28 Fevereiro 2025
"Eis o conteúdo desta Obra: ela nos coloca diante de temas e questões que nos desafiam moralmente e que, diariamente, batem às nossas portas. Os capítulos são provocantes, iluminadores e esclarecedores e vêm ao encontro dos inúmeros desafios morais constatados por inúmeros formadores e formadoras no seu ministério cotidiano, desafios que não podem ser ignorados", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), em resenha do livro Formação: desafios morais 3 (Paulus, 2024, 352 p.).
Depois da ampla aceitação em inúmeras dioceses e ordens religiosas dos livros Formação: desafios morais 1, publicado no ano de 2018, e Formação: desafios morais 2, publicado em 2021, somos presenteados com um terceiro volume – Formação: desafios morais 3 (Paulus, 2024, 352 p.). A obra, organizada por três doutores em Teologia Moral – José Antonio Trasferetti, Maria Inês de Castro Millen e Ronaldo Zacharias –, foi pensada para auxiliar formadores e formadoras de todo o Brasil a inserir no processo formativo debates sobre temas que, devido à urgência e importância, precisam ser considerados como parte da caminhada vocacional, tanto inicial quanto permanente.
A Obra como um todo é uma contribuição significativa àqueles que se dedicam ao ministério formativo. Os quinze capítulos que a compõem foram escritos por diferentes autores e autoras, profissionais competentes, entusiastas e ricos em humanidade e sabedoria.
O tema da autonomia e obediência é assunto do primeiro capítulo (p. 11-31), escrito pelo doutor em Psicologia Clínica Ênio Brito Pinto. Em vista de uma obediência autônoma e de uma autonomia obediente, o autor aponta quatro aspectos importantes e delicados da atividade formativa: a) a formação é parte da educação; b) a formação tem metas (institucionais) e pretende criar horizontes (pessoais); c) a formação é sempre relacional e se dá em mútua influência; d) a formação se baseia em valores, os quais precisam ser conhecidos e atualizados para que o processo formativo faça sentido. Para o autor, nesse último aspecto dá-se o inevitável e perene embate entre autonomia e heteronomia. Quanto mais houver autonomia com a consequente obediência crítica, dialogal tanto mais ela poderá nutrir o senso comunitário, favorecendo uma presença-participação responsável, amorosa e solidária nos grupos de pertencimento. A autonomia crítica é um antídoto para a solidão narcísica e um sustento para a solicitude e a solidariedade.
O tema proposto pelo segundo capítulo refere-se ao magistério eclesial. Partindo do pressuposto de que, na Igreja, todos devem se escutar e escutar o Espírito (p. 33-52), o autor – o doutorando em Teologia Leonardo Lucian Dall’Osto – propõe uma adesão crítico-propositiva ao magistério. Para ele, o magistério deve estar a serviço de todos os carismas na Igreja e favorecer a comunhão e a unidade entre os fiéis. Para que seja uma voz autorizada da comunidade dos fiéis, o magistério precisa estar atento e ser fiel à Palavra de Deus e ao sensus fidei e pôr-se continuamente em diálogo com a realidade contemporânea numa perspectiva sinodal.
O terceiro capítulo trata da institucionalização e da corrupção das relações e propõe que sejam repensadas, com urgência, as estruturas seminarísticas de formação (p. 53-75). A doutora em Teologia Moral, Maria Inês de Castro Millen, pensa a Igreja como estrutura institucionalizada com o dever de oferecer formação adequada para aqueles que nela se inserem. Ela traça um percurso histórico sobre os modelos formativos dos seminários, considera as críticas feitas a eles e se questiona sobre o modelo/estrutura de Igreja que os sustenta. Indaga, ainda, se é possível falar de uma simbiose que tenta aproveitar um pouco de cada modelo e pontua que repensar as estruturas formativas é tarefa urgente, não para desestabilizar a instituição, mas para colocá-la na linha do discernimento capaz de apontar caminhos de superação dos problemas que se avolumam.
O tema das questões de gênero como desafios no processo de formação inicial e permanente é a matéria do quarto capítulo (p. 77-95). A doutora em Teologia, Ivone Gebara, nos convida tanto a superarmos a tentação de querer discernir situações atuais a partir de orientações preestabelecidas nos séculos passados quanto a tentação de resgatar uma espiritualidade que se fundamenta na dissociação entre corpo e espírito, com o consequente desprezo do primeiro. Para ela, trata-se de transcender as hierarquias preestabelecidas por poderes masculinos de dominação e o velho iceberg doutrinário fundado nas figuras masculinas, de fundo sexista, antifeminista, racista e homofóbico, se quisermos acolher o inegável pluralismo de todos os seres vivos, inclusive dos seres humanos, e, consequentemente, favorecer um efetivo diálogo sobre questões de gênero e diversidade sexual.
Autoerotismo e autotranscendência são os temas desenvolvidos no quinto capítulo (p. 97-124). Chamando a atenção para a importância da integração entre eros e ágape, o doutor em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias, aborda possíveis deformações do eros na vida presbiteral e religiosa consagrada que dificultam a abertura ao ágape. Em seguida, aprofunda o significado da autotranscendência como expressão de maturidade pessoal e condição para a integração entre eros e ágape e propõe vários desafios a serem considerados no processo formativo, como meios concretos de superar o autoerotismo em vista da doação total de si. Para o autor, é muito importante que, durante todo o processo formativo, o eros seja projetado em direção ao ágape – que se manifesta como caridade pastoral –, para que seja possível compreender o que significa realizar-se sexualmente como padre ou religioso.
A reforma do Direito Penal Canônico, com as quais o Papa Francisco contribuiu de modo muito significativo, é o tema do sexto capítulo. Dom Denilson Geraldo, doutor em Direito Canônico, tece considerações sobre o Novo Direito Penal Canônico, salientando que este está a serviço da comunhão eclesial (p. 125-141). Chamando a atenção para as modificações introduzidas no Livro VI, o autor apresenta uma síntese dos delitos e das penas, em geral, e da tipologia dos delitos, em sua especificidade, evidenciando que os delitos agridem a comunhão e, por isso, exigem devida reparação, uma vez que todos somos chamados à santidade e à salvação, respondendo pelos próprios atos e pelas próprias opções.
O tema da correta e da justa administração dos bens (p. 143-163) é o conteúdo abordado pelo especialista em Comunicação Social Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos. Tendo em conta o pensamento do Papa Francisco sobre o assunto, o autor apresenta, num primeiro momento, casos hipotéticos e paradigmáticos de contratestemunho de práticas atuais que envolvem corrupção, enriquecimento ilícito, desvio de dinheiro, analisando, em seguida, as origens das práticas inortodoxas e seus eventuais elementos impulsionadores, tais como formação inadequada, ausência de critérios na escolha dos protagonistas e desrespeito aos princípios conciliares fundamentais. Num contexto de permanente preocupação com a implementação dos valores evangélicos – que devem permanecer como objetivo da missão evangelizadora da Igreja –, com o uso do dinheiro da Igreja e com a existência e a finalidade de seus bens, o autor propõe a justiça e a transparência como nortes a serem seguidos pelos administradores eclesiais.
A formação para a ação política é o tópico do oitavo capítulo. Dom Vicente de Paula Ferreira, doutor em Teologia, aborda a urgência da formação dos seminaristas para o compromisso e a ação política como modo concreto de atualizar o Evangelho. Partindo da grave crise socioambiental pela qual passamos – provocada por um estilo capitalista neoliberal global que coloca o lucro acima de tudo e considerando como esse sistema impõe políticas autoritárias que ameaçam a democracia –, à luz do eixo cristão fundamental, que é a fraternidade, o autor denuncia um fazer político que se expressa na antipolítica de privilégios e cumplicidades com pessoas, estruturas e poderes que vão na contramão do respeito à dignidade e aos direitos fundamentais das pessoas, buscando, no magistério da Igreja, principalmente do Papa Francisco, os elementos do anúncio profético para a construção de uma sociedade fraterna e o cuidado com a casa comum.
Livro "Formação: desafios morais 3", de José Antonio Trasferetti, Maria Inês de Castro Millen e Ronaldo Zacharias (Editora Paulus, 2024).
A formação na perspectiva pastoral sociotransformadora (p. 185-212) é a temática abordada pelo mestre em Teologia Dom José Reginaldo Andrietta. O autor salienta que a práxis libertadora é intrínseca à missão evangelizadora da Igreja e, por isso, no processo formativo é preciso dar prioridade a uma formação na perspectiva pastoral sociotransformadora. Para que, de fato, seja assumida e desenvolvida por todos os agentes pastorais, principalmente pelos ministros ordenados e pelos consagrados, essa perspectiva pastoral precisa ser bem compreendida: ela tem a pessoa de Jesus como referência imprescindível, referência a ser vivida em chave reinocêntrica, próxima da humanidade sofredora e geradora de comunhão e participação. Cabe, por isso, aos responsáveis pela formação para os ministérios ordenados e para a vida religiosa consagrada dar passos nesse sentido, reconhecendo na perspectiva pastoral sociotransformadora a possibilidade de um novo horizonte formativo, promissor para uma Igreja que deseja testemunhar mais autenticamente a amorosidade de Deus e nutrir a humanidade de esperança.
A saúde metal e os transtornos psicoafetivos dos presbíteros bem como o cuidado da saúde integral dos cuidadores (p. 213-231) são trabalhados pela médica psiquiatra Tatiana Maiochi Cunha no décimo capítulo. A autora discorre sobre a saúde mental e os transtornos psicoafetivos dos presbíteros e seminaristas em processo de formação inicial, pontuando que uma reflexão abrangente sobre a saúde mental dos padres e religiosos deve ser considerada também no seu aspecto positivo: uma pessoa bem integrada possui equilíbrio emocional suficiente para responder às demandas, tanto internas quanto externas, do dia-a-dia; é capaz de estabelecer relacionamentos positivos com todos; visa o crescimento e o amadurecimento pessoal, a realização do sentido do próprio projeto de vida, a autonomia e a capacidade de autotranscendência.
O suicídio entre padres e religiosos merece atenção no décimo primeiro capítulo (p. 233-248). A mestra em Psicologia, Silvia Cristina Maia, entende que, devido à sua complexidade, o suicídio deve ser considerado a partir de diversas perspectivas e não pode ser reduzido a uma de suas dimensões. Há realidades tanto internas quanto externas que impedem que a pessoa efetive a sua liberdade essencial. Por isso, é de fundamental importância a pergunta sobre os fatores capazes de bloquear a capacidade de o ser humano exercer a sua liberdade na escolha pela vida, mesmo num período em que o sofrimento e a dor parecem insuportáveis. Os pontos ressaltados pela autora são sinalizadores de que algo não vai bem no processo formativo – inicial e permanente – e que é preciso encontrar possíveis caminhos para a superação dos momentos difíceis, das crises existenciais e da falta de sentido para a vida, a fim de que a decisão por viver, ancorada na fé, no amor e na esperança, seja mais forte do que a decisão por não viver.
O uso das mídias digitais (p. 249-268) é a temática desenvolvida pelo doutor em Teologia Moral José Antonio Trasferetti. Chamando a atenção para a ambiguidade das redes sociais, para o fenômeno dos influenciadores digitais, para o mundanismo espiritual e para a importância da unidade na Igreja, a reflexão proposta pelo autor aponta caminhos para uma formação que dê prioridade à centralidade de Jesus Cristo, tanto em relação aos sentimentos a serem propostos quanto às ações a serem assumidas. O grau de exposição nas mídias digitais, o fanatismo religioso de cunho fundamentalista, a busca acrítica de formas de devoção, “correção” litúrgica e ortodoxia radical, a influência de um certo “magistério paralelo” são ameaças constantes no processo formativo que comprometem não apenas a unidade na Igreja, mas a interiorização e a vivência de valores que deveriam caracterizar discípulos missionários mais conformes ao próprio Cristo.
No décimo terceiro capítulo, a doutora em Teologia, Margaret Eletta Guider, aborda o tema da crise da fé e da mediocridade espiritual (p. 269-292). O objetivo da autora é refletir criticamente sobre um dos fatores que contribuem para que padres e religiosos abandoem o sacerdócio e a vida religiosa consagrada: a mediocridade espiritual. Entendida como falta de fé, ela indica a ausência ou perda de uma autêntica de profunda experiência pessoal e comunitária de Deus, de um seguimento radical a Jesus e de uma humilde abertura ao Espírito. Nessa perspectiva, a autora discorre sobre o que constitui uma crise de fé; quais são as tendências humanas que favorecem a mediocridade espiritual; como tais tendências ajudam a criar e manter ambientes tóxicos que favorecem uma crise de fé e o abandono da própria vocação e, por fim, quem é o responsável por identificar e questionar a aceitação da mediocridade espiritual como normativa e oferecer uma visão alternativa para fomentar a prática ativa da virtude como elemento-chave de formação religiosa e presbiteral ao longo da vida.
Família, discernimento vocacional e processo formativo (p. 293-316) são tratados pela doutoranda em Teologia Carolina Mureb Santos no décimo quarto capítulo. A autora problematiza a noção de família e os diversos arranjos familiares contemporâneos, nem sempre levados em conta pelas equipes formadoras, para, em seguida, considerar a importância da família no processo de discernimento vocacional e no processo formativo como um todo. Ela ainda reafirma a necessidade de se conhecer a família dos vocacionados para melhor identificar os valores que trazem consigo, e aponta para a necessidade de ressignificação da relação familiar, quando se fizer necessário, a fim de que os vocacionados possam amadurecer e viver sua vocação com maior liberdade e generosidade.
No último capítulo, o doutor em Teologia, Agenor Brighenti, trata da transição do seminário para a vida apostólica e ministerial (p. 317-351). Para o autor, nessa transição, três fatores estão implicados: o perfil do ministério presbiteral no seio do cristianismo: do sacerdote do altar ao presbítero-pastor; o seminário como lugar inadequado para a formação: do seminário que forma “sacerdote” para a casa de formação que forma o presbítero-pastor; e a centralidade da pastoral no processo formativo de futuros pastores. Todos esses “deslocamentos” trazem consequências sérias para a Igreja – como a dessacerdotização do presbítero – e para o próprio processo formativo – como a superação do clericalismo – e obrigam os responsáveis pela formação a repensar o perfil de presbítero que se está formando e o Seminário como lugar exclusivo de formação.
Eis o conteúdo desta Obra: ela nos coloca diante de temas e questões que nos desafiam moralmente e que, diariamente, batem às nossas portas. Os capítulos são provocantes, iluminadores e esclarecedores e vêm ao encontro dos inúmeros desafios morais constatados por inúmeros formadores e formadoras no seu ministério cotidiano, desafios que não podem ser ignorados.
Nas palavras de Dom Arnaldo Carvalheiro Neto, na Apresentação (p. 7-10), esta é uma Obra de arte talhada a diversas mãos, por leigos e leigas, religiosas e religiosas, padres e bispos comprometidos com uma formação repleta da criatividade e da ousadia próprias de artistas que sabem ser originais sem perder os laços com a Tradição e o magistério da Igreja. Fidelidade, singularidade e frescor típicos de pessoas apaixonadas pelo Reino, que fazem de seus escritos um cinzel tão necessário quanto urgente para a formação de novos presbíteros e religiosos no Brasil.
Os leitores e as leitoras que beberem deste manancial, que se deixarem envolver e provocar pelos temas abordados, farão uma experiência, em certos momentos, doída, mas não menos prazerosa, pois terão a oportunidade de testemunhar que, de fato, apenas a verdade pode libertar. Que esta Obra possa produzir os devidos frutos!