13 Janeiro 2014
Nos idos de 1850, quem ingressava na Casa de Correção da Corte, primeira unidade prisional do Brasil, depois transformada no já extinto Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do Rio, lá permanecia por não mais de uma década. Nenhuma relação com os crimes cometidos. Tratava-se, na verdade, do tempo que o corpo suportava condições tão aviltantes. O borracheiro Elson de Jesus Pereira, porém, não chegou a tanto, embora tenha sido detido um século e meio depois. Levado à Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, sob acusação de ter receptado quatro pneus roubados, ele foi decapitado poucos dias depois, em outubro do ano passado, durante uma das inúmeras rebeliões ocorridas naquela unidade prisional.
A reportagem é de Karine Rodrigues e publicada pelo jornal O Globo, 11-01-2014.
Em Pedrinhas, a separação de presos conforme a natureza do delito cometido é letra morta. Situação que, segundo levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), concluído em fevereiro do ano passado, é comum a 1.598 unidades prisionais do país, apesar de ser uma norma da Constituição de 1988. Bem antes disso, em 1975, no livro “Vigiar e Punir: O nascimento da prisão” (publicado no Brasil pela Vozes), o filósofo Michel Foucault já considerava o critério de divisão por gravidade do delito como um dos sete princípios fundamentais para garantir condições favoráveis ao cumprimento da pena nos estabelecimentos prisionais.
O pensador francês, que se ocupou longamente do tema e foi um dos criadores do Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP), formado por intelectuais franceses preocupados com o estado do sistema carcerário, considerou ainda como importantes para as boas condições de uma unidade penal a oferta de educação e trabalho, a garantia de pessoal especializado e com capacidades técnicas e morais para trabalhar com os detentos, o acompanhamento do egresso até sua total recuperação, a transformação do comportamento dos presos e a modificação das penas de acordo com a conduta.
No mesmo livro, porém, Foucault já demonstrava ceticismo em relação às prisões, criadas na virada do século XVIII para o XIX a partir de um novo modelo de punição, não mais constituído por sessões públicas de tortura mas por mecanismos de dominação dos criminosos em espaços fechados, regulados pela disciplina e pelo olhar “panóptico”, que tudo vê. E fazia um diagnóstico que deitava por terra a propalada missão de regeneração dos estabelecimentos penais: “As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (...) a prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos”.
Autor de “Crítica da razão punitiva: nascimento da prisão no Brasil” (Editora Forense Universitária), que investiga o sistema carcerário no país desde os tempos da colônia, o filósofo Manoel Barros da Motta concorda com as teses de Foucault sobre o fracasso do modelo. Motta é o organizador dos 10 volumes da edição nacional da coleção “Ditos e escritos” (Forense), com textos do filósofo francês, e chegou a discutir sua pesquisa sobre as prisões brasileiras com Foucault em 1977.
— Não há condições mínimas de sobrevivência. Há superlotação, gente sendo violada sexualmente, desrespeito ao direito à educação e ao trabalho. Muitas pessoas hoje acham que os presos têm direitos demais. Existe essa ideia, que vem do século XIX, de mais castigo, mais repressão. E vemos que isso não mudou, talvez esteja até mais forte. Há uma oposição enorme ao governo ter despesas para se respeitar o que a prisão significa, ou seja, um espaço que retira o direito de ir e vir da pessoa e não um espaço para bater, castigar ou passar fome. Mas nunca houve mesmo muita disposição para se investir nisso — diz Motta.
Em seu livro, Motta mostra que a Casa de Correção da Corte, criada como “prisão-modelo”, foi reprovada por uma vistoria realizada duas décadas depois da inauguração: os inspetores constataram que “muito se despendeu; e pode-se dizer não se ter ensaiado sistema algum”. Hoje o sistema prisional brasileiro, de acordo com o Ministério da Justiça, tem 548 mil presos ocupando 310 mil vagas, segundo dados de dezembro de 2012.
Motta ressalta que não importam quão protegidas sejam, as prisões não são universos isolados, desconectados da sociedade. Por isso, as atrocidades lá cometidas acabam por ter consequências para além dos muros. Não à toa, a barbaridade da degola de detentos, revelada em vídeo feito pelos próprios presos de Pedrinhas, no Maranhão, ultrapassa o espaço da prisão e se reproduz no dia a dias das cidades, como ocorreu no ataque a um ônibus no Maranhão, quando criminosos atearam fogo no veículo, matando Ana Clara Santos Sousa, de 6 anos.
— A prisão não é um espaço isolado. É um sistema onde, a toda hora, presos conseguem cavar buracos, advogados e parentes circulam. Ele é furado. Quando a delinquência toma um caráter muito maciço, e o funcionamento da polícia e da Justiça está associado à corrupção, o controle disso se torna algo altamente problemático. A prisão, na verdade, faz parte desse contexto social que está em crise. Claro que, se não há recursos para melhoria das condições do sistema judiciário e prisional, a situação piora, como estamos vendo agora — diz Motta.
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Foucault e a crise do sistema prisional brasileiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU