E se a reinvenção política para enfrentar as crises de nosso tempo passar por uma “virada animal”? Entrevista especial com Bruna Bataglia

Com base em sua tese doutoral, pesquisadora reflete sobre a animalização humana a partir de uma perspectiva do biopoder

Imagem: Pixabay

Por: João Vitor Santos | 14 Julho 2023

Os estudos acerca da chamada “virada animal” têm crescido e provocado muitas questões como essa que apontamos no título da entrevista: e se a reinvenção política para enfrentar as crises de nosso tempo passar por uma “virada animal”?

 

Bruna Bataglia é uma das pesquisadoras que têm se dedicado a refletir sobre a política animal. “Considerando essa imbricação inevitável entre humanos e animais, entre o humano e o animal, colocamos os debates políticos acerca da justiça social em outro nível, pois deixamos de considerar os mundos humano e animal como estanques ou passíveis de separação, para enfrentarmos esse desafio que é considerá-los como interconectados em um mesmo mundo”, explica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Bruna recupera seu percurso reflexivo e elabora o quanto uma visada animal de forma transdisciplinar pode nos auxiliar na concepção de caminhos para fazer frente, por exemplo, às mudanças climáticas. “Meu objetivo é justamente trazer a questão animal e as relações entre humanos e animais para o debate das mudanças climáticas”, defende. E completa: “a visão conjugada de diversas disciplinas tem permitido a construção de análises mais complexas e sofisticadas que nos permitem uma melhor aproximação do que seria esse todo chamado mudanças climáticas”.

No entanto, acerca da provocação que trazemos no título, a pesquisadora pensa que com relação à emergência de reinvenção da política em nosso tempo, não há uma resposta pronta. Ainda assim, ela crê que a política animal é uma das possibilidades. “Não poderia afirmar de antemão se uma política animal seria um bom caminho para reinventar a política em nossos tempos, mas diria que valeria a pena continuarmos avançando com propostas nesse sentido, pois o tempo da invenção, do novo e da mudança, me parece, tende a ser muito mais kairológico do que cronológico”, pondera.

Desse modo, a entrevistada recomenda que “sigamos com debates rigorosos, sofisticados e éticos para que, no momento em que a mudança acontecer, nós tenhamos arcabouços teóricos, imaginários e institucionais para dar conta dos possíveis avanços e dos novos desafios”.

Bruna Bataglia (Foto: acervo pessoal)

Bruna Mariz Bataglia Ferreira é doutora em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, doutoranda em Sociologia pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ. Possui especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Faculdade São Bento, do Rio de Janeiro, e é graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Atua como pesquisadora associada do Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas – OIMC-IESP e editora executiva da Revista Direito & Práxis e editora adjunta da RFD-UERJ. Trabalha também de assistente de edição na Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – IHGB.

Entre suas publicações, destacamos Estudos humano-animal: agência moral e brincadeira animal (Revista Direito e Práxis, v. 9, p. 2360-2381, 2018) e Confissão, biopolítica e racismo de Estado (Temiminós Revista Científica, v. 7, p. 1-2, 2017).

Confira a entrevista. 

IHU – Como você compreende a ideia de “política animal”?

Bruna Bataglia – A articulação entre política e animais tem crescido consideravelmente. A partir da dinâmica de debates nos campos da ética e do direito, em paralelo com diversas mudanças no tocante às práticas sociais em relação aos animais, somadas ao crescente número de movimentos sociais pelo bem-estar, direitos ou libertação animal, poderíamos dizer que o debate entre política e animais seria uma consequência quase inevitável.

Para pensar a questão animal, tenho preferido partir de uma perspectiva que muitos chamam de “estudos humano-animal”, mais do que “estudos críticos animais”. Não porque este último seria um equívoco ou que as questões animais não mereçam estudos autônomos – em alguns casos esse enfoque é decisivamente mais adequado. Mas, levando adiante a “perspectiva relacional”, cada vez mais presente nas humanidades e ciências sociais e que aponta a importância de olharmos para a relação entre indivíduos ao invés de olharmos para o indivíduo independentemente, entendo que, da mesma forma, o debate sobre a questão animal deve ser tomado a partir do enfoque sobre as relações entre humanos e animais.

Autoras como Donna Haraway e Anna Tsing contribuíram para isso. A perspectiva de Haraway de ajustar o olhar investigador para a “natureza humana” como uma “relação entre espécies”, afirmando que “ser um é sempre tornar-se com muitos”, e ao propor que os parceiros da relação não precedem a relação, ou seja, é no encontro que sentidos, sentimentos e posições são articulados, me parece ser um ponto importante para pensarmos uma política animal.

 

Sobre essa dinâmica do encontro entre as espécies, as análises de Colleen G. Boggs sobre as imagens de Abu Ghraib – a de uma soldada estadunidense que encoleira um iraquiano detido, e a de um soldado que junto com seu cão militar amedronta outro detido –, nos ajudam a compreender como funciona essa “grade de espécies” que organiza a distribuição de humanidade e animalidade.

Considerando essa imbricação inevitável entre humanos e animais, entre o humano e o animal, colocamos os debates políticos acerca da justiça social em outro nível, pois deixamos de considerar os mundos humano e animal como estanques ou passíveis de separação, para enfrentarmos esse desafio que é considerá-los como interconectados em um mesmo mundo. 

IHU – Que conceitos e autores são fundamentais para a formulação de uma virada animal a partir da perspectiva política?

Bruna Bataglia – Especificamente sobre a perspectiva política da virada animal – ou o que alguns autores chamam de virada política da ética animal ou dos direitos animais –, podemos citar os trabalhos de Martha Nussbaum, Sue Donaldson e Will Kymlicka, Alasdair Cochrane e Robert Garner para mencionar alguns. De certo modo, esse movimento procura deslocar o debate do campo da filosofia moral para o do campo da política, promovendo com isso, igualmente, um deslocamento da questão de escolhas individuais para uma visão em termos de comunidade política.

 

Enquanto Nussbaum proporá um enfoque acerca da justiça para animais não humanos a partir do que nomeou de “abordagem das capacidades” em contraste com o debate contratualista, especificamente com a teoria da justiça de John Rawls, Robert Garner, também em diálogo com Rawls oferece uma teoria da justiça fundamentada em uma teoria não ideal, buscando mostrar as possibilidades e os limites de pensar a justiça animal a partir de uma perspectiva liberal.

Donaldson e Kymlicka argumentam por diferentes estatutos políticos para diferentes grupos de animais – domésticos, limítrofes, selvagens – a partir da ideia de uma agência política relacional no âmbito da teoria da cidadania. De outra forma, Cochrane faz uma defesa do utilitarismo e do liberalismo como melhores recursos que as comunidades políticas podem utilizar ao pensar em como regulamentar suas relações com os animais, combinando essas teorias através de uma "abordagem de direitos baseada em interesses".

 

Autora brasileira

Já em terras brasileiras, sem dúvidas seria preciso mencionar o trabalho de Juliana Fausto recentemente publicado sob o título “A cosmopolítica dos animais”. Diferentemente dos trabalhos que buscam delinear uma teoria política animal através da institucionalização de questões de direito ou ética, Juliana oferece um outro enfoque para além do âmbito das instituições políticas da forma estatal, discutindo o próprio entendimento do que entende por política. Seu olhar para os encontros multiespecíficos na polis parece oferecer um “novo horizonte cósmico para a imaginação política”, como bem afirma a descrição do livro.

 

IHU – Você é pesquisadora associada do Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas – OIMC-IESP/UERJ. Que caminhos os estudos acerca da virada animal podem abrir para o enfrentamento das mudanças climáticas?

Bruna Bataglia – O OIMC foi criado em 2020 no IESP, dentro da UERJ, com o objetivo de promover e difundir pesquisas e práticas sobre a relevância central das mudanças climáticas nos modelos de desenvolvimento e processos de transformação social, a partir de um olhar interdisciplinar que envolve pesquisadores/as da ciência política, sociologia, relações internacionais, oceanografia e educação. A visão conjugada de diversas disciplinas tem permitido a construção de análises mais complexas e sofisticadas que nos permitem uma melhor aproximação do que seria esse todo chamado mudanças climáticas, com suas causas e efeitos.

Com minha entrada no OIMC em 2023 como pesquisadora associada, meu objetivo é justamente trazer a questão animal e as relações entre humanos e animais para o debate das mudanças climáticas, alinhando, assim, minha agenda de pesquisa com a do Observatório. A pesquisa sobre a relação entre pandemias, mudanças climáticas e relações entre humanos e animais é o ponto nodal dessas agendas, principalmente quando pensamos nas relações entre as espécies no âmbito dos modos de produção do agronegócio global.

Parte desse intrincamento já pode ser visto institucionalmente na necessidade de a Organização Mundial da Saúde – OMC empreender a One Health Initiative, que, através de uma colaboração quadripartite, reuniu a OMS, a Organização Mundial de Saúde Animal, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. A premissa dessa iniciativa é que a saúde humana, a saúde animal, a agricultura, a alimentação e o meio ambiente não podem mais ser pensados separadamente, e me parece que os pontos de análise e as futuras discussões, derivadas da extensa revisão de literatura que o Grupo Temático n. 4 da One Health está produzindo, nos dirão até que ponto esta iniciativa estará comprometida em apontar as vulnerabilidades dessa “saúde única” a partir da análise de fatores como a produção e distribuição de comida, a produção e o comércio de animais, e as mudanças climáticas, entre outros.

 

Natureza e sociedade

Há, além disso, e no que muito me interessa, uma discussão teórica que, em última instância, recai sobre a divisão moderna entre natureza e sociedade, e que estou sobrepondo àquela entre animais e humanos. De que modo a premissa que sustenta essa divisão nos impede de ter um outro olhar sobre a relação entre humanos, animais e meio ambiente, e o quanto é possível avançar e romper com essa divisão, que implica em uma saída da modernidade, é uma longa e complexa discussão.

IHU – Em sua tese doutoral, "Animalização humana: biopoder e a besta interior" (2022), você analisa como a animalização "se funciona" como uma operação do biopoder através da constante e ambígua divisão entre humano e animal. Eu gostaria que detalhasse essa relação entre a animalização e o biopoder.

Bruna Bataglia – Em minhas pesquisas durante o doutorado em Direito pela PUC-Rio, concluí que a temática que estava me mobilizando poderia ser unificada através do conceito de animalização humana. Identifiquei que, de uma certa forma, diferentes perspectivas teóricas, com seus respectivos objetos de análise, tratavam da ideia de animalização sem que houvesse uma sistematização e uma conceituação adequadas. Meu objetivo foi tentar avançar nesses dois pontos.

A ideia da animalização pode ser encontrada tanto nas discussões antropológicas sobre tabus e insultos verbais (como podemos ver nos trabalhos de Edmund Leach) quanto nos debates feministas sobre a histórica proximidade entre mulheres e animais (culminando na publicação do livro “Animals & Women: feminist theoretical explanations” ), nas críticas do racismo (como explicita Frantz Fanon em “Os condenados da terra”) ou ainda na crítica de Marx ao capitalismo, que reduzia os trabalhadores a uma condição animal.

Minha escolha teórico-metodológica para compreender a animalização humana foi a biopolítica de Michel Foucault, em diálogo com trabalhos que avançavam nesse debate através da ideia de uma biopolítica das espécies. Especificamente, as articulações e análises de Colleen G. Boggs, em seu livro “Animalia Americana: Animal Representations and Biopolitical Subjectivity”, foram muito instigantes e ricas para meus propósitos.

 

Animalia Americana: Animal Representations and Biopolitical Subjectivity, de Boggs (Columbia University Press; 2013) | Imagem: divulgação)

Nesse sentido, olhar para as relações entre humano e animal a partir da lente da biopolítica das espécies me permitiu identificar seu funcionamento a partir do que Cary Wolfe e Jonathan Elmer nomearam de “grade das espécies”, grade a partir da qual podemos falar em animalização humana, mas também em animalização animal, humanização humana e humanização animal – um entendimento que Ana Paula Perrota também chegou, por outros caminhos.

Besta interior

E a partir de um olhar mais genealógico, enquadrei a emergência da ideia de “besta interior” – como proposta pela historiadora Joyce Salisbury –, atualizada na ideia moderna de animalidade, como uma técnica de poder.

The Beast Within: Animals in the Middle Ages, de Joyce E. Salisbury (Routledge, 2022) | Imagem: divulgação

Olhando para o curso dos fins da Idade Média ao Renascimento, Foucault sugere que “a besta se liberta, escapa do mundo da fábula e da ilustração moral a fim de adquirir um fantástico que lhe é próprio”, passando a animalidade a ser a forma de legibilidade da desordem humana, da raiva obscura, da loucura que reside no coração dos homens. Esse entendimento só é possível se desnaturalizarmos-historicizarmos a própria ideia da besta interior – ou da animalidade – como uma forma de pensarmos a nós mesmos.

Desde a entrega da tese, venho envidando esforços no sentido de refinar e avançar com a sistematização do conceito de animalização, reflexões que espero compartilhar com as pessoas que se interessam pela temática, no formato de um artigo que estou terminando de escrever.

IHU – Sua tese observa que “diante de diversas experiências pré-modernas, não é possível equalizar a emergência da animalização ao contexto da modernidade colonial”. Mas, em que medida a modernidade e a pós-modernidade incidem sobre essa emergência da animalização?

Bruna Bataglia – No curso da pesquisa, fiz um deslocamento temporal para os séculos XII ao XV, principalmente em razão do trabalho da historiadora Joyce Salisbury intitulado “The Beast Within: Animals and Bestiality in the Middle Ages” (de 1994, com nova edição em 2022). Somado aos trabalhos de outras teóricas que buscavam construir uma contra-história da modernidade a partir das relações entre humanos e animais, me deparei com a animalização de mulheres, camponeses e judeus.

Isso colocou um problema e uma demanda por repensar as premissas que eu havia assumido em termos de pensar a animalização humana como um fenômeno estritamente moderno. Era preciso, portanto, compreender as semelhanças e diferenças entre as formas pelas quais esses grupos eram animalizados e a forma pela qual os grupos considerados nas críticas feministas, do racismo e do capitalismo o eram. Um dos pontos que julguei importante era o da “crise de distinções”, cujo auge estaria nos primórdios da Idade Moderna e que teria sido apaziguada com a filosofia cartesiana que teria resolvido as ambiguidades entre humano e animal.

Essa “crise das distinções” pode ser compreendida através do que Salisbury chamou de “o desmoronamento do paradigma da separação” entre humanos e animais, e que estaria calcado em três fundamentos: as ambiguidades que emergem das próprias relações materiais e funcionais (propriedade, alimento, parceiro sexual) entre as espécies, o descobrimento da natureza e do mundo físico como signo de estudo “científico”, e a emergência e disseminação do que a autora chamou de “animais da imaginação”, que teria levado os humanos a pensarem principalmente seus dilemas morais através da representação animal contida em fábulas e bestiários medievais e nos sermões dos padres da Igreja, mas não só. 

IHU – A partir de seus estudos sobre Claire Rasmussen, qual o papel dos animais na construção do sujeito autônomo?

Bruna Bataglia – Claire Rasmussen escreveu um livro e um capítulo que nos oferecem uma leitura de como podemos compreender o papel dos animais na construção do sujeito autônomo. O primeiro deles é “The Autonomous Animal: Self-governance and the Modern Subject” (2011) e o segundo chama-se “Domesticating Bodies: Race, Species, Sex, and Citizenship”, publicado na coletânea “Political Theory and the Animal/Human Relation” (2016).

The Autonomous Animal: Self-governance and the Modern Subject, de Claire Rasmussen (University of Minnesota Press, 2011)

Political Theory and the Animal/Human Relation, organizado por Judith Grant e Vincent G. Jungkunz (State University of New York Press, 2016), que traz o capítulo de Claire Rasmussen | Foto: divulgação

Rasmussen procura mostrar como a ideia de autogoverno foi articulada por diversos filósofos modernos, e como a exigência de autorregulação privilegiou certas formas de subjetividades e excluiu outras baseadas principalmente na capacidade de regular adequadamente o corpo. Em sua leitura, a distinção entre humano e animal teria sido um dos meios pelos quais a autonomia dos sujeitos humanos foi medida. O animal serviria, assim, como o “outro” da socialidade humana, e a razão da sua exclusão da comunidade política, segundo Rasmussen, não estaria na natureza da relação entre humano e animal, mas na relação do animal consigo mesmo, pois seriam “incapazes de controlar seus instintos naturais” ficando, com isso, inteiramente submetidos aos seus impulsos corporais. Em última instância, pela ausência da capacidade de autogoverno.

E o que me chamava a atenção no seu trabalho era essa visão relacional que permitia a autora pensar tanto nesse imaginário moderno do animal como nas formas pelas quais esse imaginário foi constantemente deslocado e sobreposto às relações entre seres humanos. Em uma análise mais particular e recente, Rasmussen procurou mostrar como a emergência do cruzamento de cães (dog breeding), no contexto dos processos de democratização do século XIX nos EUA e na Europa e de colonialismo para além dessas terras, teria sido uma atividade organizada no âmbito científico e social sobre o excepcionalismo da espécie humana. De acordo com a autora, o cruzamento de cães era uma procura altamente generificada e classista que refletia ainda mais a visão sobre a relação entre raça e sangue, e entre sexualidade e civilização.

Mediação da autonomia

O que o fenômeno do cruzamento de cães revelaria é a possibilidade de medição da autonomia, da civilização de pessoas, através da análise do modo pelo qual elas se relacionavam com os cães: se de forma brutal ou benevolente; e se estariam aptas a exercer sua autogovernança, a depender do modo como tratavam esses animais. Isso porque exercícios brutos de poder seriam a manifestação de emoções descontroladas que revelariam a falta de aptidão para a vida pública.

Além disso, o cruzamento de cães materializava a ideia da possibilidade do gerenciamento da reprodução e da qualidade biológica dos cães de modo a produzir raças com características “comportamentais previsíveis e reguláveis”. A imagem dos cães de raça pura emerge, portanto, em um contexto de racismo científico. 

IHU – Em que medida podemos afirmar que “animalizar-se” é “libertar-se”? E como pensar em liberdades de sujeitos políticos em sociedade?

Bruna Bataglia – Essa é uma boa pergunta, mas igualmente difícil de responder, ainda mais para quem pensa a animalização humana em termos negativos – digo isso porque é preciso lembrar que existem animalizações positivas, e que devem ser consideradas para os esforços em sistematizar e conceituar a animalização. A animalização somente pode ser pensada em termos de liberdade, se a própria categoria do animal for repensada para além de suas amarras modernas, me parece.

A despeito de todos os avanços, tanto em termos de construção de outro imaginário social quanto em termos de práticas, e avanços científicos, humano, animal, e a relação entre eles ainda é informada em larga medida pelo modelo moderno de separação e hieraquização psicofísica, moral e política.

Sobre essa questão, o que me vem à cabeça, pensando especificamente nos animais é que os avanços ocorrem em meio a disputas que tensionam ideias, propostas e práticas de forma a desestabilizar a ideia de uma certa linearidade, de causa e efeito em termos deterministas. Com isso quero dizer que igualar a ideia de animalizar-se com a de libertar-se perde de vista não só os riscos para nós, humanos, diante de tudo que procurei comentar aqui, mas também para os animais. 

 

Em 1906 o linguista inglês Edward Payson Evans publicou o livro “The Criminal Prosecution and Capital Punishment of Animals: The Lost History of Europe's Animal Trials”, no qual fazia referência à ocorrência de 191 julgamentos animais entre os séculos IX e XX, com auge nos séculos XIV (36), XV (57) e XVI (56), que teria, ocorrido majoritariamente nos territórios que hoje chamamos de França e Itália, além de diversos outros locais, inclusive, no Brasil.

Edward Payson Evans (1831-1917) | Foto: Wikipédia

Ainda que tenhamos que historicizar devidamente esses acontecimentos, para compreendê-los tanto em termos materiais quanto em termos simbólicos – perspectiva que julgo mais acertada, ao invés de considerá-los apenas como julgamentos literais ou simbólicos –, é preciso nos perguntar, discutir e tentar antever quais são, hoje ou em um futuro próximo, as possibilidade de, ao concedermos um estatuto moral aos animais, assim como um estatuto político, e os termos pelos quais decidimos fazer isso, os animais voltarem a sentar no banco dos réus. Isto pode parecer um delírio, mas se pensarmos no caso do cão Taro que, em 1994, teve um “perdão judicial” diante da sua condenação à pena de morte, que foi convertida em exílio, por ter ferido uma criança em Nova Jersey, EUA (cf. Los Angeles Times, “‘Death Row' Dog Is Pardoned and Then Banned from N.J.”), ainda que eu não tenha tido acesso aos autos do processo judicial para compreender como Taro foi considerado pelo juízo – qual estatuto jurídico foi-lhe concedido –, a notícia divulgada enquadra o ocorrido em termos de um julgamento animal. Acredito que tenhamos de enfrentar essa questão com certa urgência, e é o que também tenho procurado fazer no curso de minhas pesquisas. 

IHU – Vivemos crises da política, ou o que uns formulam como uma crise da política representativa. Como você analisa esse estado de crises políticas, do local ao global? Uma política animal pode ser um caminho para a reinvenção da política em nosso tempo?

Bruna Bataglia – Nesse ponto talvez seja importante considerarmos os efeitos não intencionais das nossas ações. Todo o movimento de pensar o animal e as relações entre humanos e animais em termos éticos, jurídicos e políticos, e repensar nossas interações e práticas sociais, contribuem para a construção de outras afetações, imaginários e práticas.

Nesse sentido, eu não poderia afirmar de antemão se uma política animal seria um bom caminho para reinventar a política em nossos tempos, mas diria que valeria a pena continuarmos avançando com propostas nesse sentido, pois o tempo da invenção, do novo e da mudança, me parece, tende a ser muito mais kairológico do que cronológico. É preciso, para isso, que sigamos com debates rigorosos, sofisticados e éticos para que, no momento em que a mudança acontecer – inclusive provocada por esse movimento –, nós tenhamos arcabouços teóricos, imaginários e institucionais para dar conta dos possíveis avanços e dos novos desafios. 

 

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