27 Fevereiro 2024
“Vivemos uma certa esquizofrenia eclesiológica! Há um profundo descompasso entre os Documentos e a sua apropriação pelas bases, mas também entre a eclesiologia que teoricamente queremos e a que vivemos! Temos claras as metas; temos os caminhos; possuímos a orientação do magistério atual e do passado, mas nos deixamos seduzir por algumas quimeras que se vão acendendo. Recusamo-nos a abandonar o modelo de cristandade que teima em alimentar as nossas paróquias e dioceses!”, escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina, que no dia 24 de fevereiro apresentou uma análise de conjuntura eclesial [online] intitulada A Igreja Católica do Brasil: entre o descompasso e a esperança.
A iniciativa do CEPAT contou com o apoio e a parceria do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e o Projeto Diversitas, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos é especialista em Comunicação Social pelo Estúdio Paulino Internacional da Comunicação Social (SPICS) de Roma. Graduado em Filosofia e Teologia. Professor de Comunicação Social, de Profetismo e Doutrina Social da Igreja na Escola de Teologia para Leigos e coordenador do clero da Arquidiocese de Londrina.
Pe. Joaquim Manuel Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Londrina, durante a análise de conjuntura eclesial [online] intitulada "Igreja Católica do Brasil: entre o descompasso e a esperança"
Além de escrever diversos artigos, muitos deles disponibilizados no sítio do IHU, destacamos seus dois livros recentes: Sobrevivi escrevendo, de 2023, uma coletânea das denúncias, comentários e gritos de esperança do autor, em meio à pandemia. E em coautoria com Humberto Robson de Carvalho, o livro Padre diocesano: Testemunha do mistério pascal, que acaba de ser publicado pela editora Paulus, no qual adentram na dimensão humana da vida do presbítero, bem como em sua dimensão profética e santificadora.
Abaixo, publicamos seu artigo com ideias-chave que permearam a análise de conjuntura eclesial.
Veja também o vídeo embedado no final do artigo.
Sou padre no Brasil há 34 anos. Vim da Europa, sugado pelo desejo juvenil de viver numa Igreja em que o Concílio, Medellin e Puebla inspiravam novo jeito de ser e de agir. Figuras gigantes como Paulo Arns, Hélder Câmara e tantos outros impulsionavam suas Igrejas Particulares com os ventos da renovação e mostravam um rosto eclesial atraente e evangélico, no pleno sentido do termo. Eram tempos de profecia, de Comunidades de base e ministérios laicos atuantes. Era a época pós-Vaticano II, repleta de sonhos e expectativas.
Por óbvio, não menciono este fato com qualquer nostalgia piegas de quem reclama a volta de um passado. Tenho plena consciência, que foi aquele o momento certo, na hora certa, na América latina. Porém, reservo-me o direito de me insurgir contra novos rumos, que paradoxalmente se configuram sob a vigência de Documentos extraordinários, como o de Aparecida ou os que refletem a Teologia e Eclesiologia de Francisco. Já lá vão cinco Diretrizes para a Ação Evangelizadora, refletindo as pérolas da quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano! Todos, sem exceção, apontam para a evangelização com base no anúncio da Palavra, fortalecimento das Comunidades Eclesiais Missionárias, na opção preferencial pelos pobres, cuidado da Casa Comum e o testemunho do reino.
Porque, então, patinamos em todo este processo, nos contentando em contabilizar pequenos avanços e não escondendo uma certa fadiga, revelada principalmente nas lideranças e em boa parte do clero? Por uma única razão: vivemos uma certa esquizofrenia eclesiológica! Há um profundo descompasso entre os Documentos e a sua apropriação pelas bases, mas também entre a eclesiologia que teoricamente queremos e a que vivemos! Temos claras as metas; temos os caminhos; possuímos a orientação do magistério atual e do passado, mas nos deixamos seduzir por algumas quimeras que se vão acendendo. Recusamo-nos a abandonar o modelo de cristandade que teima em alimentar as nossas paróquias e dioceses!
Por outras palavras, ainda não esgotamos essa forma de cristianismo arcaico, ao ponto de nos deixar ao léu e nos impulsionar para fora e para a frente! Tomás Halik nos diria que esse cristianismo precisa morrer! E que não devemos ter dó! Mas temos. Temos inseguranças, pois as nossas estruturas físicas do passado (e infelizmente do presente) custam caro na manutenção e “más vale pájaro en mano, que cien volando!” Apreciamos Francisco, em tese o apoiamos em sua saga de renovação eclesial, mas somos ainda uma Igreja pesada e lerda. Não somos corajosos o suficiente para romper e avançar! As nossas estruturas paroquiais continuam ditando o jeito de ser Igreja, vivendo alheios ao fato de, apesar das “multidões aparentes”, a diminuição ser gritante.
Contudo, o nosso calcanhar de Aquiles é mais profundo! A Igreja Católica no Brasil continua formando os seus quadros para o modelo falido! Não está isolada no mundo nessa loucura, mas é preocupante, tendo em conta o seu histórico progressista. Não descobrimos até ao momento nenhuma alternativa aos nossos Seminários tridentinos, apesar da nova Ratio Fundamentalis e das Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil (documento 110), como já foi publicamente denunciado. Justiça seja feita, a uma incipiente experiência em S. Félix do Araguaia. Tivemos a experiência do Recife, com dom Hélder, a da Paraíba, com Padre Comblin/Dom José Maria Pires e a do IPAR, em Belém, no Pará. Todas fechadas no pontificado de João Paulo II.
Há dias, recebi de uma universitária um artigo sobre as mudanças no mundo da moda, que aborda com muita propriedade a necessidade de uma nova filosofia de vida, em função da sustentabilidade e exaurimento dos recursos no Planeta. Era um trabalho profundo em poucas linhas, que revelava um sonho alicerçado em provas cabais de que a humanidade ou muda o rumo ou se tornará autofágica! Falava de um novo paradigma, que negue completamente o antropocentrismo da Idade Moderna e que foi a base da exploração desmedida, levada a cabo pelo ser humano sobre a criação. Apostava num novo movimento filosófico-científico, que não mais coloque o homem como central e superior às outras formas de vida, mas nelas integrado. Essa universitária não deve conhecer nada do que Francisco escreveu. Mas, incrivelmente, em suas reflexões sobre mudanças de paradigma, dele se aproxima! Com isso eu me perguntei: por onde anda o arrojo, a ousadia e a coragem dos nossos estudantes de Filosofia e Teologia? Onde publicam os seus artigos apontando para um mundo melhor, desafiando o status quo e abordando as fronteiras caducas deste modelo atual?
Não escrevem. Não escrevem porque não pensam. Não pensam porque o projeto de formação atual é para não pensarem! Esta é a realidade nua e crua dos nossos Seminários. Não são poucos os que foram “dispensados” por usarem suas capacidades cognitivas para questionarem o sistema! O ambiente de medo é parte integrante do processo formativo. Vou mais longe, olhando a atual configuração de nomeação de bispos. No esquema de Ivan Pavlov, temos nossos reflexos condicionados a buscar compensações; ora, quase no geral, os padres “compensados” com o episcopado são os que não ousam, os que se comportam dentro dos requisitos institucionais. Sendo assim, os padres jovens agem do modo a serem recompensados por sua obediência, por sua falta de ousadia. Também, à luz da sinodalidade, o atual processo de escolha de bispos deveria ser revisto. Mas este é outro assunto.
As conclusões da primeira fase do Sínodo mandam aprofundar estas questões relacionadas à formação de novos padres. Espero que assim seja. Enquanto a Igreja se preocupar com o número de candidatos, promovendo “anos vocacionais” para preencher as vagas dos idosos e mortos (alguns por suicídio), nos assemelharemos a uma guerra, em que se repõem os soldados! A Igreja do Brasil, que já declarou explicitamente inúmeras vezes a sua opção por Comunidades Missionárias, aposta outrossim na continuidade ao se omitir nas grandes reformas imprescindíveis para levá-las a cabo. Padres com mentalidade clericalista e centralizadores não se abrirão jamais a um modelo sinodal, este, sim, gerador e mantenedor de Novas Comunidades. Há uma expressiva estetização no clero que se torna tremendamente perigosa.
A priori, seria grotesco afirmar que ainda não chegamos ao fundo do poço, pela quantidade de presbíteros na ativa, cuidando de um número razoável de fiéis. Contudo, a má distribuição deles pelo país e o envelhecimento nos leva a crer que é uma falsa segurança, tornando-se sim, perfidamente, argumento para não avançarmos! O processo de minorização, já apontado pelo cardeal Ratzinger há décadas, torna-se necessário para um nascer de novo. E estamos a caminho! Os últimos dados do IBGE nos dão conta de que não somos mais a maioria “de sempre”.
Pe. Joaquim Manuel Rodrigues dos Santos, da Arquidiocese de Londrina, e Jonas Jorge da Silva, do CEPAT, durante a análise de conjuntura eclesial [online] intitulada "Igreja Católica do Brasil: entre o descompasso e a esperança"
As apostas atuais em grandes Santuários, padres midiáticos e eventos de grandes multidões com teologias discutíveis – atitudes toleradas e incentivadas desde os anos noventa – demonstraram-se falíveis e contraproducentes. Cristianismo não rima com show, nem sucesso! Cristo não é o nosso general e as muralhas de Jericó apenas nos lembram uma das cidades mais antigas do mundo! Estas opções não se coadunam com Aparecida nem com o Magistério atual. Há um tremendo de um desacerto.
A religiosidade popular, sempre valorizada, está sendo cooptada por um perfil religioso consumista, como também já denunciado. Padres de batina na praia impondo as mãos são uma caricatura de missão e se aproximam de um proselitismo. Se desejamos uma Igreja testemunha do Mistério Pascal que seduza, incorpore e forme seus membros, não podemos pestanejar: assumamos pra valer o projeto da Iniciação à Vida Cristã, com todas as implicações práticas que acarrete.
A nossa Igreja revelou-se tímida na denúncia de eventos internacionais e locais. A invasão de Gaza e o genocídio subsequente não mereceram uma nota contundente de repúdio, lembrando a Israel que tendo sido vítima no passado não poderia repetir agora essa perversidade. Havia modos de condenar o terrorismo do Hamas e simultaneamente a invasão da Palestina. Quanto ao padre Júlio Lancellotti e à tentativa da criação de uma CPI na Câmara de São Paulo, até ao momento em que escrevo não vi nenhuma nota firme da CNBB condenando esse ato tresloucado e defendendo o servo dos moradores de rua. Também não passou desapercebido o enfoque exagerado dado à nova edição do Missal e, em contrapartida, uma divulgação discreta do Fiducia Supplicans, tendo em conta que houve também aqui no Brasil resistência de padres e bispos à sua aplicação.
Entendo que trilharmos o caminho proposto por Francisco exige de nós a recuperação da vanguarda que já tivemos no século passado. Isso se traduz em profetismo, conversão ao novo modo sinodal de ser Igreja e coragem para renovarmos o processo formativo de presbíteros.
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Contradições na caminhada eclesial. Análise do Pe. Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU