03 Junho 2021
"Uma Igreja mais dialógica, solidária, compassiva e fiel à Palavra. Menos estruturas, menos dinheiro e mais agilidade no acompanhamento dos homens e mulheres na saga pós-covid-19", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Há no ar, ventos gelados que, porém, nos esquentam. No aconchego inusitado, envolvem-nos em abraços de renovação e ânimo, nunca jamais vistos. Escorrem pelas nossas roupas, filetes de gelo, tal como estalactites milenares pendendo do teto de uma caverna de refúgio. Mas as tentações de volta ao início, para encarar uma normalidade perdida, são várias e persistentes. Nostalgia do que tínhamos como mais acertado em tempos duvidosos, nos prende ao chão, tal qual lei da gravidade existencial.
São vários os medos que nos fustigam, mais do que o vento que nos envolve carinhosa e desafiadoramente. É um ar renovado que nos perturba, como o oxigênio em abundância, entrando num cérebro exaurido. Uma novidade que em forma de tsunami, injeta em nós doses perturbadoras de futuro, para o qual ninguém está preparado. Uma esperança tímida, mas consistente, irrompe dos buracos abertos pelas feridas, de um vírus que virou o mundo de pernas para o ar!
A humanidade que conhecíamos, não volta mais. Ressurgirá pior ou melhor! Por conseguinte, o gélido, que agora nos incomoda, despertar-nos-á para uma vida a ser construída. Fazemos contas. Revemos projetos. Articulamos reuniões de recomeço. Pedimos ajuda ao Altíssimo. Esbravejamos contra quem nos tirou o chão de uma zona de conforto, que como todas, a um útero materno se assemelhava. Estamos inseguros, cabisbaixos e desconfiados. De soslaio, olhamos o inimigo que nos roubou de nós mesmos. Esse mesmo, que já nos devorou amigos e familiares. Questionamo-lo duplamente, mas é o sequestro do passado que mais nos incomoda! Sem ele, parecemos tão mortos quanto os que partiram! São tempos maculados pela falta de cor e brilho, que já algures existiu no que éramos e fazíamos. As nuvens cinza, ocultam-nos o astro da referência para a navegação, que nos devolva a certeza do porto que buscamos. Jazem em ondas revoltas os sonhos de calmaria que até aqui nos trouxeram. Insistimos ainda na ilusão, de que estávamos seguros e calmos numa travessia há muito já agitada. Mera enganação de nós mesmos.
Assim, pensávamos, nos alimentando da própria gordura como urso hibernando, conseguiríamos um tempo hábil, até que tudo passasse! A humanidade dos sapiens, está numa das suas encruzilhadas históricas. Não é a primeira e nem será a última. O instinto primário de sobrevivência, impulsiona a fuga perante um inimigo tão feroz. Fugir do vírus. Fugir da realidade. Fugir de si mesmo! Ao lançar mão, mesmo que hipoteticamente, da teoria imunizadora do rebanho, ele foge deixando para trás os mais fracos, pagadores do preço da vitória sobre a Covid 19. Mas continua correndo e fugindo.... Assim é o humano. Somos todos nós, exilados das seguranças que fomos construindo. Longe da rotina que nos assegurava o amanhã, mesmo que sempre envolto em nevoeiro. A pós-modernidade não estava fácil de entender, nem o mundo nos oferecia tudo que agora lamentamos.
Contudo, o que experimentamos hoje, nos desola e nos empurra para um passado morto para sempre. Aqui e ali, sorrateiramente ou com vozeirões estridentes, não são poucos os que clamam por uma volta à dita normalidade. Céticos e alienados, negacionistas e prepotentes, conclamam à vitória sobre o vírus, afirmando a hora de voltar. Voltar para trás. Recuperar o que lá ficou e continuar assobiando e cantarolando como desgraçados incautos. Formam uma procissão embriagada e cambaleante de quem não admite nascer de novo, para tempos novos e mundo novo. Não. Não existem ainda juízos de valor sobre o que nos espera. Se sairemos melhores ou piores. O sapiens responderá, como já o fez no passado. Infortunadamente às vezes de forma desastrosa e suicida, como nos confirmam as duas Guerras do último século.
Solidariedade e cooperação serão chaves de reconstrução indubitavelmente fundamentais. Se a elas lançaremos mão ou não, o futuro próximo o confirmará. A igreja de Jesus Cristo tem uma infinita capacidade de se renovar e reinventar, uma resiliência que poucos ou nenhuns organismos sociais possuem. Aliás, faz parte da sua essência, o aggiornamento. A palavra do Mestre não é mofada, nem se deixa emoldurar em quadros fixos e estáticos numa parede desbotada. Ontem Hoje e Sempre, nos remete para um permanente e eterno Pentecostes. Uma igreja mais dialógica, solidária, compassiva e fiel à Palavra. Menos estruturas, menos dinheiro e mais agilidade no acompanhamento dos homens e mulheres na saga pós-covid-19.
Irrompe com certeza uma nova história, alicerçada no Vaticano II, nas Conferências Latino Americanas, no pensamento ecológico e misericordioso de Francisco. Os ventos que sopram, são de fato frios e mortais, porém alvissareiros para uma primavera que não tarda. Dizia Dom Quixote para Sancho: Sabe Sancho! Todas essas tempestades que acontecem conosco, são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas têm que acontecer. Porque não é possível que o bem e mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durando muito tempo, o bem deve estar por perto (Miguel de Cervantes). A busca da confortabilidade em Planos de Pastoral previamente elaborados, como roteiros imperdíveis de histórias já escritas, torna-se obsoleta.
Francisco, subindo sozinho os degraus da praça de São Pedro, num memorável fim de tarde, no dia 27 de março de 2020, apresentou ao mundo a fragilidade dos que buscam novos caminhos, entre a certeza da presença do Espírito e o aparente silêncio de Deus. Um idoso mancando, mas firme, caminhou até ao crucifixo de S. Marcelo, que o espera contemplando a cidade de Roma, já uma vez salva da peste. Uma belíssima e imponente metáfora da Igreja, que não tendo respostas para tudo, caminha e sobe a escada, transpirando pelos seus poros, a esperança que o mundo precisa. Quando olha para trás, o faz apenas para dizer com o autor sagrado: “até aqui o Senhor nos ajudou” (1 Sm 7,12).
Não pode haver nostalgia estéril, em quem reconhece em tudo, inclusive numa pandemia, os sinais dos tempos. Temos no nosso acervo teológico e eclesiológico, uma infinidade de sinais que nos apontam a direção a seguir. Seja na Europa, na nossa América ou em qualquer continente, a igreja não tem alternativa senão colocar-se ao lado do homem, numa atitude interpelatória, somando-se a ele na busca pela verdade sobre si mesmo e apresentando o Evangelho da alegria e do Bom Samaritano. Não poderá, ser mais uma Instituição entre tantas outras e nem tão pouco uma ONG! Já defendi noutras ocasiões, que urge acabarmos com as nunciaturas, um dos últimos bastiões da era moderna. Geram despesas estratosféricas e poderiam ser tranquilamente substituídas pelas Conferências Episcopais. O vento que nos fustiga o rosto, vem da direção que devemos tomar, mesmo que isso nos custe um consumo maior de energias. Os que tombam ao nosso lado, cobram-nos uma reformulação e uma proatividade, que escape à simples e mesquinha reação, típica dos que apenas adiam a derrota. São os que morrem, que nos impulsionam para uma vida diferente, garantia de uma vida melhor.
O Papa Francisco, com gestos, palavras e muitas ações exemplares, tem nos mostrado esse Norte que ele chama de “Igreja em saída” para todas as periferias. É a partir dali, que a Igreja encontrará o seu caminho. Muitos reclamavam há anos por um Vaticano III. Porém, quando o Papa anunciou um sínodo dos bispos e disse que “não será apenas dos bispos, mas de todos” e se referiu ao “caminhar juntos”, aí estava límpida e transparente a eclesiologia do último Concílio! O que haverá de mais arrojado e simultaneamente mais conciliar, do que “um à escuta dos outros e todos à escuta do Espírito Santo”? O cardeal Mario Grech, secretário do Sínodo dos Bispos, nos lembra que «este formato em três etapas foi escolhido porque o tempo estava maduro para uma participação mais ampla do povo de Deus num processo de tomada de decisão que afeta toda a Igreja e todos na Igreja». A Igreja pós-pandemia promete! O que diz respeito a todos, por todos deve ser tratado!
Foi esse o grande sopro do Espírito, no Concílio Vaticano II. O imediatismo não tem lugar na Igreja de Cristo. Mas que determinadas nomeações episcopais provocaram retrocessos e atrasos na consumação do tesouro conciliar, é fato. Talvez, porém, o maior entrave esteja nos processos formativos dos últimos vinte anos. Há uma exagerada fidelidade às muitas e acumuladas tradições e nenhuma valorização da teologia e eclesiologia patrísticas, que tanto nos ajudariam agora, a entender e a fazer fluir as ideias de Francisco.
Percebi, com alguma tristeza, que uma boa parcela da Igreja lamentou exageradamente o fechamento dos templos. Com isso, fez coro com atitudes administrativamente equivocadas e omissas, geradores da mortandade que vivemos. Não perceberam de imediato, que a tragédia da pandemia nos fornecia a chave para a revisitação de uma Igreja doméstica e nos proporcionava a correção de determinados rumos. Nada está perdido. Mas faz-se mister escutar o Espírito que fala às Igrejas.
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A normalidade que não volta! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU