Autonomia: os povos estão transitando por um novo caminho emancipatório. Entrevista especial com Raúl Zibechi

O jornalista uruguaio acentua a “necessidade de revisar e discutir o pensamento crítico herdado das tradições europeias para compreender a crise civilizatória, política e econômica das sociedades, tal como estamos atravessando na América Latina”

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

08 Abril 2024

A estratégia dos movimentos sociais e das esquerdas, fundamentada no pensamento crítico oriundo da Revolução Francesa, “já não pode ser utilizada”, insiste Raúl Zibechi. Da mesma forma, sublinha, a alternativa à crise civilizacional não é a instituição de outros impérios. “A alternativa não é a Rússia, não é a China”. A aposta do ativista é na formação de comunidades autônomas, a exemplo das que estão se configurando na Amazônia brasileira e peruana na última década, a partir da experiência dos povos originários que lutam pela demarcação e preservação dos territórios. Segundo ele, “a autonomia é uma nova ferramenta” utilizada pelos povos que “estão transitando por um novo caminho emancipatório”.

Atualmente, informa ele, na Amazônia Legal brasileira “existem 26 protocolos de demarcação autônoma envolvendo 64 povos em 48 territórios diferentes”. Já na Amazônia peruana, acrescenta, “existem, até o momento, nove governos territoriais autônomos”, que “impedem o desmatamento da Amazônia e a contaminação dos rios”.

A apresentação de experiências emancipatórias foi um dos pontos da videoconferência “Descolonização do pensamento crítico. Crise política e práticas emancipatórias na América Latina”, ministrada por Raúl Zibechi no “Ciclo de Estudos América Latina em tempos de penumbra. Incertezas e possíveis rotas”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

No evento, o jornalista uruguaio comentou aspectos da crise civilizatória na América Latina, como a ruptura do vínculo social. “Existe uma crise do vínculo social, a crise do estar na sociedade. Hoje, temos uma grande dificuldade, qual seja, o que entendíamos por sociedade já não é a mesma coisa. Na atualidade, estamos diante de uma sociedade cujas relações humanas foram rompidas, onde as pessoas não reconhecem a humanidade das outras e isso habilita a violência e o extermínio dos outros, os diferentes”.

A seguir, publicamos a conferência de Raúl Zibechi no formato de entrevista.

Raúl Zibechi (Foto: Correio da Cidadania)

Raúl Zibechi é escritor, jornalista e pensador-ativista uruguaio, dedicado ao trabalho com movimentos sociais na América Latina. Foi membro da Frente Revolucionária Student – FER, grupo de estudantes ligados ao Movimento de Libertação Nacional – Tupamaros. Em meados dos anos 1980, começou a publicar artigos em revistas e jornais de esquerda (Página Aberta, Egin, Libertação) e meios de comunicação da América Latina (Pagina|12, Argentina, e Mate Amargo, Uruguai).

Foi editor do semanário Brecha e ganhou o Prêmio de Jornalismo José Martí por sua análise do movimento social argentino que levou à insurreição de dezembro de 2001. Entre suas publicações mais recentes, estão: Latiendo Resistencia: mundos nuevos y guerras de despojo (Oaxaca: El Rebozo, 2015), Descolonizar el pensamiento crítico y las prácticas emancipatorias (Quimantú, 2014 y Desdeabajo, 2015) e Preservar y compartir: bienes comunes y movimientos sociales (Buenos Aires: Mardulce, 2013).

Confira a entrevista.

IHU – Em que consiste a ideia de que vivemos uma crise civilizatória?

Raúl Zibechi – Gostaria de começar mencionando a necessidade de revisar e discutir o pensamento crítico herdado das tradições europeias marxistas, anarquistas, social-democratas ou cristãs, pensamento usado para compreender a crise civilizatória, política e econômica das sociedades, tal como estamos atravessando na América Latina. Esta crise civilizatória não tem precedentes. A crise da civilização moderna, ocidental, patriarcal, capitalista, colonial é a causa definitiva de que o nosso pensamento crítico está em crise também. É necessário discutir novamente essas ideias.

Quando falamos de “crise”, normalmente pensamos e refletimos sobre uma crise econômica ou outro tipo de crise, como a queda da atividade produtiva, problemas de saúde ou qualquer outra dimensão do humano, mas, depois da crise, em seguida, vem uma recuperação. Porém, quando falamos de crise civilizatória, trata-se de algo muito complexo porque não temos precedentes, em nossas culturas, de uma crise civilizatória. Quando falamos de crise civilizatória, estamos dizendo que diversas crises estão entrelaçadas, que elas têm relação entre si.

Existem crises econômicas. Sem dúvida, existe uma crise do sistema-mundo, que é o sistema criado quando nasceu o capitalismo 500 anos atrás, o qual foi desenhado mais recentemente pelos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A unilateralidade dos EUA já não existe mais porque boa parte do mundo não é mais unilateral, mas multilateral, uma vez que muitos são os países que têm importância na configuração da realidade.

Também temos a crise ambiental e a crise do patriarcado. A crise do patriarcado é importante porque ajuda a explicar muitas coisas, como a ascensão do bolsonarismo e a ascensão de Javier Milei. A crise do patriarcado libera as forças mais reacionárias da sociedade e a violência contra as mulheres.

Além dessas, também existe uma crise do vínculo social, a crise do estar na sociedade. Hoje, temos uma grande dificuldade: o que entendíamos por sociedade já não é a mesma coisa. Na atualidade, estamos diante de uma sociedade cujas relações humanas foram rompidas, onde as pessoas não reconhecem a humanidade das outras, e isso habilita a violência e o extermínio dos outros, os diferentes.

Crise ou colapso

A ideia de crise civilizatória é próxima da ideia de colapso. Gosto mais de falar em colapso, não por uma questão de colocar medo ou criar uma situação terrível, mas porque o sistema-mundo e o meio ambiente estão em uma situação tal que o colapso é possível. Não digo, como os terraplanistas, que o colapso é inevitável e que chegará amanhã. Afirmo que estão acontecendo situações muito próximas da ideia de colapso.

O sistema político nega completamente a ideia de colapso. Colapso e crise são conceitos completamente diferentes e não podemos confundir um com o outro. Nossos países atravessaram crises econômicas e políticas, mas colapso é algo mais abrangente, que envolve diversas áreas. Hoje, existem duas grandes novidades em relação à crise dos anos 1960, que desembocou no golpe de 64: a questão ambiental, que é determinante e cria mais complexidade nas crises econômicas e políticas, e a questão do patriarcado, que cria uma situação mais grave no âmbito das relações sociais.

IHU – Como isso se manifesta na América Latina?

Raúl Zibechi – O que estamos vendo na América Latina, na atual conjuntura, é a crise das democracias. Em alguns casos, estamos perto do colapso das democracias. Milei, na Argentina, ultrapassa os limites tradicionais da sociedade, que era mais equilibrada. Ele fala em abolir direitos históricos adquiridos pelos trabalhadores e, com ele também, há uma ascensão da ultradireita. No Brasil, não sabemos o que sucederá com Bolsonaro, mas o bolsonarismo não está morto. A figura de Bolsonaro é uma parte do bolsonarismo, mas o fenômeno bolsonarismo tem um caminho adiante importante. No Peru, o governo de Dina Boluarte assassinou 50 manifestantes ano passado e tem uma estabilidade institucional importante.

Também estamos vivendo uma crise próxima do colapso em nossas sociedades. Quando as pessoas não podem sair na rua à noite, como é atualmente o caso em Quito, no Equador, estamos diante de um sinal de que o vínculo social não existe, de que este vínculo foi rompido. A ideia da sociedade como sendo uma unidade, onde as pessoas se reconheciam como sendo parte da mesma nação, dos mesmos símbolos nacionais, está completamente destruída desde o momento em que a extrema-direita se apropriou dos símbolos nacionais, como a bandeira, para lutar contra a esquerda.

Neste ambiente, o reconhecimento dos direitos dos outros está sendo vulnerabilizado. A saúde, a educação, a justiça, estão se desmoronando, se compararmos a situação dessas áreas com o que sucedia 50 anos atrás. O mais importante: o Estado-nação mudou. A investigação do assassinato de Marielle Franco no Brasil é uma clara demonstração de que o Estado foi apropriado pelas forças mais violentas e retrógradas da sociedade. As milícias herdeiras do esquadrão da morte no Rio de Janeiro são forças importantíssimas na hora de configurar o Estado que, em alguns territórios, é um Estado miliciano que trabalha para as milícias. Elas foram se apropriando dos aparelhos do Estado, como da polícia, dos vereadores, dos deputados etc. O caso do Rio de Janeiro poderia ser considerado uma exceção, mas cresce na América Latina de forma exponencial.

Uma manifestação importante da crise civilizatória é que o Estado já não é o mesmo de 50 anos atrás. Alguns eram oligárquicos, outros, mais democráticos, mas, hoje, existem Estados mafiosos. É um problema gravíssimo. Comparar o Estado mafioso do Peru – onde a maioria dos deputados é vinculada à direita herdeira de Alberto Fujimori –, que é capaz de assassinar pessoas sem nenhum problema, com o governo dos militares nos anos 1960, que fez a reforma agrária mais importante depois de Cuba, mostra que há um abismo entre aquela governabilidade e o Estado de hoje.

Descolonização do pensamento crítico. Crise política e práticas emancipatórias na América Latina:

IHU – Quais as dificuldades dos povos e movimentos que lutam por direitos neste contexto?

Raúl Zibechi – Diante desse panorama, os movimentos, as esquerdas, os povos que lutam, como negros e indígenas, têm dificuldades porque estão lutando com ferramentas e um imaginário antigos para enfrentar uma situação na qual essas ferramentas já não têm utilidade.

A estratégia dos movimentos e das esquerdas foi feita em dois movimentos: primeiro, a luta para se apropriar do poder político do Estado pela via eleitoral ou revolucionária e, depois da conquista do poder, em segundo lugar, mudar o mundo. Essa ideia foi criada pelo pensamento crítico depois da Revolução Francesa. Essa estratégia tem dois séculos. Hoje, ela já não pode ser utilizada. Encontramos governos ou regimes progressistas que já não podem usar a ferramenta do Estado para fazer mudanças.

Próximo do dia 30 de março, o presidente Lula enviou uma carta aos ministros, orientando-os a não realizar celebrações sobre o golpe militar, seguramente para não irritar os militares. Acho que Lula não pensa dessa forma, mas o que quero dizer é que os militares, a polícia, os empresários, as grandes corporações internacionais, têm capacidade de impedir mudanças, de inviabilizar governos. Já sucedeu com Dilma. Agora está sucedendo com Gustavo Petro na Colômbia. Sucedeu com o kirchnerismo na Argentina. A única exceção é o México, com Andrés Manuel López Obrador, que assumiu completamente o programa neoliberal e militarizou o país, entregando às Forças Armadas as principais obras de infraestrutura.

Quando um governo quer fazer mudanças de verdade, o cenário internacional cria uma situação de bloqueio para impedir que essas mudanças sejam feitas. Tenho certeza de que o governo Lula é absolutamente melhor do que o governo Bolsonaro, que o governo Petro é muito melhor do que os governos colombianos de direita, que são de ultradireita. Mas a possibilidade de mudanças, até de mudanças pequenas, não é certa. Muitas das ideias desses governos não puderam ser implementadas porque o 1% mais rico e poderoso tem se apropriado do aparelho estatal para blindar seus próprios interesses.

IHU – Diante dessa realidade, qual é a saída?

Raúl Zibechi – Não sei. Uma saída não é simples. Dois séculos de uma prática política, social, de ativismo e militância, não podem ser mudados em poucos anos. Estamos diante da crise das formas tradicionais de fazer política, mas temos a necessidade de reconhecer que essas formas têm problemas, dificuldades; essas formas têm, principalmente, bloqueios externos da burguesia, dos EUA, dos poderes financeiros mundiais, como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, mas também tem problemas internos, ou seja, limites próprios. Não podemos mudar o FMI, o BM, a política americana nem da União Europeia. Podemos resistir, colocar um freio.

A situação hoje é pior porque os dois possíveis presidentes dos EUA, Trump e Biden, têm a mesma política externa. Eles apoiam completamente o genocídio contra o povo palestino em Gaza. A política externa dos dois partidos históricos americanos é a mesma. Mas a alternativa não são outros impérios: a alternativa não é a Rússia, não é a China. Eles praticam também a acumulação por roubo. Não podemos acreditar que as mudanças que os povos precisam virão de outras potências porque, nas regiões onde as empresas chinesas estão minerando ou construindo obras de infraestrutura, os problemas dos povos originários são os mesmos.

Portanto, os impérios não são uma alternativa para a dominação imperialista. O que podemos fazer é uma revisão do pensamento crítico herdado. Precisamos ajustá-lo, mudar as estratégias, as formas de lutas, os objetivos que tínhamos. O centro do movimento das lutas emancipatórias foi uma luta em duas etapas: a conquista do espaço e a mudança. Isso deve ser discutido, como comentei.

Pensamento crítico

O pensamento crítico foi criado na Europa, no século XIX, e foi modificado, mas, depois, o pensamento crítico foi fortemente influenciado pela Revolução Russa. Lenin e outros revolucionários, como Marx e Engels, criaram o pensamento crítico das esquerdas existentes. Também existem os pensamentos críticos cristão, o humanista, o anarquista e o social-democrata, mas o mais amplo e o que teve maior impacto foi o de Marx.

O pensamento crítico nasceu na Europa a partir das experiências dos trabalhadores europeus. É um pensamento formulado por homens brancos, acadêmicos, que difundiu, na forma de livros, manifestos, jornais, o pensamento racionalista. O livro ocupa o centro do pensamento crítico. Mas o principal problema é que trasladar um pensamento criado em um continente, em um contexto, para o mundo todo, é uma atitude colonial.

Marx trabalhou muito a economia capitalista e criou o conceito de mais-valia (mais-valor), mas, se formos a uma comunidade yanomami e falarmos de mais-valor, não seremos compreendidos por que ela não vive em um mundo no qual as relações sociais baseiam-se no trabalho assalariado. Os povos indígenas e os camponeses não se consideram proprietários de sua força de trabalho, como falava Marx da classe trabalhadora, porque rejeitam a ideia de propriedade nem se consideram a si mesmos como mercadoria. Também nas periferias urbanas encontramos muitas manifestações dessa vida, que é muito diferente da que falavam os pensadores dos séculos XIX e XX. Então, o pensamento crítico deve ser descolonizado e despatriarcalizado.

IHU – Como?

Raúl Zibechi – Aqui há uma armadilha. A descolonização do pensamento crítico não ocorrerá pelo caminho de alguns pensadores publicarem livros sobre a descolonização, porque isso seria reproduzir a mesma lógica dos artigos acadêmicos coloniais, com a diferença de que agora produzimos artigos acadêmicos não coloniais ou anticoloniais.

Silvia Rivera, intelectual e ativista boliviana, de origem aimará, feminista, fala que o decolonial é uma moda, o pós-colonial, uma utopia e o anticolonial, uma luta. Então, devemos refletir sobre as práticas emancipatórias dos povos originários, dos quilombolas, dos camponeses, dos favelados e das mulheres que lutam, as feministas. Eles são os sujeitos dessa prática de descolonizar o pensamento crítico. Os sujeitos não podem ser os acadêmicos nem os jornalistas. São os povos originários, os zapatistas, os aimarás, os quíchuas, os quilombolas. A descolonização é a prática dos sujeitos coletivos e das mulheres em movimento. Essas experiências são a luzes que iluminam o que pode ser a descolonização.

Se olharmos para essas práticas, veremos que esses povos não desejam a conquista do Estado. Em algumas ocasiões, algumas lideranças são nomeadas ministros ou ministras, como o caso de Sonia Guajajara, no Brasil, mas o objetivo do movimento não é esse. O objetivo é formulado claramente pelos indígenas: a defesa de seus territórios, a criação de espaços próprios para defendê-los e a discussão e confrontação de propostas que, em algumas ocasiões, os levam a apoiar o Estado em questões que são favoráveis para eles.

Quando um governo decide colocar um indígena ou um quilombola em um cargo, provoca uma discussão interna muito forte. Sempre existem aqueles que apoiam esse caminho, mas é importante destacar que essa não é a energia principal dos povos. A energia principal deles é afirmar o território e criar condições para que o território próprio não seja invadido pelo agronegócio, pela mineração e pelos jagunços e, nesses espaços territoriais, criar as melhores condições para a reprodução da vida. Essa é a energia mais importante dos povos. Chamo isto de “o caminho da autonomia”, é a luta pela autonomia.

Luta pela autonomia

Não existe uma única forma de autonomia, uma única maneira de considerá-la. Há muitas formas, mas todas passam pela afirmação do território, das autoridades tradicionais eleitas pelos próprios povos, sejam caciques, sejam lideranças coletivas. Não são as autoridades do Estado que governam esses territórios, mas as próprias autoridades indígenas, que lutam para ter um desenvolvimento próprio na produção, na educação, na saúde. Isso está presente em toda a América Latina, não somente nos povos indígenas, mas, cada vez mais, entre os povos negros.

Um caso interessantíssimo é o de Cauca, na Colômbia, onde nove povos têm, reconhecidos pela Constituição, autoridades públicas e territórios próprios. Eles têm uma guarda indígena, criada em 2000, para a defesa do território. Nos últimos seis anos, os povos negros do Cauca criaram a sua guarda. Ou seja, os povos negros também estão criando suas próprias guardas. Este é um processo que cresce em toda América Latina, muito lentamente, mas cresce.

A autonomia territorial é um caminho criado pelos povos. Ela está descolonizando as práticas emancipatórias. Estes povos não rejeitam a relação com o Estado, mas trabalham para que essa relação seja como a de duas pessoas adultas, e não de um menino e de um grande poder. Eles trabalham para que a realidade de sua autonomia seja integral. Não é uma autonomia parcial sobre a saúde ou educação, mas uma autonomia completa, que abarca todas as características da vida.

Novas práticas emancipatórias

Sei que muitos acreditam que a autonomia é uma prática marginal. É minoritária, sim, mas não é marginal e está crescendo de forma incrível em alguns países. Recentemente estive em Honduras, onde o povo garífunas, negro misturado com indígena, tem 48 comunidades no litoral do Caribe. Lá existem experiências de autonomia importantes em defesa dos territórios, inclusive com a criação de uma universidade própria. Estamos vivendo um processo inacabado de uma nova prática emancipatória.

Há também uma corrente de mulheres feministas que é autônoma, mulheres indígenas e negras. Nós, como jornalistas e pensadores, devemos aprender com elas: escutar, participar, sem protagonizar. Devemos aprender. É um caminho difícil porque somos brancos, urbanos e devemos lutar contra o nosso ego. O ego revolucionário, já dizia Foucault, é terrível porque acredita que tem o domínio da verdade. Nós temos a necessidade de aprender com os povos.

IHU – Que outros exemplos temos onde essas práticas estão acontecendo?

Raúl Zibechi – Vou mostrar mapas de regiões onde estão sendo produzidas práticas autônomas que marcam um caminho diferente nas lutas de descolonização do pensamento crítico.

Amazônia Legal brasileira

O primeiro mapa (abaixo) é da região da Amazônia Legal brasileira. Ele foi criado pelo pesquisador brasileiro Fábio Alkmin, que pesquisa processos de demarcação autônoma neste país. As áreas em azul claro indicam as zonas dos povos originários, que são trezentos. As áreas em vermelho indicam os povos que decidiram, em assembleia, com suas autoridades, realizar a demarcação autônoma dos territórios, uma vez que a Constituição brasileira, mais de trinta anos atrás, ordenou a demarcação dos territórios dos povos, mas a demarcação ainda não foi efetivada em muitos casos. Por essa razão, esses povos começaram um processo de demarcação autônoma. Isso implica a afirmação do território e a criação de guardas de autodefesa não armadas para impedir que grileiros utilizem o território.

Povos originários realizam processos de demarcação autônoma dos territórios na Amazônia Legal brasileira. (Foto: Reprodução)

O gráfico abaixo mostra este processo de autonomia começado em 2014. Sem dúvida, o avanço do agronegócio é a causa fundamental da proposta. Existem 26 protocolos de demarcação autônoma envolvendo 64 povos em 48 territórios diferentes – porque alguns povos compartilham territórios. Essa é uma pequena demonstração de que esse processo está acontecendo na Amazônia brasileira agora mesmo. A série histórica, no gráfico, vai até 2022. No total, 64 povos, dos 300, estão nesse processo de demarcação autônoma.

Protocolos de demarcação autônoma de terras indígenas entre 2014 e 2022. (Foto: Reprodução)

Amazônia peruana

Na Amazônia peruana, até o momento existem nove governos territoriais autônomos. O primeiro deles foi o povo Wampis, depois foram os povos Chapra, Shawi, Kukama, Awajún. Alguns povos têm uma população pequena. O maior é o Awajún, com 70 mil habitantes. No total, são 10 milhões de hectares onde funcionam governos autônomos. Eles impedem o desmatamento da Amazônia e a contaminação dos rios. Também existem povos com processos de autonomia fora da Amazônia, no sul do Peru, na zona Madre de Dios. Infelizmente, esses processos não são conhecidos fora do Peru.

Protocolos de demarcação autônoma de terras indígenas entre 2014 e 2022. (Foto: Reprodução)

Nove povos da Amazônia peruana. (Foto: Reprodução)

Territórios indígenas no Cauca, com quase 200 mil habitantes. (Foto: Reprodução)

Nos mapas abaixo, mostro um processo interessante ocorrido no estado mexicano de Guerrero. Em 1995, foi criada a polícia comunitária de Guerrero. Com esses mapas quero mostrar como pequenas iniciativas podem se expandir. Inicialmente, a polícia comunitária foi criada somente em quatro municípios de Guerrero. Em 2011, esta polícia se expandiu. O estado atravessava uma grande crise de segurança, e a experiência que começou em quatro municípios foi vista, por outros municípios, como um bom caminho. Em 2012, a experiência cresceu ainda mais e, no ano seguinte, houve a expansão das autodefesas. Isto mostra que experiências minoritárias bem-sucedidas podem ser generalizadas.

Criação da polícia comunitária de Guerrero em 1995. (Foto: Reprodução)

Expansão da polícia comunitária de Guerrero em 2013. (Foto: Reprodução)

Este outro mapa (abaixo) indica a zona das autonomias zapatistas no México. O território em roxo é o antigo território de autonomia zapatista, e os territórios em verde são os municípios absorvidos em uma nova etapa. Aqui, interessa assinalar o território zapatista de Chiapas, que é heterogêneo e equivale à superfície de um país pequeno como El Salvador. Insisto: isso não é marginal. Nem todas as famílias dentro do território zapatista são zapatistas. O que quero salientar é que essas são regiões onde existe uma força zapatista presente e a simpatia da população é maior ou menor, segundo o momento político de cada um.

Território zapatista autônomo. (Foto: Reprodução)

 

Povos originários do México. (Foto: Reprodução)

Este outro mapa é de povos originários mexicanos. A maioria deles já tem conselhos indígenas de governo.

Povos originários do México. (Foto: Reprodução)

Com isso, quero mostrar duas coisas: uma, que autonomias existem, não são marginais no sentido de que somente alguns povos estão fazendo isso; segundo, mostrar que os povos estão transitando por um novo caminho emancipatório, com novas ferramentas. A autonomia é uma nova ferramenta que não foi criada na Europa. A ideia de autonomia criada na Europa é completamente diferente desta dos povos.

Precisamos aprender que o centro do pensamento emancipatório e crítico não pode ser o livro; pode ser a dança, a música, o tecido, feitos de modo coletivo, onde as mulheres desempenham um papel comunitário importante. Acreditar que isso é folclore é um erro gravíssimo e uma atitude colonial. As práticas coletivas dos povos e a espiritualidade deles são muito complexas. Nelas há muito pensamento, muita cosmovisão, ou seja, são culturas que nos indicam outros caminhos ao lutarem por um mundo novo e resistirem ao capitalismo.

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