07 Abril 2020
"Não temos certezas absolutas, nem temos um programa de ação ou pensamento em que nos refugiarmos. Não temos uma visão de mundo, porque não há mundo visível, nem uma perspectiva futura, porque ninguém sabe como a pandemia evoluirá. Só temos certeza de uma coisa: as enormes dificuldades ecológicas", escreve Jean-Luc Nancy, filósofo francês, professor emérito de filosofia da Universidade Marc Bloch, de Estrasburgo, na Alemanha, e colaborador das Universidade de Berlin e Berkeley, na Alemanha e nos Estados Unidos, respectivamente. em artigo publicado por La Stampa, 03-04-2020. A tradução é de Tradução de Luisa Rabolini.
Volta ao ar amanhã "Prendiamola con filosofia": de 11 a 23 em streaming com protagonistas como Vandana Shiva, Noam Chomsky, Jean-Luc Nancy e Alain de Botton. Concebido pela agência Piano B e pelo projeto filosófico Tlon, a programação da jornada será transmitida ao vivo no site do evento. Jean-Luc Nancy, reconhecido representante da filosofia contemporânea e professor da Universidade de Estrasburgo, discursará a partir das 18h45. Aqui está um resumo de sua participação.
Hoje, qualquer discurso, seja técnico-científico, político, filosófico ou moral mostra sua fraqueza. Não temos certezas absolutas, nem temos um programa de ação ou pensamento em que nos refugiarmos. Não temos uma visão de mundo, porque não há mundo visível, nem uma perspectiva futura, porque ninguém sabe como a pandemia evoluirá. Só temos certeza de uma coisa: as enormes dificuldades ecológicas, ou melhor, "econológicas": econômicas e ambientais juntas, que de qualquer forma nos esperam no final deste período. Mas mesmo a rapidez com que a pandemia purifica o ar das regiões que paralisa consegue nos sugerir como encontrar uma nova orientação técnica e industrial. Ouvimos repetir à direita e à esquerda que todo um sistema está revelando suas falhas - que, por si só, não têm nada de novo. Alguém escreveu nos muros, como Gérard Bensussan observou em Estrasburgo, que "o vírus é o capitalismo"; e assim falamos de "capitalovírus", exatamente como havíamos falado de "comunovírus" (para dizer basicamente a mesma coisa). Como se tivéssemos encontrado uma nova energia para denunciar o velho inimigo que parecia ter triunfado ... como se, apenas por pronunciar a palavra "capitalismo", já estivéssemos na metade do caminho, exorcizando o demônio.
Mas, desse modo, corremos o risco de esquecer que esse demônio é realmente muito antigo e que foi o motor da história do mundo moderno. Tem pelo menos sete séculos de vida, se não mais. A produção ilimitada de valor de mercado há muito tempo tem sido o motor da sociedade e, em certo sentido, até a sua razão de ser. Os resultados foram grandiosos, um novo mundo surgiu. Pode ser que este mundo e sua raison d'être estejam prestes a desaparecer, mas sem nos oferecer nada para substituí-lo. Na verdade, quase se poderia dizer: muito pelo contrário. Vamos ver a partir dos progressos que fizemos: em 1865, um tal Sr. Gaudin, que se apresentava como um "químico filósofo", teve oportunidade de escrever: "De acordo com a opinião comum, nossa época viu surgir uma multidão de doenças desconhecidas pelos nossos antepassados; mas é muito provável que essas doenças, uma vez localizadas, se tenham disseminado graças à frequência e rapidez das comunicações que conectam hoje os contados mais distantes”. Há pouco menos de dois séculos, portanto, nosso progresso confirma e reforça essa hipótese, mas certamente não a eficácia do remédio preconizado pelo mesmo filósofo químico (que consistia na administração de ozônio).
Esse progresso nos proporcionou o avião, o míssil, o átomo, a geladeira, a baquelite, a penicilina e a cibernética. Ao mesmo tempo, colocou o mundo inteiro à mercê do mercado e à progressiva expansão do desnível entre uma riqueza que cresce por si mesma e a pobreza que o crescimento produz, como um resíduo, ou melhor, como um descarte. Agora, no curso desse mesmo progresso, a sociedade se despojou de todo aquele aparato hierárquico que permitia legitimar o poder de uns sobre os outros ou justificar penas e recompensas com base em uma ideia de justiça, natural ou sobrenatural que fosse. Os homens se tornaram iguais por direitos; e assim as desigualdades se tornaram intoleráveis à medida que o progresso as agravava.
O vírus, que se dissemina de acordo com as trajetórias e ritmos da circulação mundial das mercadorias (da qual os seres humanos fazem parte), é transmitido por um contágio muito mais eficaz do que o dos direitos. De certa forma, anula as diferenças - mata da mesma maneira Manu Dibango e Marguerite Derrida, José Luis Capón e a adolescente Julie Alliot. Assim, nos lembra o direito soberano que a morte exerce sobre a vida, porque faz parte da vida. É esse direito que legitima, em última instância, o direito de todos à mesma existência.
Talvez seja o fato de sermos mortais que nos torna iguais, já que não há mais diferenças sobrenaturais ou naturais. Há uma boa chance de a pandemia lançar uma nova luz sobre as desigualdades do mundo atual. Porque, se o vírus em si não opera nenhuma seleção social, fica claro que a proteção contra o contágio depende em grande parte das condições de vida, que podem ser mais ou menos favoráveis à prevenção. Até agora, o vírus afetou principalmente a população urbana, em particular as faixas sociais que viajam muito - a negócios, estudo ou lazer. Para elas é relativamente fácil se isolar nos apartamentos em que vivem, ou até mesmo em uma segunda casa.
Mas nas condições de vida de Gaza, nas favelas brasileiras ou de em grande parte da população indiana - para nos limitarmos a esses exemplos - podemos temer o pior. Nas periferias das grandes cidades europeias, o fenômeno já é sensível, como na fronteira greco-turca. O vírus "chega de avião, com os ricos, e explode entre os pobres", disse um colaborador do Ministério da Saúde brasileiro. Todo pode ser resumido nesta pergunta: se não há água, como você lava as mãos várias vezes ao dia? E isso não é tudo. A atividade econômica é afetada em todos os níveis, mas há uma disparidade considerável entre a multinacional, o pequeno empresário e o engraxate de rua. A ideia de uma renda "universal" retorna com insistência, como uma resposta ao igualitarismo mórbido do vírus.
De qualquer forma, quaisquer que sejam as medidas técnicas adotadas em um futuro próximo, elas deverão colocar em questão o fosso obsceno entre as rendas, que está sob nossos olhos há muito tempo. E isso não vale apenas para o período da pandemia: deve ser válido por todo o tempo de recuperação, renascimento, reconstrução e renovação que, se e quando saímos disso, deverá acontecer. Nós já sabemos todas essas coisas. Tudo o que faço é repetir o que é dito nos jornais, rádios, televisões e Internet todos os dias e todas as noites. Mas, na maioria das vezes, nos contentamos em sentenciar o que será preciso fazer ou prever o que acontecerá. Acreditamos que podemos antecipar. A antecipação é necessária, mas é sempre, necessariamente, limitada e frágil. O que importa, ao contrário, é o presente: é agora, no coração do medo e da tristeza, que devemos nos perguntar se sabemos o que queremos.
Se entendermos que é o próprio princípio da civilização, digamos, tecno-capitalista, que deve ser questionado. Entendemos (deveríamos ter entendido) que a igualdade não é uma amável utopia, mas uma exigência existencial - que o resultado da equivalência de mercado é uma crueldade ilusória, aquela que Marx chamava, como palavras de Lucrécio, a mors immortalis do capital. E que, consequentemente, à palavra "comunismo" - mesmo na ausência de sua verdadeira realização, na história que nos trouxe até aqui - é confiado o profundo sentido da resistência à nossa autodestruição.
Marx dizia que este mundo é desprovido de espírito: uma palavra que nos parece suspeita, até boba. Mas indica justamente a respiração - o que faz viver. E justamente a respiração é atingida pelo coronavírus. Acumulamos ideias e noções, saberes e representações. Mas, no final de tudo, é o espírito que fica sem fôlego.
Simplesmente precisamos aprender novamente a respirar e viver. E isso não é pouco: é difícil e leva tempo - as crianças sabem disso por experiência. Os bebês não podem falar. Não sabem modular sua respiração sobre a palavra. Mas só desejam aprender e aprendem; e falam. Também nós devemos ser crianças. Vamos recriar uma linguagem. Vamos encontrar essa coragem.
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Nancy: nos salvaremos voltando a ser crianças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU