02 Agosto 2024
"Embora a aplicação de categorias políticas tradicionais nesses casos possa parecer arbitrária, Haniyeh era o "homem-aranha" que tecia a teia diplomática. Em resumo, mataram o homem da negociação. A própria imprensa israelense está falando de uma guerra regional iminente: mas, dessa vez, o conflito poderia ter consequências ainda mais amplas", escreve Alberto Negri, filósofo italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 01-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando você mata o negociador, significa que não se importa em nada com a negociação. E também com o cessar-fogo em Gaza. A escolha de Tel Aviv é a de uma guerra sem fim contra os palestinos e estendida a todo o Oriente Médio, incluindo represálias (se continuarem sendo represálias). Essa é a mensagem brutal que Israel e Netanyahu enviaram conscientemente à comunidade internacional com o assassinato do líder do Hamas, Ismail Haniyeh, que foi baleado em Teerã e que liderou as negociações sobre Gaza em Doha e no Cairo nos últimos meses. Poucas horas antes, os israelenses haviam matado Fuad Shukr, considerado um dos líderes do Hezbollah, o movimento xiita liderado por Nasrallah, no Líbano, com um drone.
Essas duas operações contra os principais expoentes do "eixo de resistência" são dirigidas ao Irã, considerado o mais importante patrocinador dos movimentos contra Israel. O clima no governo do Estado judeu é o de um confronto com seus inimigos e adversários.
O clima geral após o assassinato de Haniyeh quase parece evocar o tiro que, em 1914, em Sarajevo, matou o arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do trono austríaco, e nós, europeus, inexistentes e mudos, parecemos como os sonâmbulos às vésperas da Grande Guerra descritos no livro de Christopher Clark.
Dentro do Hamas, Haniyeh era a referência política no exterior, especialmente no Qatar e entre as petro-monarquias sunitas do Golfo, e representava o lado mais favorável à negociação do movimento islâmico palestino. Yahya Sinwar, o outro líder na mira de Israel, é principalmente uma expressão da ala militar e da frente interna. Embora a aplicação de categorias políticas tradicionais nesses casos possa parecer arbitrária, Haniyeh era o "homem-aranha" que tecia a teia diplomática.
Em resumo, mataram o homem da negociação.
A própria imprensa israelense está falando de uma guerra regional iminente: mas, dessa vez, o conflito poderia ter consequências ainda mais amplas.
As reações iradas ao assassinato de Haniyeh por parte da Rússia e da China - bem como da Turquia, de quem foi hóspede - nos dizem que esses aliados de Teerã se sentem diretamente chamados em causa. Especialmente Pequim, o primeiro parceiro econômico de Teerã, que primeiro intermediou um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita e, recentemente, também um entendimento entre as facções palestinas sobre o futuro de Gaza. Quanto à Turquia de Erdogan, em rota de colisão aberta com Israel, não se pode ignorar que Ancara – prestes a restabelecer relações com a Síria de Assad - é membro da OTAN desde 1953 e representa o maior exército da Aliança no flanco sudeste do Mediterrâneo: daqui há poucos dias haverá uma cúpula geral da OTAN em Washington e certamente não será uma passarela, já que conflitos como Ucrânia, Gaza e agora no mais amplo Oriente Médio estão na agenda.
Mas é claro que o mais envolvido de todos são os Estados Unidos, que não se entende por quem são governados e qual é o objetivo de suas ações, especialmente no Oriente Médio. Pareceria que, após o discurso de Netanyahu no Congresso, o primeiro-ministro israelense, que é procurado pela promotoria do Tribunal Penal Internacional, também assumiu a liderança em Washington. Na realidade, ele está aproveitando o abismo que se abriu entre agora e novembro com a retirada de Biden da campanha eleitoral para soltar as rédeas à deriva bélica e assassina do Estado israelense, que depois do dia 7 de outubro encontrou um ponto de apoio nos extremismos radicais da região.
A continuação da guerra contra o Hamas em Gaza e na frente norte contra o Hezbollah representa uma espécie de apólice de seguro para a vida política para Netanyahu e seu governo. E essa política tem os Estados Unidos como fiadores e cúmplices. Netanyahu não apenas sabe que não virão consequências desse governo Biden em vias de encerramento, mas que os EUA estarão em guerra ao seu lado. Ele não tem motivos para duvidar disso, já que em meses de conflito em Gaza - onde os israelenses mataram 40.000 pessoas, em sua maioria civis - os EUA despejaram dezenas de bilhões de dólares em ajuda militar para ele.
Na verdade, em vez de refreá-lo, o aplaudiram, com poucas exceções, quando ele evocou a guerra contra o Irã em seu discurso em Washington. As mesmas balbuciantes mediações estadunidenses na região pareceram mais que tudo uma perda de tempo. Basta pensar no que fez o enviado dos EUA no Líbano, Amos Hochstein, um ex-militar israelense que tem servido aos democratas dos EUA mais para semear problemas do que para resolvê-los nos últimos anos.
Mas o mais incrível é o Secretário de Estado dos EUA, Blinken. Desaparecido do quadrante do Oriente Médio há algum tempo, onde deixou que a CIA lidasse com os resultados brilhantes que vemos, Blinken evitou especular sobre o impacto que a morte de Haniyeh terá sobre os esforços para um cessar-fogo em Gaza e declarou, textualmente: "Aprendi ao longo de muitos anos a nunca especular sobre o impacto que um evento teve sobre outro. Portanto, não posso dizer o que significa". Lunar. Esse é o secretário de Estado dos EUA, de quem o destino da humanidade em parte depende, e não um transeunte qualquer. "Vácuo de poder no Oriente Médio", foi a manchete de um artigo da Foreign Affairs em março. E agora é nesse vácuo que está sendo engolido o destino de milhões de pessoas.
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Mataram o homem da negociação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU