17 Dezembro 2022
"Não existe glamour nenhum na vida do padre que quer ser fiel a Jesus. Carregando suas limitações e pecados, o seu profetismo o conduz inexoravelmente à solidão e ao sofrimento", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Pergunto-me diuturnamente, como a Igreja de Londrina a qual pertenço de coração e alma há 32 anos, poderia navegar com sabedoria e tranquilidade de Espírito, nas ondas de um oceano que configuram uma das maiores crises que a Igreja Universal atravessa.
Quanto à crise em si, pouco há a acrescentar porque o seu diagnóstico torna-se cada dia mais claro, nesta mudança de época que a civilização vive. É uma metamorfose conceitual tão profunda e radical, que se comparação houvesse (e não há), talvez pudéssemos resgatar a passagem da Idade Média para a Idade Moderna e o Renascimento. A Igreja de Roma comandada por Francisco, nunca fez tão jus à simbologia evangélica e patrística de Barca de Pedro!
Nas águas revoltas, avançando para a outra margem, o Papa, alquebrado pela idade e pelo sofrimento nos joelhos, é inflexível e determinado em levar a embarcação a bom porto! As suas reformas não são consequência mera e simples da crise que o mundo vive, mas Francisco é o homem certo no momento certo, no Vaticano! Um sopro do Espírito na história da Igreja, prometido pelo seu Fundador. Vive rodeado de tensões, que por incrível vêm de conservadores e reformistas! Como se não agradasse a nenhum dos lados! E nisso é coerente o Papa! Seu resgate do que de fato é importante, atropelando muitas vezes a doutrina priorizando Evangelho a ser anunciado, não é relativismo nenhum!
É direcionamento de quem usa o seu pontificado para dar ao cristianismo um futuro e ao futuro um cristianismo! Este trabalho implica implicitamente não ceder a nenhum lado, porque simplesmente não existem lados! Como nos lembra muito bem o cardeal alemão Walter Kasper, a tarefa de Francisco é para vários pontificados! As questões que o processo de Sinodalidade trará para os bispos em 2023 e 2024, confirmarão que Francisco está no rumo certo e darão aos próximos papas o eco do sensus fidei fidelis, elemento essencial para todas as mudanças a serem levadas a cabo na Igreja.
Dados estatísticos da religião católica não é difícil conseguir. O IBGE nos fornecerá com certeza! Porém, num processo de Sínodo Diocesano – se bem feito e envolvente for – teremos um retrato falado de quem somos! Muito mais importante do que quantos somos! Quem somos como ministros ordenados, como líderes conscientes e bem formados, como leigos desclericalizados (ou não) como pastorais e movimentos e que tipo de ação social realizamos em nossa Igreja.
Uma coisa parece certa. Não temos deficiência numérica nem de padres nem de diáconos permanentes! Podemos estar apreensivos em relação ao futuro dos Seminários, mas essa, entra na conta de uma apreensão universal que implicará quiçá numa revisão radical do próprio modelo! Portanto, enfrentar a crise que afeta o mundo secular e eclesial, não é necessariamente reforçar trincheiras ou nos munirmos de um número plausível de ministros ordenados!
A crise que envolve o mundo como uma névoa matinal, impedindo até o pouso e decolagem de aeronaves (!), resgata o verdadeiro sentido etimológico do termo! Ou seja, não a devemos encarar pura e simplesmente como negativa! Esbravejar contra ela como Don Quixote ou ignorá-la como se fosse uma “marolinha”, também nada resolve! Faz-se mister penetrá-la com a consciência de que não estamos sós e de que instrumentos adequados surgirão para uma profícua navegação através do nevoeiro!
Mas atenção queridos colegas e amigos: “quem faz sempre a mesma coisa, visando resultados diferentes, é um insano”! E é disso que devemos conversar em época peculiar como a que estamos vivendo! Se alguém for mais arrojado, pode até chama-la de “crise de oportunidades”!
O grande teólogo checo Thomas Halik elogiou o Papa Francisco por ajudar a inspirar as pessoas, inclusive os não fiéis, a navegar na mudança epocal da era moderna, para um pluralismo global radical. Ele mesmo é um dos otimistas quanto ao momento que vivemos! Pessoalmente não me assusta a crise. Assusto-me comigo mesmo, quando a procuro ignorar e continuar vivendo minha vida de padre “como sempre vivi”!
Voltando ao cardeal Kasper, tenho consciência de que os ventos que atualmente sopram, podem levar num tempo não muito longínquo, a mudanças na doutrina sobre homossexualidade, celibato sacerdotal e representação na Igreja, envolvendo um papel maior das mulheres. Se nada disso me desestabilizar, já me sinto confortável!
Numa diocese, numa Igreja Particular, à sombra da eclesiologia do Vaticano II, convém não ficarmos a reboque de tudo que nos chega. É muito producente que tenhamos iniciativa e protagonismo na reflexão e na ação. Hoje não se toleram, “heróis” individuais que descubram a pólvora numa noite de chuva!
Mais do que nunca, a Igreja atual, a Igreja de Francisco, abomina shows individuais, caminhadas da solo ou ministros que se submetam aos termos mundanos do sucesso e do êxito! Contudo, é preciso avançar muito além, para darmos à Igreja um rosto “Franciscano” plenamente missionária, enlameada, machucada, profética e samaritana. Mas o mais importante: fugir das caricaturas proselitistas da missão!
Fugir do repeteco que teoricamente deu certo há vinte anos! O mundo do longínquo ano 2000 está anos luzes distante! Os jovens estão mais longe de seus irmãos da época, do que os avós dos netos! O casamento, as relações familiares em si, as escolas, o conceito de autoridade dentro e fora da Igreja, a vida como um todo, é pautada por ritmos e critérios que na época inexistiam!
Mas dirá você: as necessidades inerentes ao ser humano continuam! Não tenho dúvidas de que aumentaram em gênero, número e caso! O homem de hoje é mais carente, mais infeliz, mais necessitado talvez, de espiritualidade! O homem hodierno vive a contradição de estar sozinho e solitário rodeado de instrumentos de comunicação fácil! Eu e você continuamos sendo necessários! A Igreja na Europa secularizada, continua com o seu lugar ao sol! No Sudão, no Congo, no Qatar, idem!
Por isso meu irmão, que navegar em plena crise, exige de nós além da fé e da caridade, muita esperança e muita abertura ao Espírito que tudo renova! O advento só fala disso! Deus não abandona o ser humano! Ele o nutre com uma esperança (não humana) e lhe proporciona uma alegria (não humana)! Os caminhos se abrirão no deserto numa proporção imensamente maior que o primeiro Êxodo! E nós, que desde o primeiro momento quisemos dedicar a nossa vida ao projeto do Reino, fujamos de ser profissionais do sagrado e vistamos o avental, que será a nossa legítima casula nos tempos que correm.
Tenho refletido ao longo dos anos, que não existe glamour nenhum na vida do padre que quer ser fiel a Jesus. Carregando suas limitações e pecados, o seu profetismo o conduz inexoravelmente à solidão e ao sofrimento. A fidelidade à verdade que liberta e aos valores do Reino, o colocam em rota de colisão total com um mundo que matou Jesus e mata hoje, quantas vezes forem necessárias! Tenho sentido muito, pelos colegas por esse Brasil afora, que encontram no suicídio o último refúgio...
A nossa Igreja de Londrina é o espaço (o sítio) onde eu, você, o bispo e milhares de irmãos unidos pelo batismo, devemos dar a esta região razões para sentirem um diferencial na aceitação de Jesus como Senhor da sua existência! É disto que se trata! A Igreja só será relevante, se o nome de Jesus transformar a vida para melhor! O verdadeiro cristianismo transforma vidas. Sempre para melhor! Não somos uma ONG nem um Rotary nem nenhuma Associação! O trabalho de criarmos uma Igreja confiante, fraterna, liberta do mofo das devoções estéreis, que em última análise representam medo de avançar, é árduo! O período eleitoral que todos vivenciamos, mostrou-nos de modo especial que a raiz evangélica (sentido literal) da fé, anda deteriorada!
Tenho visto muitos de vocês usando roupas clericais que tipificavam o clero no passado pré-conciliar; não tenho nada contra isso. Porém, lembrem-se que as razões do uso, podem denotar uma inconsciente “separação” do povo de Deus que não corresponde mais à eclesiologia vigente. O padre “afastado” do povo, pela vida peculiar que leva e pela performance de sua vestimenta, pode eventualmente gerar esquizofrenias e derrapar para quadros psíquicos perigosos para a saúde mental.
O “clero” não possui mais nenhuma consistência teológica ou eclesiológica que lhe dê a prerrogativa de ser outsider do sacerdócio comum dos fiéis! (Não argumentem com a ordenação, pois ela não possui esse caráter.) Durante séculos, a partir da alta idade média, sim! Aliás, a sociedade era constituída por Nobreza, Clero e povo e já sabemos como as coisas funcionavam! Lá, os ordenados e “separados” encontravam as seguranças adequadas para uma vida estável e tanto quanto feliz.
Bem-vindos caros colegas, ao momento em que se olharmos para trás viramos sal e se desejarmos viver anos à frente, apenas não viveremos! No agora da história, não nos deixemos atropelar pelas contradições. Sejamos nós mesmo sinal dessa contradição! (Lc 2,34)
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
E nós Igreja de Londrina? Artigo de Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU