"Confesso a vocês que esperava uma iniciativa mais corajosa do papa Prevost em denunciar de forma contundente o que vem ocorrendo. Em verdade, ele optou por uma diplomacia mais “soft”, evitando um envolvimento pessoal mais preciso e profético, de forma a evitar a quebra de negociação com Israel. A meu ver, o caminho escolhido por Francisco nesse campo foi bem mais enfático e corajoso".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Estamos vivendo hoje no mundo um dos mais violentos dramas cometidos contra seres humanos. Não há registro mais contundente presente em nosso triste século XXI. Não sem razão o historiador inglês, Eric Hobasbawm, dizia em seu última biografia – Tempos Interessantes (2002) -, que o novo século dava continuidade ao triste século XX. Na sua visão, realista e verdadeira, o século XXI começou com “crepúsculo e obscuridade”. O que estamos vendo ao vivo pela TV e pelas redes sociais, é um dos mais impressionantes extermínios de um povo inocente que vive na Faixa de Gaza. Há uma intenção necrófila de exterminar o povo palestino e apagar sua memória na história, de forma a fazer brilhar na região apenas um “povo escolhido”, que agora firma-se como sujeito de um real genocídio.
É impressionante verificar o silêncio mundial a respeito, em grande parte das nações, incluindo o Brasil. Vimos há pouco, em discurso proferido na ONU, a coragem profética de Luiz Inácio da Silva, o Lula, em condenar o que vem ocorrendo na Faixa de Gaza. Um gesto singular que repercutiu por todo lado. Trata-se, porém, de uma exceção num mar de indiferença e de carência de compaixão e fraternidade. Fico revoltado com o silêncio da imprensa brasileira, e em particular das TVs abertas. A tendência dominante é ressaltar unilateralmente a realidade do terrorismo do Hamas, justificando a ação de Israel como ação defensiva. Líderes daquele povo defendem de forma acintosa a morte das crianças em Gaza com a justificativa infame de que o povo de Israel age preventivamente contra o terrorismo futuro.
Há, porém, esperança... Sobretudo no campo da juventude. Estamos acompanhando reações por todo canto conta a violência em curso. Um dos sinais mais bonitos e alvissareiros tem sido a ação da Flotilha que leva ajuda humanitária para Gaza pelo mar, enfrentando todos os riscos de ataques e violência. Já faz quase um mês que as embarcações partiram em direção a Gaza. São cerca de 47 barcos que se aproximam da “zona potencial de interceptação” pelos militares israelenses. As embarcações estão hoje, 01/10/2025, a pouco mais de 100 milhas de Gaza. Governantes como Meloni, da Itália, acusam os militantes de “insistência irresponsável”, mas nada e ninguém consegue deter o grupo que avança em direção à meta visada. Trata-se de um movimento humanitário e pacífico, que serve igualmente para chamar a atenção do mundo para esse “desgaste da compaixão”.
Não sabemos ainda o que pode ocorrer com os navegantes, sobretudo com as contínuas ameaças da Marinha de Israel. As embarcações vêm sofrendo ataques por meio de drones, desde que a viagem se iniciou. Mas nada provoca a atenuação da coragem dos participantes da nobre missão. Estão ali presentes, nesta resistência, pessoas de mais de quarenta países, sendo alguns militantes bem conhecidos como Greta Thumberg. Há também a bonita participação de uma delegação brasileira com 13 membros. A grande maioria é de jovens, que guardam no coração o tesouro da coragem e da esperança num mundo diferente e mais solidário.
Confesso a vocês que esperava uma iniciativa mais corajosa do papa Prevost em denunciar de forma contundente o que vem ocorrendo. Em verdade, ele optou por uma diplomacia mais “soft”, evitando um envolvimento pessoal mais preciso e profético, de forma a evitar a quebra de negociação com Israel. A meu ver, o caminho escolhido por Francisco nesse campo foi bem mais enfático e corajoso. Em tempos passados tivemos a presença de vozes vivas contra o que vem ocorrendo na Palestina, muito antes de outubro de 2023. Lembro-me muito bem da contundente posição de Edward Said, em suas obras em defesa da Palestina. No livro, Cultura e Política (2003), ele dizia:
“A palavra ´Israel` tem uma ressonância um tanto especial em inglês, principalmente nos Estados Unidos. Quando se ouve os políticos repetir o conhecido mantra sobre apoiar e fortalecer Israel, percebe-se que o que está em discussão é uma ideia ou uma espécie de talismã, que de longe transcende o status de qualquer Estado ou país do mundo (...). É quase um milagre que, apesar de anos de ocupação militar, Israel nunca tenha sido identificado com o colonialismo ou com as práticas colonialistas (...). Para aqueles que dizem que Israel deve ser reconhecido, a única resposta lúcida é perguntar ´Que Israel?, já que o país nunca teve fronteiras internacionalmente declaradas e continua revisando indefinidamente o tamanho de seu território”.
Tivemos também a corajosa voz do Nobel de Literatura, José Saramago, que sempre defendeu perentoriamente os Palestinos contra as investidas de Israel. Continua mais que atual o que disse Saramago sobre Israel em março de 2002:
“Nestes últimos 50 anos cresceram a tal ponto as forças e o tamanho de Davi que entre ele e o sobranceiro Golias já não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem insultar a ofuscante claridade dos fatos, que se tornou num novo Golias. Davi, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro Davi de antanho sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis contra alvos inermes; aquele delicado Davi de outrora tripula os mais poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo quanto encontra na sua frente (...). Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente tácticas, a estratégia política israelita. Intoxicados mentalmente pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada ´certeza` de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista; educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que padeceram no Holocausto” [1].
As 47 embarcações que avançam em direção a Gaza não levam consigo apenas a revolta e esperança de jovens das nações envolvidas, mas também as nossas esperanças de um mundo bem diverso, mais hospitaleiro e solidário, livre de qualquer pretensão messiânica totalitária. Há ainda o que esperar nas ações e na teimosia da juventude de nosso tempo. Viva a Flotilha da esperança! Viva Gaza e sua resistência imorredoura.
[1] Das Pedras de Davi aos Tanques de Golias. José Saramago. Clique aqui.