Para o professor e pesquisador, o crescimento da direita tem a ver também com a falta de coragem da esquerda de dizer a que veio e de pensar alternativas que rompam com o círculo de giz da cisão entre cultura e natureza, como o caso de princípios como o do Bem-viver
Os manuais políticos viraram uma espécie de receituário coach em que, para todos os males civilizacionais, há um imperativo paneceico sintetizado em palavras de ordem como inovação, empreendedorismo, desenvolvimentismo, etc. Isso permeia não somente os âmbitos políticos formais, mas também as instâncias micropolíticas que vão da educação à gestão pública. Nada disso, porém, nos tira das encruzilhadas do Antropoceno, mas talvez olhar para trás, para a ancestralidade, pode ser uma saída.
“Quando se fala bem-viver, não é correto dizer que ele é exatamente a filosofia dos povos originários em sua totalidade. Ela está presente em todos os povos originários – eu prefiro chamar de povos de raiz, que são os povos que mantêm vínculo com sua ancestralidade. Têm povos diaspóricos, como os descendentes de africanos escravizados, que se mantêm com vínculo à sua ancestralidade também. Em todos os continentes há povos de raiz”, ressalta Célio Turino em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Figuras mitológicas como a helênica Ariadne ou pássaro africano Sankofa nos oferecem boas metáforas para pensarmos sobre a nossa própria condição na contemporaneidade. “O mundo hoje está perdido, porque estamos dentro de um labirinto. Não saímos porque não temos um fio de Ariadne a conduzir Teseu para fora do labirinto do Minotauro ou porque não temos a prática do q’ipur kama, que se refere ao dia de atrás, ou porque não nos guiamos por um pássaro como Sankofa, que voa para frente com a cabeça virada para trás”, complementa o entrevistado.
É dentro deste contexto que a esquerda precisa ter a coragem de construir um projeto capaz de construir uma terra habitável, não somente para nós, mas para todos os viventes. De algum modo é preciso abandonar os séculos XIX e XX e seus postulados de exploração e acumulação infinitos. “Ao incorporar essa forma [desenvolvimentista] de pensar, não conseguimos fazer um mergulho para o salto civilizatório que o mundo exige. Não sei se vai acontecer, mas é necessário. E só vai acontecer quando houver o encontro da cultura com a natureza”, assevera Turino. E alerta: “A esquerda ficou muito cordata na forma de pensar. Ela tem receio de dizer algumas coisas e isso nos leva à situação em que estamos”.
Célio Turino (Foto: Reprodução | Facebook)
Célio Roberto Turino de Miranda possui graduação e mestrado em História pela Unicamp, pós-graduação em Administração Cultural pela PUC-SP e doutorado em Humanidades pelo programa Diversitas (FFLCH-USP). Foi secretário de Cultura e Turismo em Campinas (1990-1992); diretor de Promoções Esportivas, Lazer e Recreação na cidade de São Paulo (2001-2004); secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004-2010). É escritor e, desde 2011, viaja pelos rincões do mundo, sobretudo aldeias, vilas e favelas latino-americanas, escutando histórias e escrevendo sobre elas. "Caminha por aí, semeando as ideias da cultura viva e do bem-viver".
A primeira parte desta entrevista pode ser lida clicando em Recompor o bem comum contra a fragmentação neoliberal – Parte I. Entrevista especial com Célio Turino.
IHU – Quais são os princípios do Bem-viver, ou Viver Bem, como se diz na Bolívia, “suma qamaña”, em aimará?
Célio Turino – Há um encontro muito grande entre a filosofia do bem-viver e da Cultura Viva e tenho me aprofundado nessa questão desde que eu deixei o Ministério da Cultura, onde fui secretário da cidadania cultural e implantei os Pontos de Cultura para a Cultura Viva, isso de 2004 até 2010. A partir de 2011 é que eu comecei a viajar muito pela América Latina. Foram mais de 50 viagens e algumas muito profundas em meios indígenas e pequenas vilas. Aí que eu fui encontrando e conhecendo melhor o conceito e a filosofia do bem-viver, que também se desenvolve em paralelo, a partir do fim do século XX, começo do século XXI, desde a Universidade de Quito, em La Paz. No Equador houve um aprofundamento grande desse conceito e que está incorporado na Constituição do país, apesar de não ser plenamente cumprido. Nisso eu via as semelhanças e as proximidades com a cultura viva.
Quando se fala bem-viver, não é correto dizer que ele é exatamente a filosofia dos povos originários em sua totalidade, ele tem uma atualização. Essa atualização se constrói a partir da observação dos modos de vida, mais particularmente dos povos andinos, mas não só. Ela está presente em todos os povos originários – eu prefiro chamar de povos de raiz, que são os povos que mantêm vínculo com sua ancestralidade. Têm povos diaspóricos, como os descendentes de africanos escravizados, que se mantêm com vínculo à sua ancestralidade também. Em todos os continentes há povos de raiz.
São povos que têm uma outra percepção do mundo que não é a ideia do desenvolvimento. Para conseguirmos entender o bem-viver, temos antes que ir para a ideia de desenvolvimento. O que que significa desenvolvimento? É separar do envolvimento e do ambiente. Essa é uma matriz de pensamento que vem com a Modernidade – a Idade Média não era assim. Ao separar, ao se colocar a parte do ambiente, achando que nós – enquanto humanidade – somos capazes de domar a natureza, colocamo-nos também como inimigos dessa natureza ou mantendo a natureza no máximo como uma fonte de recursos, às vezes achando que ela é inesgotável. Veja que mesmo nas legislações de defesa do meio ambiente há sempre a perspectiva de garantir o meio ambiente enquanto um manancial de recursos para que os humanos se sirvam deles. No pensamento ancestral, originário, indígena, isso não ocorre, até porque a natureza não é vista como uma fonte de recursos, mas como “os nossos parentes”. Os bosques e os animais têm uma alma, tanto quanto os humanos. As pedras e as águas têm alma e sentido. A partir dessa visão nos percebemos como “parte” da natureza, e não como uma espécie que pode viver “a parte” da natureza.
Por meio do termo Abya Yala, que é traduzido com “pátria grande”, embora essa não seja a tradução correta, mas uma tradução mítica no sentido de unir todos os povos da América numa ideia de pátria grande. Abya Yala vem do idioma Kuna, que são indígenas que habitam o norte da Colômbia e o Panamá – são ilhas muito bonitas do lado do Atlântico, no Panamá. Abya Yala significa sangue da montanha, ou seja, a montanha tem sangue, tem uma vida própria e uma dignidade própria. Essa é a base do pensamento do bem-viver: a conexão com a natureza. E olha que é o grande desafio da humanidade nos tempos atuais. Porque a desconexão, o (des)envolvimento está nos levando ao colapso.
Significa que vai viver em estado de natureza? Não. Aí é que vem o acréscimo do pensamento do bem-viver, é uma reinterpretação que mantém a raiz desse vínculo com os povos originários, mas que acrescenta algo no sentido da vida contemporânea. Mas, significa promover essa conexão, vida em pequena escala, processos decisórios em caráter mais comunitário, a quebra dessa ideia da exploração e do chamado neodesenvolvimentismo, a economia do suficiente, da reciprocidade, sem esse desespero pela acumulação infinita.
Houve no ciclo dos partidos de esquerda, progressistas, no começo do século XXI, com Brasil nesse processo. Inclusive, onde há sempre essa ideia de explorar os recursos ao máximo para promover uma rede de distribuição. Com o bem-viver não é assim. Até tive a honra de escrever o prefácio do livro O bem viver (São Paulo: Editora Elefante, 2019) do Alberto Acosta, economista equatoriano, que foi se distanciando dessa ideia do neodesenvolvimentismo quando ainda era ministro de energia no Equador, durante o governo do Rafael Correa, que queria explorar petróleo no Parque Yasuní. Usando o exemplo do Xingu, seria como descobrir petróleo no Parque do Xingu e explorar, ou na Foz do Amazonas, para pensar uma analogia de hoje. Ele percebeu que isso não cabia e até rompeu com esse processo, com o governo de Rafael Correa e com a chamada Revolução Cidadã, da qual ele foi um dos principais ideólogos no início.
Também a Constituição do Equador foi a primeira a sistematizar os princípios do bem-viver. Depois tem a Bolívia, mas há uma diferença: o bem-viver é a tradução do Sumak Kawsay do quéchua, no Aimara é Suma Qamaña. Parece uma sutileza, mas não é. Tem até uma explicação do Evo Morales, que tem contradições, pois ao mesmo tempo em que é desenvolvimentista, ele, como indígena, mantém essa tradição. Tanto que os bolivianos traduzem o bem-viver como viver bem. Quando se pergunta para eles por que não bem-viver, dizem que é porque a vida tem que vir antes. Nos Guarani, é o Tekoa Porã, que é o modo bom de viver na casa.
É muito importante falar dessa universalidade. Às vezes alguém diz que isso é algo dos povos andinos, não está para nós, não é para cidade, é para o indígena que vive lá na montanha ou na floresta em modo de vida tradicional. Não é assim.
Na primeira parte falamos da democracia. Imagine se eu contasse que havia um povo que criava cabras, que tinha rituais e que eles se divertiam com uma luta em que dois homens eram jogados no ringue e valia tudo. Podiam morder e arrancar a língua, enfiar o dedo no olho do outro, morder a orelha. E eles brigavam até a morte e aquele que matava o outro, a comunidade toda festejava. Só os homens podiam decidir, e nem todos os homens, só os homens que eram proprietários e as mulheres tinham uma dimensão extremamente inferiorizada na sociedade. E esses homens tinham também crianças que eram usadas para seus instintos sexuais maiores. Se eu descrevesse esse povo e não dissesse quem era, alguém ouvindo ia falar que “povo selvagem”. Esse é o povo ateniense há 2500 anos. É de onde surge o pensamento filosófico, ocidental, a ideia de democracia.
A democracia é algo muito particular para Platão, pois a democracia ideal, é para 7 mil pessoas, não mais do que isso. É um particular, mas que ganha ares de universalidade. Não é possível dizer que o conceito de democracia que nós temos hoje é a democracia ateniense de 2500 anos atrás.
Em relação ao bem-viver é a mesma coisa: é um particular que caminha para ganhar outra universalidade. Em outros lugares há outras expressões disso, por exemplo, a permacultura, que distribuiu movimentos alternativos pelo mundo desde os anos 1960. Ela é baseada em um modo de vida dos povos originários aborígenes da Austrália, na cultura da convivência, de usar os recursos que tem ali no deserto, naquele ambiente e conseguir viver bem a partir disso. Também se aproxima do bem-viver. Assim como a filosofia do Ubuntu, que tem uma particularidade e uma força filosófica muito grande, porque o sentido do ubuntu é que a humanidade de uma pessoa só se realiza na relação com a humanidade dos outros.
Quando começamos a perceber o entrelaçamento desses particulares universais, conseguimos criar uma forma de convivência e até de cidadania planetária muito mais interessantes, que concorre com a democracia daquele povo esquisito, de hábitos estranhos e selvagens para o olhar de hoje, que foram os gregos atenienses, mas que ao mesmo tempo produziram e esquematizaram um pensamento muito valioso para nós nos tempos atuais. Assim será com o bem-viver também.
IHU – Eu gostaria que o senhor falasse um pouco da economia da reciprocidade. É possível equilibrar de forma justa e sustentável propriedade estatal, propriedade privada e bens comuns?
Célio Turino – A economia da reciprocidade é a economia do equilíbrio, não são trocas em que alguém lucra expropriando o outro, são trocas sempre de equivalência, esse é o sentido e essa é uma das bases do bem-viver. Ela tem o sentido do comum. Note que o bem-viver difere, por exemplo, do modelo do socialismo tal qual praticado no século XX, que é muito produtivista e exploratório. Além disso resultou em muitas coisas ruins também para a natureza. Como, Chernobyl, na Ucrânia, o Mar de Aral no Cazaquistão, que era um lago de água doce no meio do deserto tão grande que era chamado de mar. Salgaram o Mar de Aral e a Terra a partir de um sistema de irrigação que foi todo mal pensado. Na China também houve problemas, entre eles, o Grande Salto para a Frente do Mao Tsé-Tung, em 1958. Igualmente sob o capitalismo, que está levando o planeta ao colapso. O sistema capitalista é intrinsecamente ilógico, baseado na ideia da exploração e acumulação infinitas, sendo que vivemos em um planeta finito. Essa devastação se dá, inclusive, na atual fase da alta tecnologia, como com a extração de cobalto no Congo, usada para as baterias de lítio em smartphones e carros elétricos, e que é baseada no trabalho análogo à escravidão e sobre crianças.
A economia da reciprocidade tem um sentido do comunitário, não é estatal e também não é privada, ela convive e pressupõe outras formas de produção e financiamento, como as Illas [falei sobre isso em um texto que vocês publicaram]. É uma forma de convivência que se relaciona com a propriedade privada em pequena escala. Então, seria uma combinação entre propriedade estatal qualificada, pode haver uma dimensão do socialismo, propriedade privada em pequena escala, a propriedade comunal e a propriedade cooperativada. Na verdade, envolve um conjunto de convivências. A escala da propriedade privada não está definida qual é o tamanho, o que não pode ter é esse modelo de um sujeito que desafia o país, como o Elon Musk, do X (antigo Twitter). Esse é um tipo de propriedade que produz o pior dos autoritarismos, a pior da pior das ditaduras, que é de uma pessoa que acumula tanto e essa acumulação só tem sentido para que tenha um hiperpoder e isso não é compatível com a vida democrática. Aliás, não é compatível com nenhuma lógica de convivência de vida social. Na lógica do bem-viver, redes sociais deveriam ser plataformas públicas, sem dono, por dizerem respeito ao espaço do comum, como uma praça pública, e como foi originalmente sonhado, aliás, muitos dos desenvolvedores iniciais do Twitter eram frequentadores do fórum social mundial em Porto Alegre e de fóruns de software livre.
IHU – O que é o “Wayna Tambo”? Como a entidade surgiu e quais são seus efeitos sobre a política? O que temos a aprender com esta iniciativa?
Célio Turino – Wayna Tambo significa uma forma de estabelecer trocas equilibradas. É também o nome de um Ponto de Cultura lá em El Alto, município ao lado de La Paz. Como Ponto de Cultura, fundem cultura tradicional com jazz em idiomas quéchua ou aymará, com rádio, formação de jovens, artes e resistência democrática. Perceba que eu fico até feliz falar deles [risos]. É uma surpresa, um assombro entrar na sede do Wayna Tambo após passear pelas ruas de El Alto, essa troca comunitária, um mercado de equilíbrio, que é o significado da palavra, por isso que eles adotaram esse nome.
É exatamente a economia da reciprocidade, a economia do suficiente, que faz menção o frei Leonardo Boff. Aquilo que é bom, é justo e equilibrado. E ao ser bom, justo e equilibrado, é bom para todo mundo.
A Bolívia, de todos os países sul-americanos, é o país que teve experiências mais profundas de revolução. Passou por muitos golões de Estado, teve revolução no começo dos anos 1950, golpe e depois a revolução. Luta social muito intensa com os mineiros, os camponeses, tem uma certa homogeneidade também. Então, isso permitiu que houvesse essa luta social. Eles passaram na década de 1980 por uma derrota muito profunda, porque quando acabou a ditadura do Hugo Banzer, houve governos de esquerda no começo da década e foram governos que fracassaram. Fracassaram muito e frustraram muito a população. Então, houve uma grande derrota ideológica, de modo que nos anos 1990, o pensamento neoliberal mais predador estava muito presente na Bolívia. Com isso, pequenos grupos de resistência, comunidades – as que sobraram, porque naquele período eram muito perseguidos, mesmo na igreja católica, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. O tiquinho que sobrou, uns jovens e alguns setores que pensavam de uma forma diferente, recomeçaram [a resistência]. Mas começaram em condições muito adversas.
Há o episódio do Gonzalo Sánchez de Lozada, ex-presidente, e agora tem outro lá no Equador [Daniel Noboa], que também fala espanhol com sotaque gringo, um sotaque de Miami. Ele viveu na Flórida e volta, assim como Sánchez de Lozada, que falava com o sotaque de norte americano, apesar de ser boliviano. Era um governo muito dissociado do povo. Houve um massacre muito grande – eu descrevo em meus textos. No caso específico, após a chamada Guerra da água, acontecida em Cochabamba, houve a resistência contra a exportação do gás. À época o hidrocarboneto era visto como o último grande recurso natural mineral da Bolívia e que seria exportado via o Chile para os EUA. A Bolívia é muito rica em minerais, antes havia sido a prata e estanho, cuja exploração também não resultou em bem estar para a população, por isso não queriam que a situação se repetisse. Tinha o agravante do conflito da Bolívia com o Chile, que vem do século XIX e perdura até hoje, que foi a Guerra do Pacífico, que resultou com a Bolívia perdendo saída para o mar. O gás iria ser exportado e via portos chilenos. O povo se revoltou e seguiu para cercar La Paz, via El Alto, uma grande repressão estava sendo preparada por parte do governo, que resultaria em extermínio. Um detalhe, La Paz está localizada dentro de um vulcão inativo, por isso a única entrada é por El Alto, que fica na borda desse vulcão, no século XVIII houve um grande cerco a La Paz exatamente nesse local, comandado por Tupac Katari, de modo que essa memória está muito presente na população.
Os fracassos de movimentos de esquerda no mundo todo acontecem porque não se consegue enxergar [as virtudes do povo], esse fazer, essa beleza, que acontece nas condições mais adversas – Célio Turino
El Alto é uma grande periferia, uma na cidade de 1 milhão de habitantes, maior que La Paz e reúne indígenas não só do altiplano, de toda a Bolívia – fica a 4 mil metros de altitude e acho que é a maior cidade do mundo nessa altitude. La Paz é um pouco mais abaixo, apesar de ser altíssimo, entre 3,3 mil metros e 3,6 mil metros. O Pico da Neblina não tem isso. Na Bolívia eles conseguiram por um arranjo uma rádio comunitária. Com a Rádio conseguiram construir uma comunicação popular em El Alto, muito grande. Com a ideia de alertar a população batendo ferro nos postes que eram de metal, fizeram uma sinfonia e conseguiram, com isso, barrar a intervenção do exército. Mas não pensemos também que é uma coisa idílica.
Veja que até na luta do bem-viver eles derrubaram um vagão de trem pra fechar a avenida para não deixar tanque passar. E, assim, evitaram que o massacre em relação aos camponeses que estavam se dirigindo a La Paz, fosse muito além do que a morte de cerca de 80 pessoas. É a força do pequenino, da pequena troca das cholas – como são chamadas as mulheres bolivianas mais “gordas”, as “comedoras de milho”, que é comida dos indígenas. Então, mesmo lá na Bolívia tem um racismo grande contra os indígenas. Agora menos, mas no começo do século tinha muito. Foi a resistência dessas pessoas.
(Mapa: anthropologyofarchitecture.com)
No começo do tempo do celular, as pessoas não tinham o aparelho. Havia um “camelô” que andava com celular pendurado no corpo e cobrava para o pessoal usá-lo, isso em 2003/2004.
Eu fico emocionado porque isso é como se fosse uma revolta daquelas pessoas mais abandonadas, um camelô, uma mulher que vai na porta de um metrô na madrugada para vender uma xícara de café quente para alguém tão explorado quanto ela.
Foram essas pessoas conseguiram reverter o processo de dominação. Depois surge o fenômeno do Evo Morales, que já estava se formando, um líder sindical de produção de coca na região de Cochabamba. Depois que ele vem há resistência dessas pessoas. Ao mesmo tempo em que eles fazem muita resistência a partir da troca, com muita sofisticação, mistura. Quando se entra em uma rua que tem aquelas mulheres vendendo comida e indígenas, daqui a pouco se vê um espetáculo de jazz cantado em quéchua. As pessoas estereotipam muito o povo. Olha o povo de uma forma muito por fora.
Quando eu falo disso, estou falando das virtudes que o povo tem [o professor se emociona] e elas não são percebidas. Os fracassos de movimentos de esquerda no mundo todo acontecem porque não se consegue enxergar esse fazer, essa beleza, que acontece nas condições mais adversas.
Isso é o Wayna Tambo e eles continuam aí.
Este é um povo que não desiste, um povo que estuda e se compromete muito, que poderia ter um outro padrão de vida, mas que se dedica a isso. Mas, perde muito também, pois tem muita derrota aí no caminho. Como se cultivam as virtudes, também se cultivam as feiuras do povo. Às vezes não conseguimos sair do atoleiro por isso também.
IHU – Por que para entender o que acontece na Bolívia é preciso compreender o sentido do q’ipur kama?
Célio Turino – É esse o mérito de um mundo não acelerado, de um mundo que não se separa da sua raiz, que pensa para o dia de trás. É a Sankofa, aquela ave [mitológica] que voa olhando para trás. Se vira para frente olhando para trás, é a ideia do fio da Ariadne.
A Ariadne enfrentou o Minotauro, que dominava uma ilha. Quem desafiasse o Minotauro morria, porque ficava preso em seu labirinto. Houve a coragem do Teseu, mas sem a inteligência da Ariadne, da mulher, Teseu jamais teria vencido o Minotauro e saído do labirinto. A Ariadne desfaz o vestido e deixa o fio para conduzir Teseu à saída.
O mundo hoje está perdido, porque estamos dentro de um labirinto. Não saímos porque não temos um fio de Ariadne a conduzir Teseu para fora do labirinto do Minotauro ou porque não temos a prática do q’ipur kama, que se refere ao dia de atrás, ou porque não nos guiamos por um pássaro como Sankofa, que voa para frente com a cabeça virada para trás.
Veja, não dá para hierarquizar, mas esse caminho da separação, de entender o planeta como algo a parte da hiperexploração da natureza e das pessoas é suicida, pelo menos para a grande maioria da humanidade e dos outros seres, que não tem nada a ver conosco, mas que estão padecendo.
IHU – Para além dos pontos que o senhor já abordou nesta entrevista, que outras formas de resistência emergem da América Latina? Como escapar das encruzilhadas da razão ocidental?
Célio Turino – Penso que é pelo corazonar mesmo. Juntar coração com razão e com a ação, porque corazonar é o sentir e pensar numa síntese. Falamos: eu vou pensar. Não, tem que sentir e pensar. Então, nós somos resultado das nossas nervuras da sensação. Quando tem essa integração, conseguimos ir adiante. Se não, fica essa manipulação do pior das pessoas, das emoções. É o que Baruch Spinoza também falava dos afetos tristes, que deprimem a potência. Com isso, manipulam-se os medos, a raiva, o ódio etc. Tudo isso é altamente depressivo e leva a uma imobilização.
Portanto, precisamos cultivar os afetos alegres. Martin-Baró e o Spinoza com certeza, quando colocava isso de cultivar as virtudes, indicaram esse caminho. Se não olhamos para as virtudes e ficarmos presos a outros valores, que são o da hiperexploração, da ambição, das ganâncias desmedidas, jamais conseguiremos sair do labirinto em que nos metemos.
IHU – A esquerda brasileira é capaz, se não de entender, pelo menos de ouvir os povos nativos do Brasil? Quais os desafios da esquerda nesse sentido?
Célio Turino – Falando especificamente de Brasil, há algum entendimento. Ele é muito expresso pela figura simbólica do Lula, que representa o povo, com nossas qualidades e defeitos. Tem muito também de senso comum no pensamento e na prática. Do senso comum, ele vem sempre retrospecto, carrega também muitos equívocos e preconceitos. O papel da esquerda teria, em primeiro lugar, de ir além do senso comum, reproduzindo outras práticas. Ir além de senso comum, exige, ao mesmo tempo, um mergulho na alma popular – não é fácil fazer isso, porque a alma popular carrega o senso comum, mas tem que mergulhar e conseguir ir destilando e refinando esse jeito de ser do povo.
O nosso pensamento no campo da esquerda ainda é muito racional. Ao ser muito racional, incorpora alguns paradigmas que são equivocados. O principal deles é essa ideia de desenvolvimento e exploração da natureza, mesmo quando é feito assim, com a alcunha de desenvolvimento sustentável ou para a inclusão. E, ao incorporar essa forma de pensar, não conseguimos fazer um mergulho o para o salto civilizatório que o mundo exige. Não sei se vai acontecer, mas é necessário. E só vai acontecer quando houver o encontro da cultura com a natureza. Porém, cultura e natureza sempre foram tratadas distintamente: natureza é aquilo que e cultura é, que dá sentido ao que é. A grosso modo, alguém vai dizer o que é cultura? Tudo o que não é natureza, que não é elaborado simbolicamente. A nossa colaboração simbólica – isso os povos originários ensinam – é resultado do ambiente em que nós vivemos. Temos que fazer esse encontro de cultura com natureza. Quando a esquerda tiver a capacidade de compreender isso, eu creio que aí vai sair do atoleiro, porque vai conseguir oferecer uma nova utopia e esperança. Hoje, as coisas estão muito limitadas.
O máximo que a esquerda consegue propor é inclusão. O que é importante para quem está passando fome, por exemplo para comprar comida. São conquistas importantes, mas é além do ter algumas coisas, é necessário ir adiante, as pessoas querem ir além.
A esquerda está perdendo porque tem vergonha de ousar mais, ela se disciplinou, não ousa e está nesse movimento sem utopia. É aquilo que o [Eduardo] Galeano escreveu sobre utopia – se atribui a ele, mas nem sei se foi exatamente ele. Alguém disse em algum lugar que a utopia é como o horizonte: quanto mais se caminha em direção a ela, mais distante fica. Mas esse é o papel da utopia: nos colocar caminhando. Quando se reduz o horizonte utópico, se caminha menos, e é isso que está ocorrendo.
A explosão da direita no mundo é que eles perceberam que tinham que parar de ter vergonha de se assumir como direita. Então existe o orgulho de ser o mais horrível. E agora com esse cara de São Paulo [Pablo Marçal], hiperboçal e absurdo, eles liberaram todos os seus demônios. E vai ter mais demônios, vem depois. O mundo posto sempre tem o rato, depois do rato tem o esgoto, depois tem...., sempre é complicado.
Perceba que a esquerda se moderou. Eu nasci em 1961, nos anos 1980, depois da ditadura, era muito raro encontrar uma pessoa que dissesse que era de direita, raríssimo. As pessoas se diziam de centro, social-democrata, elas não se assumiam. Depois de 2010 para cá, houve um movimento pelo orgulho das pessoas se assumirem de extrema-direita, coisa que era impensável há 20, 30 anos, de alguém falar isso impunemente. Tinha o Bolsonaro, mas era uma coisa meio ali, fechadinha, pequena. Isso se catalisou. Por outro lado, a esquerda ficou muito cordata na forma de pensar. Ela tem receio de dizer algumas coisas e isso nos leva à situação em que estamos.