11 Março 2025
“Não nos resta outra coisa a não ser um exercício de humildade, de aceitar o que não sabemos para continuar aprendendo e, no melhor dos casos, ajudar a multiplicar as práticas autônomas em outros espaços. Pode ser uma boa maneira de levantar os olhos para sair do atoleiro em que estamos”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por Desinformémonos, 10-03-2025. A tradução é do Cepat.
Há momentos na vida, individual e coletiva, em que tudo parece ficar nublado, em que as certezas e os horizontes luminosos desaparecem. O que esvaece em tais tempos é a própria ideia de horizonte, a possibilidade de se sobrepor ao naufrágio. Às vezes, o desespero e a depressão vencem, boa prova disto é o aumento impressionante dos suicídios de jovens e do consumo de produtos químicos, de antidepressivos a drogas pesadas.
Como superar esses momentos adversos, sem deixar de ser quem somos, sem nos rendermos, sem nos vender, nem claudicar?
Penso que só a experiência viva dos povos pode nos indicar um caminho. Povos que souberam sobreviver a cinco séculos de extermínio colonialista, tempo em que não só garantiram a sobrevivência, como também puderam passar à ofensiva, como ensinam tantos exemplos, das revoltas de Tupac Amaru e Tupac Katari no que hoje são o Peru e a Bolívia, até a revolução haitiana, as mobilizações comunitárias lideradas por Manuel Quintín Lame, no sul da Colômbia, as resistências mapuche e a rebelião de Jacinto Canek, em Yucatán.
Consigo ver, em primeiro lugar, uma espécie de recolhimento, não no sentido ocidental de retirada ou de ofensiva, mas no de voltar à comunidade para encontrar a si mesmos, para buscar mais força dentro de cada povo. Hoje, com a proposta e a construção do Comum, o zapatismo nos ensina um caminho semelhante que não é visível de fora, que não passa pela exigência de algo ao mau governo e que também não se propõe à mobilização para “mostrar-se” à sociedade, como os movimentos sociais tradicionais costumam fazer.
Como explicou o subcomandante Moisés, o Comum se inspira na longa história dos povos, nos legados de avós e avôs que lhes ensinaram que somente em “aglutinação” poderiam escapar das fazendas e também construir a vida, para que, sem a terem propriedade, o poderoso não soubesse onde atacar.
Dias atrás, em 7 e 8 de março, o povo Guarani Kaiowá, em Dourados, Mato Grosso do Sul, Brasil, realizou a cerimônia de “batismo do milho branco”. A comunidade dança de forma circular na Casa de Reza, das 5 da manhã até as 5 da tarde. Felipe J. e Silvia Adoue me trouxeram a informação e as imagens dessa jornada de 12 horas, interrompida apenas para refeições e serviços.
Simbolicamente, girar e girar no mesmo eixo por horas e horas, fazendo soar seus maracás e paus de chuva, é o modo de garantir que neste ano continuarão a colheita do milho branco, pela qual a vida estará a salvo e “o mundo não acabará”. Estamos diante de práticas que os povos indígenas realizam com muita frequência para a reprodução da vida, das águas, dos alimentos e dos corpos humanos e não humanos.
Encontro semelhanças entre o que os zapatistas, os Guarani Kaiowá e muitos outros povos do nosso continente fazem. Voltar-se para o interior quando o exterior é tão tremendamente agressivo e violento não é uma prática de recuo, muito menos passiva, é um mover-se totalmente diferente do que conhecemos nas cidades e no mundo ocidental.
Francisco López Bárcenas sintetiza isto em seu livro Autonomías y derechos indígenas en México.
“Uma forma de mobilização que pouco se vê porque é muito própria dos povos é a que realizam no interior de si mesmos”. Muitas vezes, não as divulgam, dependendo da situação que atravessam. Recorrem a seus guias espirituais e buscam restabelecer a harmonia entre as pessoas deste tempo e as do passado, bem como entre a sociedade e seus deuses. Recorrem a lugares sagrados, fazem oferendas, pedem perdão por se afastarem de suas obrigações com a natureza e por permitirem que ela fosse agredida de fora.
“Então, desempoeiram suas próprias formas de luta e as colocam em movimento para organizar a resistência, à sua maneira. Como muitas pessoas não as veem ou, quando as veem, não as entendem, pensam que os povos não se mobilizam, quando na realidade são as mobilizações mais significativas para os povos, porque a partir delas constroem sua autonomia”.
Acredito que é uma reflexão profunda sobre as muitas formas de construir autonomia. Não é possível compreender as lógicas dos povos com uma visão curta, superficial, capitalista, digamos. Quem escreve isto não compreende quase nada sobre os povos indígenas, apesar de estar durante décadas em contato irregular com eles. Por isso, não nos resta outra coisa a não ser um exercício de humildade, de aceitar o que não sabemos para continuar aprendendo e, no melhor dos casos, ajudar a multiplicar as práticas autônomas em outros espaços. Pode ser uma boa maneira de levantar os olhos para sair do atoleiro em que estamos.