07 Abril 2025
“Os massacres, os genocídios e as torturas são elos do mesmo modo de dominação que exige nos esmagar e retirar de nossos territórios para seguir acumulando”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 04-04-2025. A tradução é do Cepat.
Agora que sabemos - porque todos os véus caíram e já nem sequer almejam esconder o horror - que as classes dominantes estão dispostas a massacrar povos inteiros para permanecerem no poder, sem encontrar grandes resistências nas chamadas democracias, do Norte ou do Sul, de modo que podem agir com total impunidade.
Agora que sabemos que os crematórios funcionam em plena democracia eleitoral, tendo-se tornado o novo paradigma da civilização ocidental, capitalista, colonial e patriarcal; uma realidade que extrapolou a afirmação do filósofo Giorgio Agamben, para quem o paradigma da modernidade é o campo de concentração e extermínio, e não a cidade com suas luminárias, filhas do progresso.
Agora que sabemos que o genocídio e o campo de concentração a céu aberto são a estrutura central da dominação, substituindo o panóptico que durante muito tempo moldou os corpos para o controle social e a exploração; agora, podemos reconhecer o triunfo do nazismo como uma forma de impor autoridade. Por isso, chamar de “fascista” qualquer autoritarismo pode até mesmo invisibilizar o que é central: a violência nua e crua dos de cima para conter os de baixo.
Agora que sabemos que a dominação não tem limites e que os estados se dedicam a limpar a cena do crime para disfarçar os horrores, não podemos pensar que os direitos, as leis e as constituições podem nos servir para cuidar da vida, nos defender e confiar que os governantes fazem algo pelos povos. Qual é o sentido de nos mobilizarmos para defender direitos, enquanto os poderosos os ignoram quando querem?
Agora que vemos imagens do tratamento humilhante aos detidos nas prisões salvadorenhas de Bukele e aos deportados por Trump - torturados pelo único crime de serem pobres da cor da terra -, podemos ligar os pontos e observar como o sistema age de forma muito semelhante em Gaza, nas fronteiras Norte-Sul, nas comunidades negras e indígenas e nos bairros operários de nossas cidades.
Os massacres, os genocídios e as torturas são elos do mesmo modo de dominação que exige nos esmagar e retirar de nossos territórios para seguir acumulando. Estaríamos errados se pensássemos que são desvios pontuais deste ou daquele governante, porque estaríamos perdendo de vista a mutação sistêmica que levou a esse estado de coisas. Um novo modelo começou a despontar, no final dos anos 1960, para se contrapor ao que Immanuel Wallerstein chamou de “revolução mundial de 1968”, quando os mais diversos no planeta convergiram para derrotá-lo.
Agora que sabemos tudo isso e muito mais, que dia a dia vamos decifrando através de nossas resistências. Agora, o que vamos fazer?
Não adianta olhar para outro lado, rezando para que a tempestade não passe por cima de nós, com a esperança vã de que atinja só aqueles que estão apenas meio degrau abaixo de nós. É um absurdo esperar passivamente que caiam primeiro os mais frágeis, as crianças, os idosos, os povos negros e indígenas, porque é só uma questão de tempo até que a tempestade atinja todos nós que não fazemos parte do 1% mais rico e poderoso.
Nos anos 1970, pelo menos na América do Sul, nós, rebeldes, cultivamos um lema que sintetizava os desejos de lutar por uma mudança radical, pela revolução: “ser como o Che”. Não era uma linha, nem um programa político, mas um modo de encarar a vida, algo que hoje chamamos de ética. Em suma, uma ética de vida que incluía colocar o próprio corpo, dar tudo para mudar este mundo.
Passado mais de meio século, sinto que as perguntas são outras, no formal, embora idênticas em seu sentido profundo. Estaremos à altura dos pais e das famílias que procuram seus filhos desaparecidos? Conseguiremos seguir o seu exemplo de firmeza implacável? Estamos dispostos, pelo menos, a acompanhá-los em sua tremenda jornada?
Anos atrás, em uma Argentina onde a dignidade recebia o nome de Mães da Praça de Maio e de Avós da Praça de Maio, surgiu um lema que dizia: “lute como uma avó”, muitas vezes, acompanhado pelo rosto de Nora Cortiñas, que com mais de 90 anos nunca deixou de comparecer a todas as reuniões e manifestações onde sua mera presença galvanizava os ânimos e estimulava as rebeldias.
Como aponta um comunicado recente do Exército Zapatista de Libertação Nacional, “aqueles que buscam não são silêncio, são sementes”. Não é uma utopia, nem um desejo, mas uma simples leitura da realidade. A fenomenal insurreição argentina de 19 e 20 de dezembro de 2001, que fissurou o neoliberalismo, é filha da resistência de mães e avós. Sem elas, não teria existido memória, nem organização. Foram escola para milhares de jovens que não se submeteram à lógica da derrota.
Essas mãos que aram a terra buscando vão parir as dignidades que iluminarão o futuro das gerações que seguirão abrindo sulcos de vida, desafiando a indiferença e o desprezo de outros.