida entre as instituições materiais que organizam a sociedade moderna.
Ele mesmo fala de três momentos da Teologia da Libertação (TL) que define levando em conta as mudanças produzidas na realidade latino-americana, os conflitos da teologia com o Império e a ortodoxia religiosa, as mudanças econômicas e os movimentos sociais e os libertadores eclesiásticos mais próximos. Na primeira fase, a TL coloca no centro a opção pelos pobres, que se torna fonte de confronto com a ortodoxia cristã, legitimadora do poder econômico e representada pela Congregação para a Doutrina da Fé, que condenava a Teologia da Libertação de seu origens.
O segundo momento tem como pano de fundo o esmagamento dos movimentos de libertação e do cristianismo libertador pelas ditaduras. Nesse contexto, a TL é vítima de uma forte contraofensiva por parte da teologia do Império. Diante de tal situação de assédio interno e externo e tentativa de demolição, a atitude da TL foi dupla: expressar seu grito de vida e criticar a lógica sacrificial do sistema opressor.
O terceiro momento é marcado pela apropriação do discurso TL e pela opção pelos pobres tanto pela teologia neoliberal do mercado quanto pela ortodoxia cristã. Isso leva à elaboração de uma crítica ideológica do direito e do mercado total.
Hinkelammert elabora uma teologia econômica da libertação como alternativa à teologia neoliberal do mercado e propõe uma cultura de esperança e uma sociedade sem exclusão, cuja categoria central é a vida, referindo-se às condições reais e históricas da existência humana: alimentação, moradia, trabalho, assistência social, saúde, educação, etc. A opção pela vida leva diretamente à opção pelos povos oprimidos e pelas classes sociais exploradas. O referente teológico é o Deus da vida, que é o Deus das possibilidades humanas concretas de viver em luta contra as armas ideológicas da morte. Daí surge a teologia da vida em luta com os ídolos da morte que exigem sacrifícios humanos das maiorias populares e da natureza depredada pelo capitalismo voraz.
A morte de Hinkelammert não encerra sua produção bibliográfica. Resta-nos a sua recente obra com o sangrento título Razones que matan, escrita em colaboração com Henry Mora, que é uma introdução ao Pensamento emancipatório, na tradição iniciada por Marx, com o seu "imperativo categórico de destruir todas as relações em que o homem seja um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível" e com importantes antecedentes já em Paulo de Tarso e sua crítica à Lei. Convido você a lê-lo.
Franz está em plena sintonia com o Papa Francisco que, na encíclica Evangelli gaudium, diz: "não a uma economia da exclusão (...) Esta economia mata". Frantz e Francisco mostram-nos o caminho a seguir: contra as razões necrófilas, as razões que libertam e se traduzem numa economia em defesa da vida e do bem comum. A harmonia também fica com Bertold Brecht, que afirma:
“Existem muitas maneiras de matar. Você pode furar o chumaço de alguém com uma faca, pode tirar o pão de alguém, não pode ajudar alguém em caso de doença, pode colocar alguém em uma casa ruim, pode matá-lo por meio de um trabalho ruim e insuportável, alguém pode ser ameaçado até eles cometem suicídio, uma guerra pode ser travada, etc. Muito pouco disso é proibido em nosso estado.”
Considero Franz Hinkelammert um exemplo brilhante do amor político eficaz, de que falava e praticava Camilo Torres.
Razones que matan: y la respuesta del sujeto, de Franz Hinkelammert
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Franz Hinkelammert: Economia e Teologia da Libertação em diálogo. Artigo de Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU