Democracia laica, um valor judaico-cristão

Foto: unsplash

Mais Lidos

  • A ideologia da Vergonha e o clero do Brasil. Artigo de William Castilho Pereira

    LER MAIS
  • Juventude é atraída simbolicamente para a extrema-direita, afirma a cientista política

    Socialização política das juventudes é marcada mais por identidades e afetos do que por práticas deliberativas e cívicas. Entrevista especial com Patrícia Rocha

    LER MAIS
  • Que COP30 foi essa? Entre as mudanças climáticas e a gestão da barbárie. Artigo de Sérgio Barcellos e Gladson Fonseca

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

06 Setembro 2022

 

"A noção abstrata de um governo direcionado pela vontade dos governados assume corpo por meio das eleições com ampla participação das cidadãs e cidadãos. É justamente nas urnas que a sociedade exerce sua soberania e escolhe seus governantes. Por este motivo, a confiança no sistema eleitoral é absolutamente central para a manutenção deste sistema."

 

O artigo é de Michel Schlesinger, bacharel em Direito pela USP, rabino e professor do Seminário Teológico Judaico em Nova Iorque, e Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, cientista social, teólogo e assistente doutor da PUC-SP, publicado por O Estado de S. Paulo, 04-09-2022 e enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU pelos autores. 

 

Eis o artigo. 

 

A voz do povo é a voz de Deus, afirma o ditado. A partir desta lógica, todas as vezes que formos capazes de auferir com precisão o que a população de determinado território deseja, estaremos seguindo os desígnios divinos. Esta é uma noção poderosa, segundo a qual o sagrado se manifesta na vontade coletiva.

 

De fato, a coletividade contribui para o aperfeiçoamento das ideias e ações, no respeito à diversidade. Uma decisão individual carece de perspectiva, ou pode estar fadada ao desânimo. Aquilo que é proposto por uma só pessoa, ou por um grupo limitado, tende a manifestar um leque restrito de valores, ao passo que o debate público impulsiona a ampliação do horizonte das discussões. De modo que o resultado passa a ser mais sofisticado e, portanto, sublime.

 

O que faz a democracia uma sublime obra coletiva é justamente esse horizonte participativo, público e dialógico. Democracia é um modo de viver em sociedade. Ouvir e respeitar as opiniões alheias. Combater a intolerância e qualquer perseguição das minorias. Há lugar para cada pessoa com sua identidade, suas memórias e seus sonhos em qualquer democracia madura e legítima. Em hora tão polarizada no Brasil, será preciso fazer cotidianamente o elogio à mansidão ao reverberar o pensamento do eminente filósofo italiano Norberto Bobbio: “Mansidão consiste em deixar o outro ser aquilo que é”. Cada um e uma de nós buscar ser o que de melhor podemos ser - como expressões diversas e unidas em sociedade - deste amor exuberante do Criador Eterno que nos fez silhuetas divinas únicas e irrepetíveis. Capazes de exprimir a voz da justiça, pois ouvintes serenos dos apelos da fraternidade universal.

 

Muitos fizeram suas guerras em nome de seus deuses, alguém poderia afirmar. Verdade! As tradições religiosas milenares trazem um arcabouço capaz de justificar a guerra, a paz e quaisquer movimentos entre elas. As fontes canônicas são, na experiência espiritual de seus profetas e mensageiros originários, elas mesmas capazes de legitimar a justiça, a ética, a solidariedade, a verdade, enfim, o amor fraterno. As mesmas fontes foram um dia lidas de maneira a promover a tortura, a perseguição, o extermínio espiritual e até mesmo físico do outro, por meio da xenofobia e da negação da palavra de sujeitos autônomos. Os textos sagrados não operam no mundo de maneira imediata, pois necessitam da decisão consciente de mulheres e homens que crêem na voz de um Deus que fala e ama suas belas criaturas.
“Uma vez que a religião não é suficiente e nem necessária para o comportamento moral”, afirma o rabino Elliot Dorff, “e uma vez que a religião pode produzir imoralidades, algumas pessoas concluem que religião e moralidade logicamente não têm nada a ver uma com a outra. As duas podem se afetar mutuamente”, afirma Dorff, “mas como agentes independentes, sua interação pode beneficiar ou prejudicar” (The unfolding tradition, Jewish law after Sinai, p 339). O rabino contemporâneo nos atenta para o fato da religião não ser garantia da vigilância ética, mas um potencial de inspiração que também poderá nascer de outras estruturas laicas de valor.

 

Quando Deuteronômio nos pede para “optar pela vida (30,15)”, estamos sendo convidados a sublinhar as passagens de nossas tradições milenares, sejam elas religiosas ou laicas, que promovam a vida, a justiça, a liberdade e seu aperfeiçoamento, construídos nas vidas e nas instituições democráticas que criamos e valorizamos em gestos e palavras verdadeiras.

 

O Brasil experiencia uma democracia em formação. Esta forma de governo se verifica em aperfeiçoamento mesmo em países que já a possuem por séculos, como a França ou os Estados Unidos. Em nosso país, faz poucas décadas que a soberania foi reconquistada pelo próprio povo, sua organização e utopias, com destaque para líderes religiosos que alçaram vozes de esperança em tempos de obscurantismo brutal. Como não enunciar três nomes exemplares do diálogo democrático nas religiões: o pastor presbiteriano Jaime Nelson Wright, o cardeal católico Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Isaac Sobel, que na morte de Vladimir Herzog clamam unidos pela volta de democracia. Apesar dos esforços dos últimos 47 anos, seguimos com instituições ainda frágeis, buscando aperfeiçoamento e fortalecimento fundados na confiança, na verdade e na transparência. Assumimos a tarefa de cuidadores desse precioso vaso de argila que é a democracia. Frágil e bela construção histórica do povo brasileiro.

 

A noção abstrata de um governo direcionado pela vontade dos governados assume corpo por meio das eleições com ampla participação das cidadãs e cidadãos. É justamente nas urnas que a sociedade exerce sua soberania e escolhe seus governantes. Por este motivo, a confiança no sistema eleitoral é absolutamente central para a manutenção deste sistema. Votos conscientes e livres. Votos solidários e lúcidos. Votos que exprimam a sede por mais democracia, plena, verdadeira, serena e respeitosa das instituições.

 

Seja esta nossa prece e, principalmente, nosso compromisso.

 

Leia mais