05 Mai 2013
É verdade que o peso do “politicamente correto” tende a fazer do homem moderno, que se crê “autoconstruído”, um robô dócil para a publicidade e a opinião comum, constata o filósofo francês.
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“Cada um, agindo de acordo com a sua própria lei irá conduzir a um universo de mônadas independentes ou mesmo a uma anarquia ‘inconvivível’. Essa é uma tendência muito forte das sociedades modernas: pressionar a todos para que vivam por si, que cuidem apenas de seus interesses próprios sem muito se importar com o seu outro e, mais ainda, com qualquer coisa semelhante ao ‘bem comum’”. A ponderação é do filósofo francês Paul Valadier em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
E acrescenta: “a compreensão da autonomia não fará o menor sentido sem estar relacionada a uma heteronomia”. Em seu ponto de vista, ambas são indivisíveis: “a ilusão moderna consiste em crer que nós alcançamos espontaneamente uma autonomia ou que podemos ser ‘maduros’ sem ter passado pelas diversas etapas da vida, ou ainda que a maturidade (intelectual, moral, espiritual) é uma conquista própria e permanente, alienada de um processo constante que a atualiza sem cessar”. O lugar da religião no contexto da autonomia em nosso tempo é difícil de situar, porém Valadier reitera a importância do Cristianismo e suas características de liberdade e esperança.
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Paul Valadier (foto) é professor emérito de filosofia moral e política nas Faculdades Jesuítas de Paris (Centre Sèvres). É licenciado em Filosofia pela Sorbonne, mestre e doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Lyon. Foi redator da revista Études e é autor de uma vasta bibliografia. Escreveu, entre outros, Nietzsche et la critique du christianisme (Paris: Cerf, 1974); Essais sur la modernité, Nietzsche, l’athée de rigueur (Paris: DDB, 1989); La part des choses. Compromis et intransigeance (Paris: Lethielleux – Groupe DDB, 2010) e Elogio da consciência (São Leopoldo: Unisinos, 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a origem do conceito autonomia?
Paul Valadier – A origem do conceito de autonomia é difícil de precisar. Tal conceito não teve, sem dúvida, muito sentido para o pensamento grego antigo. Se pudéssemos falar desse pensamento no singular, veríamos que o homem encontra o seu senso inserido dentro de um cosmos ordenado, ou dentro de uma cidade que lhe forneceu as boas maneiras e as regras de sua relação com o mundo (Aristóteles). Ele encontra, portanto, a sua identidade como ser humano “conformado” à natureza e às leis da cidade.
Sem dúvida foi a introdução do monoteísmo, com o conceito de um Deus soberano, que deu ao homem a sua liberdade mediante uma lei divina. O Deus da Bíblia, criador e providente, convida a sua criatura, feita à sua imagem, a ser livre e saber gerenciar um universo ordenado e perfeito. Podemos ver isso claramente no primeiro capítulo do Gênesis . O Criador deu ao homem a sua própria liberdade e as palavras (ou “comandos”) sem os quais ele só conheceria o caos e a morte. A lei é, portanto, ordenada para a liberdade: ela não o submete propriamente, mas sim o salva de sua perdição.
Ora, a partir da renascença europeia, a autonomia é cada vez mais reivindicada: estamos falando da razão científica e, em particular, no que diz respeito à fé, mas também a autonomia do homem em relação a Deus, o que conduziu às várias formas de ateísmo que se desenvolveram a partir do século XVIII. Era uma razão que acreditava que a autonomia do homem estava ameaçada pela lei de Deus e que por isso ela deveria se emancipar disso.
IHU On-Line – O que é autonomia no século XXI? Quais são os maiores desafios para se realizar essa autonomia?
Paul Valadier – Hoje, uma total autonomia no sentido de que o homem seria absolutamente soberano de si, independente e seguidor de suas próprias leis, é pouco concebível. Isso se dá a partir de um estranho retorno de certas coisas. As ciências, primeiramente desenvolvidas sobre a ideia da autonomia da razão e de seus campos específicos, atuam paradoxalmente de forma a colocar determinações que, parecem em um primeiro olhar, contrariar a ideia de autonomia e liberdade. E se há poucas pessoas que sustentem um total determinismo que será, em si, contraditório em relação à pesquisa científica a qual supõe tentativas para examinar e “dominar a natureza”, o desafio se encontra na relação teórica e prática entre determinismo e liberdade.
Sabemos bem que as ciências, sobretudo as neurociências ou a biologia, que tanto aumentam as esperanças no tratamento de doenças e enfermidades diversas, provocam, por outro lado, grandes interrogações: por acaso elas não estabeleceriam uma total dependência dos homens em relação ao maquinário empregado (p. ex. os computadores) ou aos especialistas que os projetam?Não estaríamos nos arriscando em ir rumo a uma humanidade vivendo em ritmos diferenciados, com uma minoria dotada de grandes poderes e uma multidão controlada em maior ou menor grau? Isso é o que prevê, com uma serenidade aparente e um realismo assustador, um filósofo como Peter Sloterdijk em Regras para um Parque Humano (1999).
IHU On-Line – Quais são as relações entre autonomia e relativismo?
Paul Valadier – Se entendermos “autonomia” de forma fiel à etimologia grega, ou seja, como aptidão de estabelecer a própria lei, não depender de poderes exteriores e impor as suas próprias regras, podemos perceber de forma clara o risco imanente do relativismo. Nesse sentido, não seríamos de certa forma induzidos a considerarmo-nos como soberanos todo-poderosos que levam em conta tão somente seus próprios sonhos, desejos e caprichos? Cada um, agindo de acordo com a sua própria lei, irá conduzir a um universo de mônadas independentes ou mesmo a uma anarquia ‘inconvivível’.
Essa é uma tendência muito forte das sociedades modernas: pressionar a todos para que vivam por si, que cuidem apenas de seus interesses próprios sem muito se importar com o seu outro e, mais ainda, com qualquer coisa semelhante ao “bem comum”. “Superar-se a si mesmo”, como ordenava o Zaratrusta de Nietzsche, aparece, portanto, como um programa incoerente e que a multidão ridiculariza em praça pública, como é mostrado no início desse grande poema. Não mais se superar, mas “abster-se de si mesmo” sem querer, “se perder”, isso que, segundo os Evangelhos, é portanto a condição para “se ganhar” ou para “ganhar a sua vida” (dar- lhe sentido).
IHU On-Line – Como as pessoas podem realizar sua autonomia tendo em consideração a situação relativística atual?
Paul Valadier – Não seria em vão pensar em nossas vidas em termos de uma autonomia, pois nós somos chamados à liberdade, e não à escravidão de opiniões, de determinismos diversos, ou para a indolência moral ou intelectual. Mas, a compreensão da autonomia não fará o menor sentido sem estar relacionada a uma heteronomia. Para crescer e chegar até a maturidade do adulto, toda criança deve se apoiar nas normas e tradições recebidas, e não mediante a uma língua que, por acaso, ele próprio invente, mas a uma língua que ele deve se apropriar a fim de se constituir.
Heteronomia e autonomia são indivisíveis; a ilusão moderna consiste em crer que nós alcançamos espontaneamente uma autonomia ou que podemos ser “maduros” sem ter passado pelas diversas etapas da vida, ou ainda que a maturidade (intelectual, moral, espiritual) é uma conquista própria e permanente, alienada de um processo constante que a atualiza sem cessar. Um adulto não é aquele ou aquela que não deve parar de tomar para si a sua vida? Uma liberdade não é uma tarefa (Kant dirá um dever) que nós temos que desejar constantemente e fazê-la nascer dentro de nós? É verdade que o peso do “politicamente correto” extingue esse ideal. E tende a fazer do homem moderno, que se crê “autoconstruído”, um robô dócil para a publicidade e a opinião comum.
A indolência intelectual consiste em crer que a liberdade é uma qualidade perene uma vez adquirida, ou ainda, que nós nascemos livres (segundo a fórmula ilusória da declaração dos direitos do homem de 1788), enquanto que ela é um ato que se renova permanentemente no seio de todas as relações sociais vividas. Livres não é o que somos, mas o que nos tornamos.
IHU On-Line – Tomando em consideração o capitalismo globalizado e a destacada influência da economia sobre a política e sobre outros campos sociais, é possível falar em autonomia e liberdade hoje? Por quê?
Paul Valadier – O que se acabou de dizer é verdadeiro em todas as situações. Uma liberdade pura não existe: ela é sempre condicionada por um contexto social, econômico, político, internacional, etc. Isso vale tanto para pessoas como para nações e nenhum país hoje é totalmente independente dos outros dentro do contexto da globalização. Também preciso exorcizar os fantasmas de um “império” capitalista (Antonio Negri e Hardt no livro Império; cf. também outras obras desses mesmos autores) que encerra a multidão (multitude) dentro de malhas invisíveis e opressivas. Esses fantasmas dificilmente são ultrapassados, eles se sustentam mais por um infantilismo ou por um esquerdismo extremado do que por uma justa apreciação das coisas. É dentro desses quadros de um capitalismo mundializado, mas não unificado, que as nações podem ter um rosto próprio, portanto, uma identidade. Com efeito, o Brasil não é a China que também não é o Canadá, nem Angola. As particularidades regionais e culturais estão longe de serem uniformes: é o traço sempre fecundo e tenaz da especificidade que confere a liberdade aos povos. Ceder à inclinação de um determinismo total seria como abdicar de nossas liberdades pessoais e coletivas em prol de um mito desmobilizador.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios para a religião nesse contexto?
Paul Valadier – É certo que dentro desse contexto, a religião não perde o seu lugar, mesmo que esse seja difícil de situar. O cristianismo, em particular, é uma religião de liberdade e esperança; ele convoca os homens a assumir a sua humanidade dentro de sua finitude, mais precisamente, no fato de se querer livres em observância aos desígnios do Criador ao qual nos entregamos e que nos chama a ser a providência do homem, de acordo com a bela fórmula de São Tomás de Aquino, uma imagem do Deus providente. Isso nos estimula, portanto, a não trilhar o caminho do abandono que nos rebaixaria de homens livres a escravos, algo que Santo Agostinho alerta de forma vigorosa os discípulos do Cristo. Podemos, com efeito, nos incluirmos como escravos, nos submeter às leis da servidão ou, ao contrário, nos “edificarmos”, no sentido mais nobre dessa palavra. Crescer em liberdade com todos e por todos, carregando os fardos uns dos outros como demanda o apóstolo em sua epístola aos Gálatas (6,2).
Nota: A fonte da primeira imagem que ilustra esta entrevista é de http://bit.ly/10eboGc
Por Márcia Junges
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“Heteronomia e autonomia são indivisíveis”. Entrevista especial com Paul Valadier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU