"Paremos de não enxergar e não reparar que a época destas grandes mudanças no mundo é também uma excelente oportunidade para a Igreja Católica. Francisco assim o enxerga e nós padres apelidados de 'progressistas', que padecemos hoje com a síndrome de nos assemelharmos a aves raras em extinção, nisso acreditamos!", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Quando o futuro está na volta ao passado, tudo parece paradoxal, incrível, inusitado ou quem sabe, hilário. Mas ao ler a notícia, de que o avião movido a hidrogênio apto a fazer a viagem de São Paulo a Xangai em quatro horas, voando cinco vezes a velocidade do som, é inspirado num modelo desenvolvido na década de cinquenta, não tenho como não achar que algumas soluções para o futuro em mudança, estejam num passado que as legitima na sua essência.
A Igreja Católica desde os anos sessenta se debate com um futuro que a atropela nas demandas e a indaga na eficiência de sua principal missão. O Vaticano II ensaiou de forma correta, soluções para um aggiornamento perante os desafios que o mundo do século XX apresentava. Documentos como Lumen Gentium ou Gaudium et Spes são até hoje fundamentais para entender a Igreja enquanto tal e a sua postura perante o “século”!
A Igreja não pode se furtar a uma reflexão constante e atrevida sobre a razão de ser da sua existência! Não é uma Instituição que corre o risco de sucumbir às mudanças culturais que vão traduzindo a saga humana ao longo dos milênios, séculos ou até décadas, porquanto é mantida pelo Espírito, mas é um organismo que corre sérios riscos de ficar falando sozinho ou dando respostas a perguntas que não foram feitas. Uma Igreja petrificada e esclerosada é uma Igreja morta. Por outras palavras, no confronto com o futuro, a Igreja poderia eventualmente bloquear a ação do espírito e se fincar em trincheiras puramente humanas, buscando seguranças com odor anacrônico e totalmente ineficazes! Tivemos péssimas experiências em séculos anteriores.
Contudo, a volta ao passado é o único caminho que a Igreja tem, para percorrer o futuro. Que passado?
A volta ao passado glorioso, espetacular, imponente, poderoso e até criminoso, de uma cristandade que se arrastou até ontem, é uma ânsia desenfreada e lastimável de cada vez mais gente, dentro da Instituição! Um passado repleto de tradições, roupagens, adereços, figurinos e muita, muita doutrina, em forma de penduricalhos! Lembremo-nos que no tempo de Jesus, as leis observadas pelos fariseus que os tornavam necessariamente mais “santos” e puros do que o resto do povo, passavam de seiscentas! Assim caminhamos nós desde o século IV até ontem! Tínhamos leis e doutrina para tudo! A catequese era chamada de “doutrina”!
O primeiro e velho Direito Canônico de 1917 se impunha, como ainda hoje acontece em muitos ambientes eclesiásticos, com a priorização do CDC de 1983 e seus canonistas, em detrimento da pastoral e da própria reflexão eclesiológica! Haja visto a quantidade de padres estudando Direito Canônico e a “necessidade” que os bispos demonstram da sua proximidade administrativa no governo das dioceses!
A defesa apologética da fé, embalada em pacotes definidos, era prioridade máxima da Instituição. Esse passado não tem mais respostas para o futuro! Esse não é o passado que interesse à Igreja! As roupagens, os gestos clericalistas e eclesiásticos, no pior sentido do termo, buscando definir o campo da Igreja enquanto instituição, não possuem mais nenhuma utilidade nem eficácia, para lidar com os desafios que a mudança de época nos apresenta! Esse passado da cristandade, em que buscávamos desenfreadamente e em muitos casos criminosamente (lembremo-nos nos índios e dos negros), fazer coincidir a Igreja com a totalidade dos terráqueos e assim completar a obra do Reino e antecipando a escatologia, perdeu de vez o sentido!
Portanto, é um equívoco mil vez maior do que a primeira celeuma dos Atos, quando alguns desejavam que os pagãos convertidos cumprissem os ritos do judaísmo! Se naquele episódio, esses tivessem imposto a sua visão, o cristianismo teria ficado reduzido a um gueto ou uma seita judaica! O passado que muitos buscam, como trampolim para se manterem vivos na turbulência de todas as mudanças desta época, não passa de uma catapulta para os fossos que os relevariam a uma completa indiferença!
A Igreja precisa sim voltar ao passado. Mas, como já ensaiou o próprio Vaticano II, necessita resgatar os primeiros séculos da sua história e se inspirar no modus operandi das primeiras comunidades, refletidas no livro dos Atos. Já foi dito que não se trata de retratos de comunidades perfeitas e sim, de desafios que foram enfrentados de forma correta, à luz da presença do Espírito! (Atos 4,32; Atos 6, 1-8; Atos 15,23-29). E mais: Nos Atos e na época Patrística, descobriremos o elixir da eterna juventude, se me permitem a metáfora!
Ali, não falamos de tradições, tão caras aos anacrônicos do momento! É a Tradição, que a Igreja deve resgatar como combustível para o futuro! Mas, mais do que resgatar as suas origens, é de fundamental importância, como bem refere Manoel Godoy, padre, teólogo, que a ecclesia se encontre frontalmente com o seu fundador! Só a partir da pessoa e da vida do Mestre, a Igreja poderá ostentar uma eterna primavera capaz de encantar os homens em todas as épocas e lugares!
O processo Sinodal de Francisco, é tremendamente alvissareiro em termos de resgate desse Passado, com maiúscula! Nunca exageraremos ao recordar que sinodalidade designa, antes de mais, o estilo peculiar que qualifica a vida e a missão da Igreja, exprimindo a sua natureza como Povo de Deus que caminha em conjunto e se reúne em assembleia, convocado pelo Senhor Jesus na força do Espírito Santo para anunciar o Evangelho.
O termo grego “sínodo” significa “caminhar juntos”. A sinodalidade expressa a participação e a comunhão em vista da missão. A unidade, a variedade e a universalidade do Povo de Deus se manifestam no caminho sinodal. A grande novidade deste Sínodo é que o Papa deseja escutar todas as pessoas do mundo inteiro, tanto as que fazem parte da Igreja Católica quanto aquelas que não participam da Igreja Católica ou não aderem a religião alguma.
Como bem nos lembra a Professora Mariana Venâncio: “Este itinerário, que se insere no sulco da 'atualização' da Igreja, proposta pelo Concílio Vaticano II, constitui um dom e uma tarefa: caminhando lado a lado e refletindo em conjunto sobre o caminho percorrido, com o que for experimentando, a Igreja poderá aprender quais são os processos que a podem ajudar a viver a comunhão, a realizar a participação e a abrir-se à missão”.
"É possível caminhar com Cristo no centro e deixarmo-nos guiar pelo Espírito de Deus. Temos a esperança crescente de viver já um novo tempo para a Igreja". Com estas palavras de um dos participantes da Fase Continental do Sínodo, começa a Síntese da Fase Continental do Sínodo da Sinodalidade na América Latina e Caribe, refletindo o entusiasmo que o processo suscitou.
O primeiro ponto da Síntese fala do papel de liderança do Espírito numa Igreja sinodal, que desde Pentecostes "a leva a fluir e a percorrer a história com relevância e significado e que a conduz pelos caminhos da renovação e do futuro", encorajando-a a uma autêntica conversão, procurando superar "a tentação do intimismo, fundamentalismos e ideologias que nos fazem disfarçar de querer Deus quando são a busca de interesses particulares".
Mas a etapa Continental vai mais longe ao afirmar que a “sinodalidade, é a forma de ser e de agir na Igreja, a partir da catolicidade de um rosto pluriforme, que tem como fonte de vida e inspiração para discípulos missionários, a Eucaristia, a Palavra de Deus, a religiosidade popular. Esta Igreja sinodal tem de assumir na sua forma de ser e agir um discernimento comunitário baseado na escuta mútua do Espírito e no diálogo verdadeiro e confiante, algo que tem como método de conversa espiritual, com o qual intuições, tensões e prioridades emergem, permitindo-nos falar livremente sobre questões desconfortáveis e dolorosas, numa experiência de relação horizontal”!
A sinodalidade é sem exagero o verdadeiro resgate do passado. Francisco foi e está sendo corajoso, ao incluir mulheres e leigos no processo de decisão! Como que se antecipa aos sopros do Espírito que já se vislumbram neste processo!
Tomas Halik, no livro A tarde do cristianismo, alerta-nos para as mudanças do cristianismo ao longo dos seus dois mil anos e nos propõe quais devem ser as mudanças de hoje, em resposta às profundas mutações culturais e sociais que estamos a viver, propondo a ideia da Igreja como “uma comunidade de escuta e compreensão”. Uma Igreja sem medo do entardecer! Recorda-nos que em grande parte do nosso mundo ocidental, muitos cristãos experimentam neste momento sentimentos muito semelhantes.
Igrejas, mosteiros e seminários esvaziam-se e dezenas de milhares abandonam a Igreja. Sombras escuras de um passado recente privam as igrejas de credibilidade. Os cristãos estão divididos – e hoje as diferenças não se registram fundamentalmente entre as igrejas, mas no interior delas. A fé́ cristã já́ não enfrenta o ateísmo militante nem aquela dura perseguição suscetível de despertar e mobilizar os crentes, mas antes um perigo muito maior – a indiferença.
Halik, ao mencionar o episódio da pesca infrutífera e a presença do Senhor que os manda lançar as redes para uma boa pescaria, apela para que também neste momento de cansaço e frustração, precisamos de tentar de novo o Cristianismo. Tentar de novo, contudo, não significa fazer a mesma coisa outra vez, incluindo a repetição de erros antigos. Significa fazer-se ao largo, esperar atentamente e estar pronto para agir. Fazer sempre a mesma coisa para obter resultados novos é uma loucura!
O futuro que já chegou, exige um namoro renovado com o passado que embalou as primeiras comunidades cristãs. A volta ao primeiro amor! Se a nível pessoal, a constante interpelação do que fomos e de onde viemos é imprescindível, não duvidemos que a nossa Instituição Igreja o deva fazer permanentemente! Não caiamos nos erros do Vaticano I que teve como uma de suas principais preocupações, a elaboração de um Código de Direito Canônico para “dar segurança à Igreja Católica”! O mesmo, que se tornou finalmente realidade em 1917!
Quando se trata de resgate do passado que nos viu nascer pela força do Espírito, não implica numa terra arrasada de dois mil anos de história, que eventualmente conspirariam contra o que a Igreja hoje necessita para dialogar com o mundo e executar a sua missão. Não é isso que defendemos. Combatemos sim, esta tendência equivocada e maldosa, de se insistir num eterno “meio dia” da Igreja, quando todas as evidências apontam para o seu entardecer!
Saramago, o Nobel português, nos iluminaria com a metáfora da grande cegueira! “De tão esclarecidos atualmente, parece que cegamos para o óbvio. A mesma luz vinda do conhecimento ilimitado nos teria conduzido ao breu branco da cegueira da visão”?! Paremos de não enxergar e não reparar, que a época destas grandes mudanças no mundo, é também uma excelente oportunidade para a Igreja Católica! Francisco assim o enxerga e nós padres apelidados de “progressistas”, que padecemos hoje com a síndrome de nos assemelharmos a aves raras em extinção, nisso acreditamos!