12 Julho 2023
"É também uma questão de justiça social e ambiental. Atualmente, para produzir alimentos para uma minoria estamos comprometendo o ecossistema. 70% da superfície agrícola mundial é ocupada por culturas destinadas à alimentação animal. Além de afetar as florestas, as lavouras de soja (destinadas à ração animal) estão substituindo lavouras que poderiam ser usadas para a alimentação humana", escreve Linda Maggiori, em artigo publicado por Settimana News, 02-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Linda Maggiori nasceu em Recanati em 1981, atualmente mora em Faenza (RA) com o marido e quatro filhos, sem carro e com um estilo de vida o mais sustentável possível, em um apartamento reformado alimentado apenas por energia renovável. É jornalista freelancer, ativista pelo meio ambiente, paz e justiça social. Colabora com o jornal Il Manifesto e revistas como Terra Nuova, Altreconomia, com o portal de comunicação ambiental Envi.info e é blogueira de Il Fatto Quotidiano. Ela escreveu livros para crianças e adultos sobre temáticas de ecologia e justiça social: Anita e Nico dal Delta del Pó alle Foreste Casentinesi (Tempo al libro, 2014), Salviamo il mare (Giaconi, 2015), Anita e Nico dalle Foreste Casentinesi alla Vena del gesso (Tempo al Libro, 2016), Impatto zero (Dissensi, 2017), Occidoria e i Territori Ribelli (Dissensi, 2018), Vivo senza Auto (Macro, 2019), Questione di Futuro (San Paolo, 2020), Semi di Pace (Centro Gandhi, 2022), Guida per viaggiatori senza auto (Epoke, 2023).
Tolstoi dizia “se os matadouros tivessem paredes de vidro, seríamos todos vegetarianos”. Pois bem, a enchente iluminou brutalmente o cenário do massacre, e interrompeu a macabra rotina da Food Valley, assim chamada - a região da Emilia-Romagna - justamente por sua "vocação" para a criação intensiva. É de fato uma das regiões com maior número de animais criados e estruturas intensivas, com mais de 20 milhões de aves, 1 milhão de suínos, 579.000 bovinos (Banco de Dados Nacional do Cadastro Zootécnico).
Nos dias que se seguiram à enchente, as carcaças de centenas de milhares de animais que morreram afogados flutuavam na lama, empilhadas. Muitos deles estavam confinados em cercados estreitos e gaiolas, feitas especialmente para evitar que escapassem. Essere Animali documentou a situação alguns dias depois da enchente: “Em uma granja de San Lorenzo em Noceto, 3 galpões foram arrastados e mais de 60.000 animais morreram. Em Lugo, uma criação de suínos com milhares de animais - incluindo reprodutoras em gaiolas - foi transferida para uma área mais segura, mas vários animais morreram e um filhote foi encontrado em fim de vida. Em Bertinoro (FC), em uma fazenda com milhares de suínos, foram documentadas pilhas de centenas de animais mortos.
Surgem histórias arrepiantes de proprietários de sistemas de criação intensiva que até atrapalharam os resgates: “Depois da enchente salvamos porcos, cavalos, burros, pôneis, aves, cabras, ovelhas vindas de fazendas modelo para criação ou pequenas empresas - explicam os rapazes da associação Horse Angels – mais complicado foi salvar os animais nas fazendas de criação intensiva. Em Villanova di Bagnacavallo fomos chamados pelos moradores, mas quando chegámos ao local inundado, com os porcos lá dentro, o proprietário impediu-nos de entrar, houve momentos de tensão, e a polícia também interveio” contam Carmelo, Alex e Nicolas.
A associação escreveu ao presidente Bonaccini: “Pedimos que não sejam indenizados aqueles criadores que nada fizeram ou até mesmo impediram o salvamento de seus animais, nos casos em que seja possível demonstrar que poderiam ter aberto os portões e soltado os animais, ou transferidos para outro lugar, algo que não fizeram por propósito de lucro".
Escreve Gabriele Cappelli, da USB (União Sindical de Base) de Roma:
“A inundação destacou uma grave falta de planos de evacuação para os animais criados nas fazendas agrícolas. Isso não é apenas uma forma de negligência, mas uma violação do dever ético de cuidar dos animais, protegidos desde 2022 pelo artigo 9º da Constituição italiana, que até agora exploramos para os nossos fins. As consequências dessa falta de preparo foram catastróficas: milhares de porcos mortos em gaiolas, afogados em meio metro de água, 60.000 galinhas amontoadas em aviários inundados pelas águas. Além da falta de planos de evacuação, as criações intensivas representam um sério risco de propagação de zoonoses, ou seja, doenças transmissíveis dos animais ao ser humano. A promiscuidade e as condições insalubres das criações intensivas criam um terreno fértil para o desenvolvimento e propagação de doenças como a gripe aviária e a salmonela”.
Se já em condições normais as criações intensivas são um perigo para a saúde humana, durante fenômenos extremos (cada vez mais intensos com as alterações climáticas), são verdadeiras bombas biológicas. A maioria das zonas afetadas pela inundação já eram ZVN, ou seja, Zonas Vulneráveis a Nitratos, devido a águas residuais das fazendas, com águas subterrâneas fortemente contaminadas. Depois de um desastre desse tipo, com esgotos, carcaças e substâncias químicas espalhadas na lama, a poluição das águas só pode piorar. As carcaças recuperadas foram, muito provavelmente, queimadas em incineradores, assim como todas as centenas de milhares de resíduos provocados pela enchente, com mais emissões que alteram o clima e poluição do ar.
Em Faenza, 600 porcos morreram em uma criação intensiva, os animais que conseguiram se salvar fugiram para o campo. Tocante é o testemunho de Elena:
“Alguns dias depois da enchente, enquanto limpávamos a casa da água e da lama, num cenário pós-guerra, ouvimos um barulho atrás de uma moita e vimos sair um porco que fugira de uma fazenda e que, por causa da fome, começava a mastigar uma porta de madeira arrastada para lá pela enchente. Nós o chamamos de Alfred, lhe demos comida, nos fazia companhia e acalmava nossas almas abatidas. Uma fazenda modelo deveria acolhê-lo, mas ele era microchipado e seu proprietário veio buscá-lo para levá-lo à fazenda, destinado ao abate. Eles praticamente o arrancaram de nós, ele gritava e chorava e nós também. Porque no meio de toda essa desgraça, salvar a vida de um animal era algo que trazia um pouco de sentido e esperança. Queríamos salvá-lo de uma indústria que materialmente contribuiu para destruir o planeta e alterar o clima, com as consequências em que estamos afundando até os joelhos aqui todos os dias."
A enchente expõe a loucura da zootecnia industrial que, se por um lado alimenta a crise climática e ecológica, pelo outro é submersa por ela. Também o relatório do IPCC (Painel das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) de agosto de 2019, "o clima visto do prato", destaca que 23% das emissões humanas de gases de efeito estufa derivam do desmatamento e das transformações do solo ligadas à agricultura industrial e, portanto, à nossa dieta.
Além do perigo para a saúde e do impacto ambiental, o aspecto ético também não deve ser subestimado. As fazendas intensivas são caracterizadas por condições de vida extremamente restritas e superlotadas para os animais envolvidos. Isso submete os animais a um estresse enorme, causando sofrimento e doenças, tanto que a prática de administrar antibióticos até mesmo como medida preventiva é difundida. Antibióticos que permanecem nas águas residuais e aumentam o risco de propagação de resistência a antibióticos, um dos maiores perigos para a saúde global de acordo com a OMS.
As práticas de seleção genética usadas para maximizar a produção também agravam os problemas de saúde dos animais, como malformações e doenças genéticas.
Não se trata de se tornar todos vegetarianos ou veganos, mas de reduzir a quantidade de carne consumida, escolhendo-a de fazendas com selo de bem-estar animal ou de pequenas fazendas éticas que respeitam os animais. A disponibilidade de proteína animal, no hemisfério norte, é efetivamente superior às necessidades nutricionais de seus habitantes e, aliás, o excesso de carne consumida está correlacionado com o aparecimento de doenças cardiovasculares, diabetes e, provavelmente, tumores.
É também uma questão de justiça social e ambiental. Atualmente, para produzir alimentos para uma minoria estamos comprometendo o ecossistema. 70% da superfície agrícola mundial é ocupada por culturas destinadas à alimentação animal. Além de afetar as florestas, as lavouras de soja (destinadas à ração animal) estão substituindo lavouras que poderiam ser usadas para a alimentação humana.
Finalmente, nessas grandes fazendas de criação, trabalham principalmente migrantes e pessoas em dificuldade social, com baixa remuneração, muitas vezes sem tutela trabalhista: muitas fazendas não cumprem as leis que protegem a saúde e a segurança dos animais e dos trabalhadores. Essa falta de responsabilidade e de respeito pelas leis representa um problema sistêmico que exige maior vigilância, uma rigorosa aplicação das normas existentes e um verdadeiro plano de incentivos estatais para aquelas (poucas) empresas e dependentes que levam adiante políticas éticas respeitando os direitos dos trabalhadores, dos animais e do meio ambiente” conclui Gabriele Cappelli da USB.
O Greenpeace e outras associações ambientalistas há anos pedem o fim dos subsídios públicos concedidos à criação intensiva e a proibição da criação em gaiolas "End the Cage Age".
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Criação animal intensiva: entre loucura e imoralidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU