06 Setembro 2022
"A noção abstrata de um governo direcionado pela vontade dos governados assume corpo por meio das eleições com ampla participação das cidadãs e cidadãos. É justamente nas urnas que a sociedade exerce sua soberania e escolhe seus governantes. Por este motivo, a confiança no sistema eleitoral é absolutamente central para a manutenção deste sistema."
O artigo é de Michel Schlesinger, bacharel em Direito pela USP, rabino e professor do Seminário Teológico Judaico em Nova Iorque, e Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, cientista social, teólogo e assistente doutor da PUC-SP, publicado por O Estado de S. Paulo, 04-09-2022 e enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU pelos autores.
A voz do povo é a voz de Deus, afirma o ditado. A partir desta lógica, todas as vezes que formos capazes de auferir com precisão o que a população de determinado território deseja, estaremos seguindo os desígnios divinos. Esta é uma noção poderosa, segundo a qual o sagrado se manifesta na vontade coletiva.
De fato, a coletividade contribui para o aperfeiçoamento das ideias e ações, no respeito à diversidade. Uma decisão individual carece de perspectiva, ou pode estar fadada ao desânimo. Aquilo que é proposto por uma só pessoa, ou por um grupo limitado, tende a manifestar um leque restrito de valores, ao passo que o debate público impulsiona a ampliação do horizonte das discussões. De modo que o resultado passa a ser mais sofisticado e, portanto, sublime.
O que faz a democracia uma sublime obra coletiva é justamente esse horizonte participativo, público e dialógico. Democracia é um modo de viver em sociedade. Ouvir e respeitar as opiniões alheias. Combater a intolerância e qualquer perseguição das minorias. Há lugar para cada pessoa com sua identidade, suas memórias e seus sonhos em qualquer democracia madura e legítima. Em hora tão polarizada no Brasil, será preciso fazer cotidianamente o elogio à mansidão ao reverberar o pensamento do eminente filósofo italiano Norberto Bobbio: “Mansidão consiste em deixar o outro ser aquilo que é”. Cada um e uma de nós buscar ser o que de melhor podemos ser - como expressões diversas e unidas em sociedade - deste amor exuberante do Criador Eterno que nos fez silhuetas divinas únicas e irrepetíveis. Capazes de exprimir a voz da justiça, pois ouvintes serenos dos apelos da fraternidade universal.
Quando Deuteronômio nos pede para “optar pela vida (30,15)”, estamos sendo convidados a sublinhar as passagens de nossas tradições milenares, sejam elas religiosas ou laicas, que promovam a vida, a justiça, a liberdade e seu aperfeiçoamento, construídos nas vidas e nas instituições democráticas que criamos e valorizamos em gestos e palavras verdadeiras.
O Brasil experiencia uma democracia em formação. Esta forma de governo se verifica em aperfeiçoamento mesmo em países que já a possuem por séculos, como a França ou os Estados Unidos. Em nosso país, faz poucas décadas que a soberania foi reconquistada pelo próprio povo, sua organização e utopias, com destaque para líderes religiosos que alçaram vozes de esperança em tempos de obscurantismo brutal. Como não enunciar três nomes exemplares do diálogo democrático nas religiões: o pastor presbiteriano Jaime Nelson Wright, o cardeal católico Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Isaac Sobel, que na morte de Vladimir Herzog clamam unidos pela volta de democracia. Apesar dos esforços dos últimos 47 anos, seguimos com instituições ainda frágeis, buscando aperfeiçoamento e fortalecimento fundados na confiança, na verdade e na transparência. Assumimos a tarefa de cuidadores desse precioso vaso de argila que é a democracia. Frágil e bela construção histórica do povo brasileiro.
A noção abstrata de um governo direcionado pela vontade dos governados assume corpo por meio das eleições com ampla participação das cidadãs e cidadãos. É justamente nas urnas que a sociedade exerce sua soberania e escolhe seus governantes. Por este motivo, a confiança no sistema eleitoral é absolutamente central para a manutenção deste sistema. Votos conscientes e livres. Votos solidários e lúcidos. Votos que exprimam a sede por mais democracia, plena, verdadeira, serena e respeitosa das instituições.
Seja esta nossa prece e, principalmente, nosso compromisso.
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Democracia laica, um valor judaico-cristão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU