08 Abril 2025
"Como nos diz Francisco, a velhice é “o tempo propício para o testemunho”, e traz ainda consigo outro dado fundamental: o exercício da paciência e do saber esperar. Há uma sabedoria presente nesse outono da vida, que é o aprendizado da despedida, mas de uma despedida que pode ser frutuosa e feliz", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
Uma das palavras chaves do pontificado de Francisco é a “cultura do cuidado”. Tal desafio vem sendo lançado por ele em suas falas e encíclicas, como a Laudato si', que aborda o cuidado da casa comum. Nesta encíclica lançada em maio de 2015, Francisco indica que tal cultura deve permear toda a sociedade. Ela diz respeito ao cuidado com a Terra, ao cuidado com os pobres, mas podemos ainda acrescentar o cuidado com as crianças e os idosos. A cultura do cuidado vem tecida com gestos concretos, ou “simples gestos cotidianos”, com os quais “quebramos a lógica da violência, da exploração e do egoísmo” (LS 230).
Na Laudato si', Francisco adverte-nos contra o risco de catástrofes que estão por vir neste tempo do Antropoceno, contra as quais é possível gestos de resistência. Ele lança um desafio bem preciso, que deve tocar a consciência de todos: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos; às crianças que estão crescendo?” A preocupação com as gerações futuras é algo que diz respeito também a nós, pois é nossa própria dignidade que está em questão (LS 160). Poderíamos também acrescentar o desafio do cuidado com os mais idosos. E por que? Em razão do aumento da longevidade, teremos um mundo cada vez mais repleto de idosos, exigindo uma política de cuidado bem específica e fundamental. Se tomarmos o caso do Brasil, é bom que saibamos que por volta de 2050, teremos cerca de 64 milhões de idosos, o que equivale a 30% do total do país.
A preocupação de Francisco com os mais velhos esteve sempre presente em seu pontificado, e veio se acentuando depois da pandemia de Covid, em 2020. Pudemos todos testemunhar, com admiração e espanto, o gesto sublime de Francisco, sozinho no patamar da Basílica de São Pedro, em 27 de março de 2022, quando deu a bênção “Urbi et Orbi” (à cidade e ao mundo), e ali pediu pela saúde dos enfermos. Talvez tenha sido uma das imagens mais fortes e representativas que ocorreram em toda a pandemia.
Essa atenção de Francisco ao tema da velhice, ganhou concretização em diversos ensinamentos dedicados por ele ao tema, em Audiências Gerais que aconteceram entre 23 de fevereiro a 24 de agosto de 2022. Foram ao todo 18 “catequeses” ao longo de sete meses, versando sobre o sentido e o valor da velhice. Como apontou Francisco na ocasião, a velhice é “uma das questões mais urgentes” da humanidade, daí a importância de um cuidado especial com o tema.
Tal desafio torna-se ainda mais candente em razão de vivermos numa sociedade do descarte e da produtividade. Como mostrou Francisco logo no início de suas reflexões sobre o tema, nas Audiências Gerais, os velhos têm sido tratados em nosso tempo, com exceções louváveis, como carentes de significado. Daí o desafio assumido pelo papa em resgatar a dignidade dos idosos, indicando com ênfase que a velhice guarda consigo um ensinamento fundamental, um testemunho que não pode ser desprezado. Trata-se da velhice como um dom e oferta de sentido para a vida.
Francisco sublinha que há muito o que aprender com os mais velhos, e convoca os jovens para captarem o valor de aprendizado e memória que marca o testemunho daqueles que angariaram longa sabedoria ao longo da vida, e que merecem respeito e canais específicos e garantidos para a sua escuta. Segundo Francisco, as atitudes de desprezo para com os mais velhos, que ocorrem aqui e ali, desdobram-se em excessos perigosos e inimagináveis. Daí a importância de uma educação alternativa, que favoreça o respeito à dignidade e memória dos mais velhos.
Francisco realça o desafio “de olhar os idosos com amor”, compreendendo que eles permanecem acesos em sua sede em favor da justiça e de um mundo melhor. Ao trabalhar o tema em 25 de maio de 2022, com base em reflexões tomadas do livro do Eclesiastes, Francisco sublinha que “a velhice pode aprender com a sabedoria irônica do Eclesiastes a arte de trazer à luz o engano escondido no delírio de uma verdade da mente desprovida de afeto pela justiça”. Nada mais nocivo que a tentação da acedia, lembra-nos Francisco. Trata-se de uma atitude que exclui a motivação em favor da luta pela justiça, quando o cansaço deixa-se prevalecer. A acedia é “a rendição ao conhecimento do mundo”.
Francisco propõe um “magistério da fragilidade”, voltado para lidar com lucidez e alegria ao acompanhamento da vida dos mais velhos, recusando radicalmente qualquer perspectiva de descarte. Há que ter respeito com os idosos, pois eles são os guardiões da memória da família e da humanidade. Saber ouvir com atenção suas histórias e conselhos é resguardar-se de danos precisos no caminho da humanidade. Como nos diz Francisco, a velhice é “o tempo propício para o testemunho”, e traz ainda consigo outro dado fundamental: o exercício da paciência e do saber esperar. Há uma sabedoria presente nesse outono da vida, que é o aprendizado da despedida, mas de uma despedida que pode ser frutuosa e feliz. Francisco sublinha que a velhice pode ser vivida com docilidade e ternura, mediante um ensinamento singular: há que “despedir-se bem”.
Francisco, que esteve sempre atento ao tema, passou por momentos difíceis de saúde em 2025, tendo avistado de perto a morte, sobretudo no final de fevereiro, quando o seu estado crítico chegou ao ápice. De forma surpreendente, conseguiu restabelecer-se, depois de passar 38 dias internado. Sua primeira aparição pública aconteceu no Angelus de 06 de abril de 2025, no V Domingo da Quaresma. Sua aparição foi rápida e suas palavras breves.
Ele assistiu a missa pela televisão, numa cerimônia presidida por Rino Fisichella, que é pró-prefeito do Dicastério para a evangelização. O texto lido na homilia foi escrito por Francisco. De forma singela e terna, Francisco relata que em todo o tempo de hospitalização e convalescença, permaneceu sentindo o toque do “dedo de Deus”, e de sua “carícia solícita”. Desejou, com grande esperança, que esse “toque de amor”, presente em sua vida, possa chegar aos que estão sofrendo, bem como aos guardiões do cuidado, que são os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde. Nada mais essencial do que “o milagre de uma pessoa amável”, ou seja, aquela que encontra tempo e disposição para tratar bem os outros. E essas pessoas existem, e estão no meio de nós. Mantendo viva a sua voz profética, Francisco conclui sua homilia pedindo a todos que continuem a rezar pela paz no mundo.