12 Agosto 2020
Suécia, março de 2020. O coronavírus já causou as primeiras mortes no país, um dos mais desenvolvidos do planeta. As autoridades optam por um confinamento “relaxado”, baseado na responsabilidade individual dos cidadãos. Assim, enquanto metade do mundo está preso durante a pandemia, os suecos se divertem nos terraços da capital. Em especial, pessoas jovens e saudáveis. O produto de décadas de um sólido estado de bem-estar.
A reportagem é de Eva Millet, publicada por La Vanguardia, 09-08-2020. A tradução é do Cepat.
Mas enquanto os jovens suecos bebiam vinho ao sol da primavera, um verdadeiro drama se desenrolava nas casas de repouso de Estocolmo. O vírus, especialmente mortal para os idosos, abriu passagem. Em meados de maio, a Agência de Saúde do país estimou que a maioria dos mortos pela Covid-19 (naquela época, quase 4.000) tinha mais de 70 anos. E que metade das mortes tinham ocorrido em residências. “Falhamos em proteger nossos mais velhos. Foi um fracasso da nossa sociedade”, declarou a Ministra sueca da Saúde.
Obviamente, o fracasso não foi exclusivo da Suécia. A taxa de mortalidade de idosos por coronavírus tem sido desproporcional na maior parte do mundo. E as residências as principais fontes de mortes. Na Espanha, os óbitos nesses espaços totalizaram quase 20.000 pessoas (69% do total informado pelo Ministério da Saúde).
No Reino Unido, no início da crise, o governo se recusou a relatar o número de mortes em casas de repouso de idosos, mas organizações que apoiam os idosos, como a Age UK, denunciaram que o vírus “corria livremente” nelas. No final de maio, o Office for National Statistics informou que dos mais de 46.000 mortos por coronavírus na Inglaterra e no País de Gales, quatro em cada cinco tinham mais de 70 anos.
Nos Estados Unidos, a Universidade Johns Hopkins estimou, no início de julho, que das 133.000 mortes por coronavírus naquele país, um quarto (33.250) ocorreram em casas de repouso de idosos. Outras análises aumentam esse número para quase o dobro.
O que aconteceu? Como é possível que na primeira potência do mundo (Estados Unidos), no berço da social-democracia (Suécia), em países de cultura mediterrânea e “muito familiar” (Espanha) ou obcecados pelo passado (Reino Unido), os idosos ficaram desprotegidos dessa forma? O que aconteceu para que, como escreveu o filósofo Víctor Gómez Pin, estejamos em uma sociedade “na qual a imagem da velhice é progressivamente repudiada, não só da sociedade em geral, mas também dos lares”?
A verdade é que a figura do idoso foi perdendo valor de forma acelerada. A ponto de, como destacou a socióloga Pilar Escario, a distância que hoje separa a sociedade dos mais velhos "não é apenas física, mas moral". Um distanciamento que não representa apenas falta de afeto, “mas uma injustiça para com uma geração que outrora inspirava respeito e veneração”.
Ao longo da história, os mais velhos certamente foram respeitados. Principalmente em sociedades sem linguagem escrita, nas quais o conhecimento era transmitido oralmente. Durante séculos, os mais velhos foram guardiões de tradições e sabedoria, bem como os melhores árbitros em caso de conflito. Nas sociedades primitivas, garante o médico Carlos Trejo Maturana, chegar à idade avançada representava um privilégio: “Uma façanha que não poderia ser alcançada sem a ajuda dos deuses”.
No mundo antigo, também foram detentores de poder. Na Grécia nasceu a "gerontocracia" – o governo e domínio exercido pelos idosos - que gozou de excelente saúde até o século XX. Especialmente em regimes comunistas, como na ex-União Soviética. A gerontocracia ainda é praticada nas mais altas instâncias judiciais, em algumas repúblicas com presidentes idosos (como a Itália) e no Vaticano, onde a maturidade é essencial para chegar ao papado.
Já acontecia no passado. Em Esparta, um dos órgãos de governo mais importantes era a Gerusía, composta por vinte e oito membros, todos com mais de 60 anos. Em Roma, onde Cícero escreveu De senectute, seu tratado sobre a velhice, em 44 a. C., o Senatus - o poderoso Senado - significava "assembleia de anciãos". Enquanto no antigo Egito, como acontecia nas culturas primitivas, a longevidade era vista como algo sobrenatural.
No mundo hebraico, os anciãos também eram considerados como tendo uma conexão com Deus. Como Trejo Maturana aponta, no Antigo Testamento há vários exemplos disso: “É descrito que Moisés tomou decisões apenas com a consulta direta de Deus, que lhe disse: 'Vá, reúna os anciãos de Israel e diga-lhes’. Da mesma forma, Yahweh lhe ordena: 'Vai diante do povo e leva contigo os anciãos de Israel'”, escreve em seu artigo “El viejo en la historia” (Acta Bioética), onde ressalta o poder que os Conselhos de Anciãos tiveram nesta sociedade, que eram "todo-poderosos" e "incontestáveis".
Esse poder diminui na Idade Média. O historiador Jacques Le Goff afirmava que a sociedade medieval ignorava a gerontocracia, mas que os idosos tinham valor como imagens veneráveis e simbólicas. Depositários da memória, eram convidados a atuar como árbitros.
A era medieval foi uma época de guerreiros e cruzadas: “A lei do mais forte prevaleceu, portanto, os idosos ficaram em desvantagem”, segundo Trejo Maturana. Em todo caso, o especialista destaca que a pandemia da Peste Negra, desencadeada em meados do século XIV, favoreceu os idosos, ao afetar principalmente crianças e jovens. A mesma coisa aconteceu depois, no século XV, com a varíola. A desintegração parcial da família causada por essas pragas resultou em um reagrupamento. “E os mais velhos, às vezes, viravam patriarcas [...]. A praga favoreceu os idosos, que ganharam posição social, política e econômica”.
No Renascimento, época em que prevalecia o culto à beleza e às artes, a influência dos idosos começou a diminuir. Só se aceita a imagem do ancião sábio e venerável, refletida na arte da época. É também na Europa, a partir do século XVIII, que ocorrem avanços específicos para os idosos. Em 1740, a Imperatriz Maria Teresa da Áustria cria o primeiro asilo. Em 1880, o chanceler Bismarck estabeleceu as pensões, uma das bases do futuro estado de bem-estar. Em 1903, o cientista russo Ilia Ilyich Mechnikov cunhou o termo "gerontologia", a ciência que se ocupa da velhice.
Os avanços científicos e sociais fazem com que, no final do século XX, a pirâmide populacional comece a se inverter nos países mais desenvolvidos. A taxa de natalidade cai, enquanto a expectativa de vida dos idosos aumenta. Este aumento implica também uma melhoria da qualidade de vida: os 60 anos de hoje não têm nada a ver com os de duas décadas atrás. Nem os 60, nem os 80... Como ressalta a gerontóloga Anna Freixas, a experiência do envelhecimento mudou radicalmente: “Todo mundo se sente mais jovem do que cronologicamente e muito mais jovem de como é percebido pela sociedade”.
Porque em um mundo obcecado por juventude e beleza, a velhice é cada vez mais vista como um obstáculo. O que produz esse distanciamento dramático? Muito tem a ver com economia, é claro. A industrialização e a revolução tecnológica vertiginosa foram fundamentais para isso. “O motivo pelo qual as sociedades cuidam ou não de seus idosos depende em grande parte da utilidade que têm”, corrobora o antropólogo Jared Diamond em O mundo até ontem.
Diamond, 82, professor da Universidade da Califórnia em Los Angeles, estudou o tratamento que diferentes sociedades dão aos mais velhos e descobriu que mesmo nas mais tradicionais - em tese, mais respeitosas - também existem conflitos de interesses entre gerações. A ponto de alguns idosos serem abandonados quando não têm mais utilidade (os índios Sirionó, da Bolívia), são incentivados a cometer suicídio (os Inuit, na América do Norte) ou mesmo acabam com suas vidas (os Aché, do Paraguai). O comportamento entre gerações, diz, dependerá das circunstâncias. No entanto, esclarece, também influenciam os valores de cada sociedade.
O antropólogo destaca culturas como as do Sudeste Asiático (Japão e China), cuja tradição confucionista considera “desprezível” não cuidar dos pais. Algo semelhante aconteceu no Mediterrâneo, onde a ênfase na família está enraizada na tradição da família patriarcal. Nesse sistema, que remonta aos antigos romanos e hebreus, a autoridade máxima pertence ao homem mais velho.
Essa tradição nada tem a ver com o modo de vida “neolocal” (independente dos pais) que prevalece nas sociedades industriais modernas, como os Estados Unidos: “Um lugar onde, pelo sistema, os idosos não moram com seus filhos e é mais complexo cuidar deles, mesmo que se queira”, escreve o antropólogo.
Mas os Estados Unidos foram, durante décadas, o espelho do mundo. E os ideais dessa cultura (como o individualismo e, principalmente, a produtividade) se instalaram em sociedades como a Espanha, em que, até relativamente pouco tempo, era normal conviver com os avós. A crise atual derivada da pandemia e suas consequências catastróficas para os idosos devem levar a uma revisão urgente de nossa relação com a velhice. Etapa, inclusive, que com sorte todos chegaremos.
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Como tratamos a velhice desde a antiguidade? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU