“Quando tomamos consciência de que a vida está em perigo, não podemos continuar como se nada tivesse mudado”. Entrevista especial com Raúl Zibechi

Para o pensador uruguaio, neste mundo instável e de disputas individualistas cada vez mais acirradas, a guerra pode ser cada vez mais cotidiana em todo o mundo

Imagem: Pixabay

Por: Entrevista e tradução: João Vitor Santos | 11 Janeiro 2024

É como se existisse o mal e, adubado com outras questões e especialmente pelo capitalismo, ele provocasse fissuras, as crises de nosso tempo. Para o pensar uruguaio Raúl Zibechi, o que se vê a partir destes traços é um horizonte sombrio de guerras. “Devemos estar atentos à proliferação de guerras, mesmo na América Latina”, ele aponta em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. E segue: “as guerras entre as nações podem se tornar uma realidade, como no caso da Venezuela e da Guiana por causa do Essequibo. Mas, também, há guerras não declaradas com a desculpa do tráfico de drogas ou da insegurança, algo que se espalha por todo o continente”.

Questionado sobre como compreende o mal neste nosso tempo de crises, Zibechi fala da ausência de espiritualidade como “o triunfo do individualismo e do consumismo, é considerar a natureza como um insumo e os outros seres humanos como meios ou obstáculos para a realização pessoal. É a base do patriarcado e do colonialismo e, portanto, do capitalismo”. Isto tem se tornado cada vez mais claro para ele depois do tempo em que viveu entre indígenas aqui no Brasil. “O mal é a destruição e a reificação da vida, a conversão da vida num meio de acumulação de riqueza. O mal é a ausência de comunidade, que é o que protege o comum”, acrescenta.

Na entrevista, ele destaca alguns pontos acerca da conjuntura latino-americana, ainda detalhando situações específicas de países como Argentina e Equador, que esta semana vive outra onda de violência. Sobre o Equador, o entrevistado é enfático: “a questão central deixou de ser o neoliberalismo e passou a ser a segurança. É onde estamos hoje. O tráfico de drogas é a desculpa perfeita para militarizar e prevenir novas revoltas”.

Sobre o Brasil, além de situar o país no contexto latino-americano, Zibechi revela uma certa decepção. “Infelizmente, Lula pratica um progressismo de baixa intensidade, sem promover mudanças fundamentais, muito menos ousado do que os seus dois governos anteriores. É verdade que tem sérias limitações pelos aliados que escolheu, pelo clima social e institucional prevalecente, mas é tão moderado, tão possibilista, que já não desperta entusiasmo”, revela.

O pensador uruguaio participará do Ciclo de Estudos América Latina em tempos de penumbra. Incertezas e possíveis rotas, realizado pelo IHU de 27 de março até pelo menos 22 de maio. Sua conferência, intitulada Descolonização do pensamento crítico. Crise política e práticas emancipatórias na América Latina, será em 4 de abril, a partir das 10h. Saiba mais na página de eventos do site do IHU.

Raúl Zibechi | Foto: ssb.org

Raúl Zibechi é jornalista, escritor e ativista, concentra suas áreas de estudos e reflexões nos movimentos sociais da América Latina. Publicou diversos livros, entre os quais destacamos: Dispersar el poder: los movimientos como poderes antiestatales (Tinta Limón, 2006), Territorios en resistencia: cartografía política de las periferias latinoamericanas (Lavaca, 2008), Brasil potência (Consequência, 2012), Los desbordes desde abajo: 1968 en América Latina (Desdeabajo, 2018) e Mundos Otros y pueblos en movimiento: debates sobre anti-colonialismo y transición en América Latina (Desdeabajo, 2022). Dos títulos em português mais recentes, destacamos: Territórios em rebeldia (Elefante, 2022).

Confira a entrevista.

IHU – Como descreve a atual situação política, econômica e social na América Latina?

Raúl Zibechi – Desde o fim do ciclo progressista, que pode ser datado em junho de 2013 no Brasil, e num futuro próximo em outros países, nenhum governo alcançou a hegemonia para o seu projeto. Nem os progressistas nem os conservadores. Então, vemos uma oscilação, um pêndulo para a direita e para a esquerda sem que ninguém consiga uma governança estável. Isto se deve, em grande parte, ao fato de que sob governos progressistas os setores populares ganharam dignidade e autoestima, nem sempre “graças” aos governos, mas seguindo os seus próprios caminhos e processos.

A direita e as classes dominantes se radicalizaram ao sentirem como seus privilégios simbólicos e espaços quase exclusivos eram “ocupados” pela população negra, indígena e popular. A rigor, não é uma polarização da liderança do partido, mas da base social (cidades e classes médias altas) que se reflete nos líderes políticos. A polarização social é o que formata, dá forma à polarização política.

Quanto à economia, o que vemos em todo o mundo é uma aceleração e um aprofundamento da acumulação por espoliação (David Harvey), que também foi nomeada pelos zapatistas como a “quarta guerra mundial” contra o povo. Nada do que acontece no mundo pode ser compreendido fora do modelo de desapropriação, porque é acelerado como consequência da tremenda disputa hegemônica entre a potência em declínio, os Estados Unidos, e a em ascensão, a China.

As guerras na Ucrânia e na Síria, bem como a guerra contra o povo palestino por parte de Israel, respondem a esta transição geopolítica que só pode levar a guerras locais, primeiro, e a guerras globais, depois, com grande risco de utilização de armas atômicas.

IHU – Como entender o que está acontecendo no Equador nestes primeiros dias de janeiro?

Raúl Zibechi – Acho que temos que fazer uma sequência cronológica. Em 2019, o movimento indígena e popular derrotou o pacote de medidas de ajuste do governo, na época de Lenín Moreno. Após 13 dias de combates no centro histórico de Quito, a polícia foi completamente derrotada, o povo organizado prendeu mais de 200 policiais que os entregaram à Cruz Vermelha e o governo teve que fugir para Guaiaquil. Algo totalmente inaceitável para um Estado.

 

Depois, o Estado aderiu à proposta ianque de guerra às drogas. A partir daí, o tráfico de drogas transbordou, tanto nas prisões com massacres com centenas de mortes quanto nas ruas. Portanto, a questão central deixou de ser o neoliberalismo e passou a ser a segurança. É onde estamos hoje. O tráfico de drogas é a desculpa perfeita para militarizar e prevenir novas revoltas.

Penso que não há diferença entre o tráfico de drogas e o Estado, porque ele controla a justiça, a polícia, os prefeitos e as províncias. Acredito também que a política antidrogas dos EUA não visa eliminar o tráfico de drogas, mas sim controlá-lo, por um lado, e utilizar grupos ilegais contra os movimentos e a população em geral.

IHU – O que é preciso essencialmente para compreender a eleição de Javier Milei?

Raúl Zibechi – A sociedade argentina está destruída, o vínculo social foi tão gravemente rompido que é difícil imaginar como pode ser reparado. Estamos perante uma grave divisão entre as classes médias/altas e os setores populares, entre jovens e idosos, entre mulheres e homens. A contradição é muito grave entre os jovens. A forte base social de Milei são jovens antifeministas. Nos seus eventos quase não há mulheres e a predominância são meninos entre 15 e 25 anos que não têm futuro na sociedade atual. Nesse sentido, é semelhante ao que aconteceu no Brasil com a ascensão de Bolsonaro.

Além disso, depois de quatro governos progressistas, há 45% da população na pobreza e 140% de inflação, o que tornou muito difícil a opção por [Alberto] Massa, que foi o último ministro da Economia de Alberto Fernández. Ambos os fatos, uma sociedade destruída e desmoralizada e uma inflação desenfreada com uma economia em crise permanente, levaram boa parte dos setores populares a apoiar um candidato que não vai fazer outra coisa senão piorar a sua situação.

A tudo isto devemos acrescentar a corrupção e as políticas sociais. Estas não conseguiram tirar milhões de argentinos da pobreza, mas tiveram dois efeitos negativos tremendos: transformaram os poderosos movimentos populares que derrubaram De la Rúa em 2001, como os piqueteros, em clientela de governadores, prefeitos e “ponteiros”, que é quem decide em cada território quem recebe os planos e as compensações que devem oferecer, como comparecer a comícios, manifestações e se tornar eleitor dos partidos a que pertence.

Em segundo lugar, as políticas sociais estendidas por duas décadas ou mais tiveram um efeito desmoralizante e, por vezes, humilhante sobre aqueles que as receberam, de modo que muita raiva se acumulou entre os que estavam na base. Isto ao ponto de se sentirem relacionados com o discurso de Milei, com suas ameaças, seu desprezo pelos políticos e toda aquela gritaria infernal.

Claro que a direita fez o seu jogo apoiando Milei, assim como boa parte da imprensa, mas acho que o ponto central é o fracasso do kirchnerismo e do progressismo.

Extrativismo como cultura

Milei representa o que chamo de “extrativismo como cultura”, o modo de vida e de consumo típico do modelo extrativista que não é apenas econômico, mas abrange toda a sociedade. Por exemplo, sonhos de sucesso individual, de progredir mesmo esmagando amigos e familiares.

Quando são questionados sobre os seus desejos, os jovens respondem que querem ser influenciadores e uma parcela significativa dos homens quer ser traficante de drogas. Milei os abençoa fazendo da motosserra um símbolo de sua política, que não é apenas cortar o Estado, mas também um meio de triunfar na selva social.

IHU – Como analisa estes primeiros momentos do governo Milei e as reações às suas medidas?

Raúl Zibechi – Ainda é cedo para saber o que pode acontecer. O que é notável é que os sindicatos e a esquerda estão se mobilizando com bastante sucesso, uma vez que as primeiras medidas anunciadas são tremendamente prejudiciais para a população. Não está claro para mim se os protestos irão aumentar e dependerá muito do que acontecer com a inflação. Se formos para uma hiperinflação de três ou quatro dígitos, poderá haver um estouro. Mas se ele conseguir reduzi-lo, então Milei poderá estabilizar o seu governo.

O que me surpreende é a rapidez com que ele começou o confronto com alguns polos de poder, como o jornal Clarín e os setores agroexportadores. Mas, insisto, teremos que esperar um pouco para saber onde estamos.

Por outro lado, as recentes decisões do sistema de justiça de colocar limites às suas reformas podem limitar o seu governo, mas são modificáveis e não acredito que o sistema de justiça possa ser uma trava aos erros de Milei.

IHU – Como esta eleição na Argentina deve impactar outros países latino-americanos? E como fica o Brasil neste cenário?

Raúl Zibechi – Pode contribuir para o fortalecimento da direita chilena e brasileira. O primeiro tem grandes chances já que Gabriel Boric tem pouco mais de 30% de aprovação e 2/3 terços de rejeição. No Brasil, o bolsonarismo não foi derrotado como projeto social e político, e nos demais países da região a direita se esconde como na Colômbia, com grandes chances de retornar ao governo. Em poucos anos poderemos ter um subcontinente colorido pela extrema-direita.

Bolívia

A situação mais dramática é a da Bolívia, devido à divisão do MAS causada pelo ataque de Evo Morales ao governo de Luis Arce, o que pode levar à derrota de ambos. A decisão do tribunal de impedir a nova candidatura de Morales beneficia-o, porque o seu papel ideal é o de vítima, quando na realidade desempenhou um papel na destruição dos movimentos sociais e na divisão do seu partido. Isso não por razões ideológicas, mas por ambição de poder e para retornar ao governo.

Aqui encontramos o drama de que os líderes progressistas não criaram as condições para o surgimento de novas lideranças coletivas, insistindo no aprofundamento do caudilhismo, que é uma forma colonial e patriarcal de governar.

BRICS

Contudo, a recusa do Milei em aderir ao BRICS é um ponto a favor dos EUA, que pode estar criando um isolamento significativo para o Brasil na região. Bolsonaro foi contra a China, mas nunca propôs deixar o BRICS. Agora que as condições globais mudaram, a ofensiva do Ocidente contra a China é muito poderosa e Milei pode ser um ponto de apoio nesse sentido, embora também tenha precisado moderar o seu ímpeto antichinês e anti-Lula. Se Milei se dolarizar, seria um problema sério para o Brasil e para os setores populares da Argentina, porque são processos difíceis de reverter.

IHU – Aqui no Brasil, o governo comemora o fortalecimento e a resiliência da democracia no dia 8 de janeiro, um ano desde o vandalismo contra prédios públicos em Brasília. A ideia é mostrar que, a partir das reações de 01-08-2023, a democracia resiste. Considerando o ano passado e a situação atual, podemos ser tão otimistas?

Raúl Zibechi – Na verdade, não há muito espaço para otimismo. A democracia está limitada em todo o mundo e, claro, na nossa região. Os crimes do governo de Dina Boluarte continuam impunes. A militarização de Wall Mapu por Boric é impressionante. A situação de segurança no Equador, assim como em outros países, é a desculpa para a militarização, o que representa logicamente um limite ao exercício dos direitos democráticos.

Com Decio Machado, publiquei o livro “Estados para espoliação: do Estado de bem-estar ao Estado extrativista neoliberal”, publicado recentemente pela Consequência, onde analisamos a mutação dos antigos Estados-nação em instrumentos de acumulação por espoliação. Esse é o verdadeiro pano de fundo da crise das democracias, digamos que é a razão estrutural da conversão das democracias em sistemas eleitorais para a legitimação do modelo.

Obra lançada em 2023 pela Consequência Editora | Foto: divulgação

Para o Brasil, a questão central é o protetorado militar da Amazônia, porque é aí que está o eixo da desapropriação. Isso vem de longe, da ditadura militar, mas o que chama a atenção é como os governos Lula abençoam o papel das Forças Armadas na região com a maior biodiversidade do mundo. É muito claro que os militares não vão deixar de controlar a Amazônia, porque para eles é um ponto crucial que também justifica o seu papel perante as classes dominantes que são as que realmente se beneficiam dos bens comuns que a floresta guarda.

A esquerda brasileira, se ainda podemos usar esse conceito, não propõe nada diferente em relação às Forças Armadas, mas também não faz nada diferente do que o grande capital quer em relação à Amazônia, ou seja, inseri-la nas cadeias globais. A esquerda se limita a judicializar Bolsonaro, deixando de lado a disputa territorial, material e simbólica com a extrema-direita e seus aliados, dos pentecostais às milícias e ao tráfico de drogas. Evitar o conflito é um dos maiores pecados desta esquerda institucional, porque sem conflito não poderemos converter a crise civilizacional numa oportunidade de transformar o mundo rumo à fraternidade e à liberdade.

IHU – Que sinais este terceiro governo Lula lhe envia?

Raúl Zibechi – Infelizmente, Lula pratica um progressismo de baixa intensidade, sem promover mudanças fundamentais, muito menos ousado do que os seus dois governos anteriores. É verdade que tem sérias limitações pelos aliados que escolheu, pelo clima social e institucional prevalecente, mas é tão moderado, tão possibilista, que já não desperta entusiasmo.

Acredito que com a sua atual política de compromissos e acordos com os partidos de centro e de direita, Lula está enviando sinais de que a relação de forças impede audácias e mudanças, mesmo que sejam pequenas. Na verdade, está novamente reforçando o extrativismo, mas agora com maior intensidade, enviando a mensagem de que nada pode ser feito contra as forças armadas que sabe serem bolsonaristas e um capital cada vez mais intransigente.

IHU – Num ano em que há pelo menos duas grandes guerras, uma em Gaza e outra na Ucrânia, uma crise ambiental que avança sobre a humanidade, que, por sua vez, enfrenta uma desfragmentação política, cultural, social e econômica, qual o horizonte você vê para 2024?

Raúl Zibechi – Sem dúvida, um horizonte de guerras entre Estados com arsenais atômicos e de guerras assimétricas contra os povos. Estamos perante o pior cenário desde o triunfo do nazismo há quase um século. O ano de 2023 já foi terrível com duas guerras declaradas (Ucrânia e Gaza) e com várias guerras não declaradas, especialmente na África. Em 2024, vejo uma aceleração e multiplicação de guerras. O Ocidente não permitirá que a Rússia ganhe na Ucrânia, nem tem a menor intenção de impedir a continuação do genocídio palestino.

Na medida em que as classes dominantes do Ocidente, especialmente os Estados Unidos, decidiram abrandar a transição para um mundo multipolar através da violência, não há forma de evitar as guerras. Na história, foram as guerras que delinearam as transições. Sem as duas guerras mundiais os EUA não teriam se tornado hegemônicos, e sem as guerras de independência na América Latina não teria havido o declínio de Espanha e Portugal e a ascensão da Inglaterra.

Marx e Engels foram muito claros sobre o papel da violência e da guerra na história, mesmo como potência econômica. Destaca-se que o salário começou nos exércitos. Mas, hoje, a esquerda e os movimentos não têm nenhuma política em relação à guerra que não seja o apoio às forças armadas dos Estados-nação, o que limita seriamente o seu potencial transformador.

Acredito que em 2024 poderemos testemunhar novas guerras, certamente no Oriente Médio, mas também noutras regiões do mundo. Acredito que a guerra será cada vez mais o cotidiano das pessoas, com a qual assistiremos a uma notável expansão dos feminicídios, da violência contra as mulheres, as crianças, contra as pessoas mais vulneráveis e com o risco de extermínio dos povos originários.

IHU – Que ligação podemos fazer entre a lógica do genocídio e a existência do capitalismo?

Raúl Zibechi – Como aponta, uma entrevista recente, com o sociólogo venezuelano Emiliano Terán Mantovani, “é contra as pessoas comuns que a guerra é declarada”. Isto é para a própria vida. Esta é a barbárie do capitalismo atual, que através das tecnologias que desenvolveu tem condições de “explorar a vida”, o comum, tudo o que nos torna humanos, além de continuar a explorar as pessoas.

Estamos, portanto, perante um capitalismo genocida, mas também ecocida, e compreender isto em toda a sua dimensão levaria a outro lugar, a reconhecer que as velhas formas de fazer política expiraram, que já não basta vencer eleições ou fazer uma revolução, porque as coisas estão indo na direção oposta. A manifestação, a marcha, toda a ação política pública de sensibilização da população e de pressão sobre os políticos deixaram de ter a importância que outrora tiveram. O que não significa que temos que renunciar a estas manifestações.

A mutação do capitalismo obriga a nos repensarmos coletivamente. Penso que essa é uma das razões pelas quais o zapatismo colocou a questão do comum no centro, dissolvendo os municípios autônomos e os bons conselhos de governo para dar lugar a outros caminhos, a serem semeados como sementes, como dizem. Lá, definem uma política de longo prazo, falam de 120 anos e sete gerações, porque esses tempos são o que a vida precisa para continuar sendo. Quando tomamos consciência de que a vida está em perigo, não podemos continuar como se nada tivesse mudado.

IHU – Como o senhor conceitua o mal e como ele se revela na política do nosso tempo?

Raúl Zibechi – No ano passado, tive a oportunidade de estar em uma comunidade Guarani Mbya na Terra Indígena Tenondé Porá, no sul do estado de São Paulo, na Mata Atlântica. Ali pude compreender a importância da espiritualidade para a própria existência das comunidades e dos povos. Sua espiritualidade não tem nada a ver com os misticismos que fazemos nos movimentos: uma prática de 20 minutos para facilitar os debates que são o tema central.

Entre os Guarani Mbya, e suponho que entre muitos povos, a espiritualidade é o centro de suas vidas, por isso passam horas e horas nas casas de oração dançando, cantando, cuidando do fogo... Não é algo instrumental, mas o centro de suas vidas, aquilo que lhes permite existir como pessoas e como comunidades. É por isso que os proprietários de terras queimam casas de oração quando querem destruir comunidades, porque elas são o cerne da vida.

Então, acredito que o mal é a ausência de espiritualidade, é o triunfo do individualismo e do consumismo, é considerar a natureza como um insumo e os outros seres humanos como meios ou obstáculos para a realização pessoal. É a base do patriarcado e do colonialismo e, portanto, do capitalismo. Por esta razão, entre outras razões, a opressão não pode ser eliminada de cima, através de leis ou decretos estatais, mas sim na vida quotidiana coletiva, de baixo para cima e a partir da fraternidade, da geminação.

Eric Hobsbawm disse que não havia nada mais ritual do que o antigo movimento operário dos artesãos e da indústria, com as suas reuniões e práticas profundamente espirituais, algo que as análises de E.P. Thompson também partilham. Seu maravilhoso livro “Formação da classe operária inglesa” (Paz e Terra, 2008) começa com uma reunião de trabalhadores em um bar de Londres compartilhando queijo e cerveja (se bem me lembro), de uma forma muito cerimonial, porque ele insistiu que classe não é uma coisa, mas um relacionamento, moldado pela vida juntos.

Obra de EP Thompson através da qual Zibechi destaca o operariado é um relacionado modelado pelo viver juntos | Imagem: divulgação

Pois bem, tudo isto para dizer que o mal é a destruição e a reificação da vida, a conversão da vida num meio de acumulação de riqueza. O mal é a ausência de comunidade, que é o que protege o comum.

IHU – O senhor falou do BRICS. Eu gostaria de voltar a este ponto: neste momento cada vez menos sólido, como analisa a entrada da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos no BRICS e os movimentos da China? Estaremos vivendo uma ocidentalização do Oriente ou um grande ataque do Oriente contra o Ocidente?

Raúl Zibechi – A expansão do BRICS é um claro movimento geopolítico impulsionado principalmente pela China e pela Rússia. Note que os cinco novos países do BRICS (Arábia Saudita, Emirados, Egito, Irã e Etiópia) estão todos relacionados com o Oriente Médio. O que indica que esta região será, e tem sido desde 7 de outubro, a chave da transição para um mundo multipolar. É por isso que os EUA deslocam nada menos que dois porta-aviões e dezenas de navios para aquela região. É por isso que tem tantas bases militares nesta parte do mundo, violando as regras internacionais, já que não têm nada a ver na Síria ou no Iraque.

Do ponto de vista dos grupos sociais, diria que estes são cinco países onde o autoritarismo estatal persegue cruelmente os movimentos ou simplesmente não permite que se expressem. Na realidade, entre os dez países do BRICS, apenas no Brasil e na África do Sul as pessoas podem mobilizar-se, mesmo com as limitações que conhecemos. Isto nos diz que o BRICS pode ser uma alternativa ao domínio ianque, mas de forma alguma representa um passo em frente na libertação da humanidade das suas cadeias.

Fico triste quando pessoas da esquerda dizem que a China é a alternativa aos EUA, que existe socialismo e coisas assim, porque estão confundindo geopolítica com luta social, ou estão escolhendo a primeira em detrimento da segunda.

IHU – Sobre o que devemos estar atentos neste no ano que apenas começa?

Raúl Zibechi – Devemos estar atentos à proliferação de guerras, mesmo na América Latina. As guerras entre as nações podem se tornar uma realidade, como no caso da Venezuela e da Guiana por causa do Essequibo. Mas, também, há guerras não declaradas com a desculpa do tráfico de drogas ou da insegurança, algo que se espalha por todo o continente numa escalada que lembra o que aconteceu na Colômbia na década de 1980.

Há alguns fatos que me surpreendem e não quero cair numa posição de “conspiração”. Em 2019, o movimento indígena equatoriano derrotou o governo de Lenín Moreno nas ruas e o forçou a reverter o seu pacote de medidas de ajustes. Nos anos seguintes, “apareceram” grupos de traficantes, espalhando uma impressionante onda de violência em todos os cantos do país. A partir daí, as revoltas que marcaram a história recente serão muito mais complexas e talvez impossíveis. Moreno se juntou à guerra dos EUA contra as drogas.

Algo semelhante aconteceu no México. Quando o cenário indicava que uma grande revolta popular poderia acontecer, foi declarada em 2006 a guerra ao tráfico de drogas, que aumentou exponencialmente a violência, afetando sobretudo os movimentos sociais e os povos indígenas. Muito antes, na Colômbia, a guerra contra as drogas era a desculpa para criar grupos paramilitares e deter movimentos. No Rio de Janeiro, você sabe, o verdadeiro Estado são as milícias, como aponta José Claudio Alves.

Por isso devemos estar atentos a esta transformação do poder do capital e nos adaptar às mudanças em curso.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Raúl Zibechi – Acredito que os movimentos que não têm uma política de guerra podem desmoronar como forças emancipatórias. Se a guerra for a política da vida cotidiana, algo terá de ser feito a respeito para não nos curvarmos a Estados como a esquerda europeia que se associou aos EUA e à OTAN, ou como os movimentos do velho mundo que se limitam a declarações pacifistas sem fazer mais nada.

Até agora, a esquerda manteve duas posições: o apoio irrestrito aos seus estados e às suas forças armadas e, por outro lado, a estratégia leninista de converter a guerra imperialista numa guerra de classes. Outros setores apoiam o pacifismo, que é eticamente positivo mas não parece capaz de influenciar os acontecimentos. Mas, agora, temos a posição zapatista e de muitos povos indígenas que me parece muito pertinente: autodefesa comunitária.

Entre os povos indígenas é comum encontrar guardas de autodefesa armados simbolicamente com estados-maiores de comando, como a Guarda Indígena Nasa na Colômbia ou as patrulhas camponesas no Peru; outros com armas de fogo, como a Polícia Comunitária de Guerrero; e, finalmente, outros casos, como o caso zapatista, em que estão armados, mas não fazem guerra e usam como dissuasão. A autodefesa se tornou o senso comum dos povos indígenas e cada vez mais dos povos negros, dos camponeses e de todas as populações que resistem ao extrativismo e ao capitalismo.

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