"Ao invés de nos preocuparmos sobre o aumento dos mecanismos de vigilância e controle indiscriminado sob um novo “estado de exceção”, tenho a tendência, portanto, de me preocupar com o fato de já sermos sujeitos biopolíticos dóceis e obedientes. O poder biopolítico não é (apenas) exercido em nossas vidas do “exterior”, por assim dizer, mas faz parte do que somos, de nossa forma histórica de subjetividade, no mínimo, pelos últimos dois séculos", escreve Daniele Lorenzini, professor adjunto de Filosofia na Universidade de Warwik, diretor adjunto do Centro de Pesquisa em Filosofia Europeia Pós-Kantiana e coeditor do Foucault Studies, em artigo publicado por Critical Inquiry [1], 02-04-2020. A tradução é de Thiago Fortes Ribas [2].
Em uma publicação recente em blog, Joshua Clover [3] nota acertadamente a rápida emergência de uma nova coleção de “gêneros da quarentena”. Não deveria surpreender que um desses gêneros esteja focado na noção de biopolítica de Michel Foucault, perguntando-se se ela seria ou não seria ainda apropriada para descrever a situação que estamos atualmente experienciando. Também não deveria surpreender que, em quase todas as contribuições que se utilizam do conceito de biopolítica para pensar a atual pandemia de coronavírus, o mesmo grupo de ideias bastante vagas é mencionado repetidas vezes, enquanto outras inspirações foucaultianas – sem dúvida mais interessantes – tendem a ser ignoradas. Na continuação do texto, discuto duas destas inspirações, e concluo com algumas observações metodológicas sobre a questão do que pode significar “responder” à “crise” corrente.
O primeiro ponto que gostaria de defender é que a noção de biopolítica de Foucault, tal como ele a desenvolveu em 1976 [4], não tinha o objetivo de nos mostrar o quanto é má esta forma "moderna" de poder. Claro, não tinha, tampouco, o objetivo de louvá-la. Me parece que, ao cunhar a noção de biopolítica, Foucault quer, primeira e principalmente, nos chamar a atenção para passagem histórica de um limite e, mais especificamente, do que ele chama de “seuil de modernité biologique” (limiar de modernidade biológica) da sociedade [5]. Nossa sociedade ultrapassou esse limiar quando os processos biológicos que caracterizam a vida dos seres humanos como espécie se tornaram uma questão crucial para a tomada de decisões políticas, um novo “problema” a ser tratado pelos governos - e isso, não apenas em circunstâncias “excepcionais” (como a de uma epidemia), mas também em circunstâncias “normais” [7]. Uma preocupação permanente que define o que Foucault também chama de "étatisation du biologique" (a “estatização do biológico") [7]. Para permanecer fiel à ideia de Foucault de que o poder não é bom ou ruim em si mesmo, mas que ele é sempre perigoso (se aceito cegamente, ou seja, sem nunca questioná-lo), pode-se dizer que essa “mudança de paradigma” no modo como somos governados, com seus resultados tanto positivos e quanto horríveis, corresponde, sem dúvida, a uma extensão perigosa do domínio de intervenção dos mecanismos de poder. Não somos mais governados apenas, nem mesmo primariamente, como sujeitos políticos da lei, mas também como seres vivos que, coletivamente, formam uma massa global - uma “população” - com uma taxa de natalidade, uma taxa de mortalidade, uma taxa de morbidade, uma expectativa média de vida, etc.
Em “O que são as Luzes?” Foucault argumenta querer recusar a “‘chantagem’ do Iluminismo” - ou seja, a ideia de que devemos ser “a favor” ou “contra” – para abordá-lo, diferentemente, como um evento histórico que ainda caracteriza, pelo menos até certa extensão, o que somos hoje [8]. Gostaria de sugerir, de maneira análoga, que seria sensato de nossa parte recusarmos a “chantagem” da biopolítica: não precisamos ser “a favor” ou “contra” ela (o que, de fato, isso significaria?), mas abordá-la como um evento histórico que ainda define, pelo menos em parte, o modo pelo qual somos governados, o modo pelo qual pensamos sobre política e sobre nós mesmos. Quando, nos jornais ou nas redes sociais, vejo pessoas reclamando sobre outros não respeitarem as regras de quarentena, sempre penso que aquilo que é espantoso para mim, ao contrário, é o fato de que tantos de nós estarmos respeitando, mesmo quando o risco de sanções é bastante baixo, na maioria das situações. Notei também a coleção de citações de Vigiar e Punir, em particular, retiradas do começo do capítulo “O Panoptismo” [9], o qual, certamente, ressoa com perfeição a nossa experiência atual da quarentena, pois descreve a disciplinarização de uma cidade e de seus habitantes durante uma epidemia de peste. No entanto, se insistirmos apenas em medidas coercitivas, em ficar confinados, controlados e “presos” em casa durante esses momentos extraordinários, arriscamos ignorar o fato de que o poder disciplinar e biopolítico funciona principalmente de maneira automática, invisível e perfeitamente ordinária – e que ele é mais perigoso precisamente quando não o percebemos.
Ao invés de nos preocuparmos sobre o aumento dos mecanismos de vigilância e controle indiscriminado sob um novo “estado de exceção”, tenho a tendência, portanto, de me preocupar com o fato de já sermos sujeitos biopolíticos dóceis e obedientes. O poder biopolítico não é (apenas) exercido em nossas vidas do “exterior”, por assim dizer, mas faz parte do que somos, de nossa forma histórica de subjetividade, no mínimo, pelos últimos dois séculos. É por isso que duvido que qualquer estratégia eficaz de resistência a seus aspectos mais perigosos deveria assumir a forma de uma recusa global, seguindo a lógica da “chantagem” da biopolítica. Os apontamentos de Foucault acerca de uma “ontologia crítica de nós mesmos” [10] podem vir a ser surpreendentemente úteis aqui, uma vez que é a própria estrutura do nosso ser que devemos estar prontos para questionar.
O segundo ponto que gostaria de discutir – um ponto crucial, mas que, infelizmente, acho mencionado raramente nas contribuições que mobilizam a noção de biopolítica para abordar a atual pandemia de coronavírus – é o elo inextrincável que Foucault estabelece entre biopoder e racismo. Em artigo recente [11], Judith Butler comenta acertadamente “a rapidez com que a desigualdade radical, o nacionalismo e a exploração capitalista encontram maneiras de se reproduzir e se fortalecer dentro das zonas de pandemia”. Isso é um lembrete muito necessário em um momento em que outros pensadores, como Jean-Luc Nancy [12], argumentam o contrário, que o coronavírus “nos coloca em uma base de igualdade, nos unindo na necessidade de tomar uma posição comum.” É claro que, a igualdade de que Nancy está falando é apenas a igualdade entre os ricos e os privilegiados – aqueles que têm sorte o suficiente de ter uma casa ou um apartamento para passar a quarentena, e aqueles que não precisam trabalhar ou podem trabalhar em casa, como Bruno Latour já havia observado [13]. E o que dizer daqueles que ainda são forçados a ir trabalhar todos os dias porque não podem trabalhar em casa nem arcar com as consequências de perder seus pagamentos? E daqueles que não têm teto sobre as suas cabeças?
Na última aula do curso “Em defesa da sociedade”, Foucault defende que o racismo é “o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer” [14]. Em outras palavras, com a emergência da biopolítica, o racismo torna-se o meio de fragmentar o continuum biológico – nós todos somos seres vivos com mais ou menos as mesmas necessidades biológicas – a fim de criar hierarquias entre diferentes grupos humanos e, portanto, diferenças (radicais) na maneira como eles são expostos ao risco de morte. A exposição diferencial dos seres humanos a riscos de saúde e riscos sociais é, segundo Foucault, um traço marcante da governamentalidade biopolítica. O racismo, em todas as suas formas, é a “condição de aceitabilidade” de uma tal exposição diferencial de vidas em uma sociedade na qual o poder é exercido principalmente para proteger a vida biológica da população e reforçar sua capacidade produtiva [15]. Portanto, devemos evitar cuidadosamente reduzir a biopolítica à famosa fórmula foucaultiana, “de fazer viver e de deixar morrer” [16].
A biopolítica não consiste realmente em uma evidente oposição da vida e da morte, mas é melhor entendida como um esforço para organizar diferencialmente a área cinzenta entre elas. O atual governo de migração é um excelente exemplo disso, como nos mostra de modo convincente Martina Tazzioli ao falar de “biopolítica através da mobilidade” [17]. De fato, como somos constantemente, às vezes dolorosamente, lembrados nos dias de hoje, a biopolítica é também, e crucialmente, uma questão de governar a mobilidade – e a imobilidade. Talvez essa experiência, que é nova para a maioria de nós, nos ajude a perceber que o modo comum como as “fronteiras” são mais ou menos porosas para pessoas de diferentes cores, nacionalidades e estratos sociais merece ser considerada como uma das principais formas na qual o poder é exercido em nosso mundo contemporâneo.
Em suma, a biopolítica é sempre uma política de vulnerabilidade diferencial. Longe de ser uma política que apaga as desigualdades sociais e raciais, lembrando-nos do nosso pertencimento comum à mesma espécie biológica, ela é uma política que depende estruturalmente do estabelecimento de hierarquias no valor das vidas, produzindo e multiplicando a vulnerabilidade como meio de governar pessoas. Talvez possamos pensar sobre isso da próxima vez que aplaudirmos coletivamente os “heróis médicos” e os “profissionais de saúde” que estão “combatendo o coronavírus”. Eles merecem aplausos, com certeza. Mas seriam eles realmente os únicos que estão nos “cuidando”? Será que pensamos nas pessoas que prestam serviços de entrega garantindo que eu receba o que compro enquanto permaneço em segurança no meu apartamento em quarentena? Pensamos nos caixas do supermercado e da farmácia, nos motoristas de transporte público, nos trabalhadores de fábricas, nos oficiais de polícia, e em todas as outras pessoas trabalhando (a maioria de baixa renda) em empregos que são considerados necessários para o funcionamento da sociedade? Eles não merecem também – e não exclusivamente nesta circunstância “excepcional” – serem considerados “profissionais da saúde” [“care workers”]? O vírus não nos coloca na base da igualdade. Pelo contrário, ele revela descaradamente que nossa estrutura social depende da produção incessante da vulnerabilidade diferencial e das desigualdades sociais.
O trabalho de Foucault sobre biopolítica é mais complexo, rico e instigante para nós hoje do que ele parece ser quando sob a pena daqueles que rapidamente o reduzem a uma série de anátemas contra o confinamento disciplinar e a vigilância em massa ou daqueles que o utilizam erroneamente para falar sobre o estado de exceção e a vida nua [18]. Não quero sugerir, no entanto, que a noção de biopolítica seja tomada como o princípio explicativo final capaz de nos dizer o que está acontecendo e qual é a “solução” para todos os nossos problemas – e isso, não apenas por causa do “caráter histórico diferenciado dos fenômenos biopolíticos” enfatizado corretamente por Roberto Esposito [19], mas também por uma razão metodológica mais profunda.
Nosso pensamento político é um prisioneiro da "gramática da crise" e de sua limitada temporalidade, na medida em que respostas críticas à situação corrente (ou, em todo caso, a praticamente todas as recentes “crises” econômicas, sociais e humanitárias) não parecem capazes de olhar além do futuro mais imediato [20]. Logo, se eu concordo com Latour que a vigente “crise da saúde” deveria “incitar a nos prepararmos para a mudança climática”, sou muito menos otimista do que ele: isso não acontecerá a menos que substituamos a narrativa da crise por um esforço crítico e criativo de longo prazo para encontrar respostas múltiplas e em evolução às causas estruturais de nossas “crises”.
Elaborar respostas, no lugar de procurar por soluções, significaria evitar estratégias de solução de problemas de curto prazo, que teriam o objetivo de mudar o mínimo possível o nosso modo atual de viver, produzir, viajar, comer, etc. Isso significaria explorar alternativas sociais e vias políticas na esperança de que esses experimentos durem mais do que o tempo entre a atual "crise" e a próxima, enquanto se reconhece que essas transformações são necessariamente lentas, uma vez que não podemos simplesmente nos livrar de nossa forma histórica de ser em um piscar de olhos. Em suma, significaria ter fé em nossa capacidade de construir um futuro, não apenas para nós mesmos, mas para inúmeras gerações ainda por vir. E, de fato, começar a fazê-lo.
Cidade de Nova York, 2 de abril de 2020.
Daniele Lorenzini é Professor Adjunto de Filosofia na Universidade de Warwik, onde ele é também Diretor Adjunto do Centro de Pesquisa em Filosofia Europeia Pós-Kantiana. Coeditor do Foucault Studies, publicou entre seus mais recentes livros “La force du vrai: De Foucault à Austin” (2017) e “Éthique et politique de soi: Foucault, Hadot, Cavell et les techniques de l’ordinaire” (2015).
[1] Link para o artigo original.
[2] Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[3] Link para o artigo de Clover.
[4] Ver Michel Foucault, The History of Sexuality, Volume 1: An Introduction (New York: Pantheon Books, 1978), 135-145; Michel Foucault, “Society Must Be Defended”: Lectures at the Collège de France, 1975-1976 (New York: Picador, 2003), 239-263. /
Nota do tradutor: estas obras podem ser encontradas em português com as seguintes referências: FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. (ver pp. 147-158); FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976), tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (ver pp. 285-315).
[5] Foucault, The History of Sexuality, Volume 1, 143 / Em português: FOUCAULT, M. História da sexualidade I, p. 156.
[6] Foucault, “Society Must Be Defended”, 244. / Em português: FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 290-291.
[7] Foucault, “Society Must Be Defended”, 240 / Em português: FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 286.
[8] Michel Foucault, “What is Enlightenment?”, in The Foucault Reader, ed. Paul Rabinow (New York: Pantheon Books, 1984), 42-43. / Em português: FOUCAULT, M. O Que São as Luzes?, p. 345. In: “Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento”. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
[9] Ver, por exemplo, o dossiê sobre “Coronavírus e filósofos” neste link. Para ler toda análise de Foucault, ver Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison (New York: Vintage Books, 1977), 195-200. / Em português: FOUCAULT, M. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2008, (Ver pp.162-172).
[10] Foucault, “What is Enlightenment?”, 47. / FOUCAULT, O que são as luzes?, p. 351.
[11] Link para o artigo de Butler.
[12] Link para o artigo de Nancy.
[13] Link para o artigo de Latour.
[14] Foucault, “Society Must Be Defended”, 254 / Em português: FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 304.
[15] Foucault, “Society Must Be Defended”, 255-256 / Em português: FOUCAULT, Em defesa da sociedade, p. 306.
[16] Foucault, The History of Sexuality, Volume 1, 138-141; Foucault, “Society Must Be Defended”, 241-243 / Em português: FOUCAULT, História da sexualidade, volume 1, pp. 150-154; FOUCAULT, Em defesa da sociedade, pp. 287-289.
[17] Martina Tazzioli, The Making of Migration: Biopolitics of Mobility at Europe’s Borders (London: Sage, 2019), 106. Embora isto praticamente não tenha sido notado, no primeiro volume de sua História da sexualidade, Foucault menciona migrações como uma das principais áreas na qual os mecanismos do poder biopolítico funciona. Ver FOUCAULT, História da sexualidade, volume 1, p. 152.
[18] Ver, por exemplo, o texto de Giorgio Agamben sobre coronavirus, assim como a resposta crítica de Gordon Hull. (Link 1 e link 2).
[19] Link para o artigo de Esposito.
[20] Ver o trabalho de Daniele Lorenzini e Martina Tazzioli intitulado “Critique without Ontology: Genealogy, Collective Subjects, and the Deadlocks of Evidence”, a ser publicado na revista Radical Philosophy.