07 Junho 2022
"Os ditos conservadores, preferem alienar a fé das tensões atuais e leva-la para o campo intimista das 'certezas doutrinais'! O atual papa quer uma Igreja que não se preocupe consigo mesma, mas que olhe para fora, saia pelas estradas, o que é desafiador, incômodo, comprometedor e nos põe em risco", escreve Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos, padre da Arquidiocese de Londrina.
Onde estão os equívocos dos saudosistas, que alguém inapropriadamente chama de conservadores? Gosto de referir o termo equívoco, porque sempre concedo o privilégio da boa intencionalidade, na ótica de Tomás de Aquino, a uma ampla gama dos que refutam as profundas mudanças e reformas levadas a cabo por Francisco. De fato, não são poucos os que consideram perigosas, no mínimo, as ideias do atual papa, para a Igreja Católica. Onde estariam as principais motivações a essa desconfiança, que está levando a uma oposição ferrenha, considerada por muitos como um “cisma” em gestação?
Há na origem destes grupos, uma clara incompreensão dos textos de João, referentes ao Paráclito, em que se define a sua vinda como um elemento dinâmico capaz de “atualizar” as Palavras do Mestre. As comunidades construídas à volta de Jesus são animadas pelo Espírito. O Espírito é esse sopro de vida que transforma o barro inerte numa imagem de Deus. É Ele que nos faz vencer os medos, superar as covardias e fracassos, derrotar o cepticismo e a desilusão, reencontrar a orientação, readquirir a audácia profética, testemunhar o amor, sonhar com um mundo novo. Causa estupor, que grupos tradicionalmente inspirados pelo culto ao Espírito Santo, sejam os primeiros a reagir com certa negatividade ao arrojo da Igreja, em enfrentar desafios novos em profundas mudanças de época!
Contudo, não é de Bíblia que esses movimentos retrógrados se alimentam! Aliás, a Palavra de Deus quando mencionada, ou é enclausurada em interpretações literalistas ou manipulada para justificar seus posicionamentos “ideológicos”! Sendo assim, nenhuma surpresa ao constatar que os grupos mencionados no texto, tenham uma clara desconfiança ou até oposição, ao Vaticano II, já chamado de “Novo Pentecostes”! O dinamismo inerente à própria mensagem evangélica, é refutado à priori, pois a seu ver, representa o maior perigo para a religião católica. A devoção à terceira Pessoa da Trindade é repleta de paradoxos, ao tratar esse mesmo Espírito como a garantia e a chave do cofre dos tesouros doutrinais acumulados pelos séculos afora! Não foi decididamente essa, a promessa de Jesus, concretizada no início da nossa Igreja em Jerusalém! (At 2,1-18 ss)
Embora não seja inédita a resistência ao aggiornamento da Igreja nos vários momentos históricos, tenho comigo que hoje, o advento das Mídias Sociais, o avanço da extrema direita com a consequente decadência das democracias e o questionamento a várias premissas científicas, deram voz e vez “à luz do sol”, a muitos cristãos que se sentem seguros em defender seus posicionamentos, com bem mais agressividade do que no passado. Some-se a isso, o grande lobismo envolvendo fortunas, patrocinando Grupos anti-Roma que atuam a nível internacional. São grupos de confronto, que demonstram se sentir lesados pela hierarquia atual e reclamam o seu direito à devolução de uma “Igreja roubada”!
Os termos usados parecem bastante belicosos ou irônicos, mas infelizmente correspondem conceitualmente ao que se pretende descrever! Todos os papas desde Leão XIII, que abordaram questões sociais ou aprofundaram a Doutrina Social da Igreja, sofreram ataques e acusações de “heresia”. A liberdade da Igreja, em defender valores e pessoas das garras de qualquer totalitarismo ou sistema econômico devorador de vidas, gerou um desconforto interno, que foi do incômodo ao confronto e à denúncia! Excetuou-se, talvez pelo peculiar momento em que viveu e pela performance que incutiu ao seu magistério, o Papa João Paulo II. Apesar da laborem exercens (1981), da Sollicitudo Rei Socialis (1987) e da Centesimus Annus (1991) encíclicas deveras claras e peremptórias, não se verificou nenhum movimento organizado contra os seus posicionamentos. Porém, também ele mesmo teve que lidar durante o seu pontificado com alguns grupos que se negaram a aceitar o Concílio.
Francisco não é um papa de confronto. Mas é um papa claro e decidido quanto ao que pretende para a Igreja e para o mundo. Os documentos que assinou, nomeadamente Evangelii Gaudium, a Laudato Si, a Amoris laetitia e a Fratelli Tutti, revelam o seu intuito de avançar, incutindo na civilização atual, algo novo e consistente que na apresentação genuína do Evangelho, reflita uma nova ecologia (integral), uma diferente economia (com a primazia da pessoa) e uma amizade social fundamental para uma nova cosmovisão. Ou como é comumente aceito hoje, Francisco revoluciona o humanismo iluminista e antropocentrista! Como bem dizia Dom Pedro Carlos Cipollini ainda há anos atrás, Francisco aponta para uma série de premissas que se tornam desafiadoras e ao mesmo tempo provocam reações: “Uma Igreja pobre para os pobres; primazia da humildade: somos todos franciscanos; estar imerso no povo; não ter medo da ternura e da misericórdia; o verdadeiro poder é serviço; a fé se propõe, não se impõe; a Igreja não é organização humanitária; dizer não ao pessimismo; saber sorrir e ter esperança; importância da unidade; a evangélica coragem da sinceridade”. Ao ser questionado sobre a oposição, Francisco teria respondido: “eu traço o caminho e sigo! Adelante!”
Há da parte dos saudosistas uma fobia repleta de sofrimento e angústia, por algo que não tem nenhuma consistência nem teológica nem eclesiológica. Não pode existir uma “Igreja do passado”! A Tradição não se traduz em nenhum modelo de Igreja, mas pervade com autoridade, todos os modelos que os tempos onde se realiza a missão de Cristo, vão exigindo! O equívoco elementar, de que a Tradição Católica coubesse em tradições acumuladas ao longo dos séculos e que eventualmente definissem fora do tempo e do espaço a própria Igreja, já tomou corpo num passado em que se negava a própria inculturação!
Hoje é inconcebível esse pensamento. Mas o medo dessa gente, vem exatamente da perda de poder e de glamour que na sua ótica, sempre caracterizou a Instituição e que Francisco está destruindo! Inclusive com referências comparativas ao pontificado de João Paulo. Esse sentimento dá lugar naturalmente à agressividade típica de quem se sente espoliado e perdido nas águas “mais profundas”, propostas pelo atual Papa. Embora compreensível, demonstra um grande equívoco. Nada foi roubado de ninguém! Como qualquer Instituição que se preze, também a Igreja aprecia, valoriza e admira a sua história! Seus dogmas doutrinais, suas definições conceituais, seu patrimônio eclesial, são irremovíveis, porque se inserem na essência do seu tripé constitutivo: Bíblia, Tradição e Magistério.
No entanto, não é a isso que os saudosistas e nostálgicos se referem na sua ânsia de voltar ao passado. O equívoco perpasse outrossim, outras dimensões, que apesar de colaterais fornecem muito combustível à belicosidade. Refiro-me às expectativas e inseguranças naturais, que envolvem qualquer processo arrojado de mudança. O momento histórico que o mundo atravessa, tem no amanhã mais ruptura do que continuidade. A mudança de época referida, apresenta determinadas características, mas é temerário descrevermos o que espera a Igreja na segunda metade do século, por exemplo. Neste ponto está a bifurcação entre os que apostam no protagonismo do Espírito na história e, por conseguinte, na segurança da navegação sob denso nevoeiro, e os que preferem a estabilidade do passado, mesmo que para isso mintam e omitam os conflitos que cada época histórica sempre trouxe! Francisco é arrojado porque provoca, não apenas na Igreja, mas no mundo, novos modelos de vida e denuncia a falência dos atuais. Os ditos conservadores, preferem alienar a fé das tensões atuais e leva-la para o campo intimista das “certezas doutrinais”! O atual papa quer uma Igreja que não se preocupe consigo mesma, mas que olhe para fora, saia pelas estradas, o que é desafiador, incômodo, comprometedor e nos põe em risco. “Uma Igreja que olhe para as periferias, para aqueles que sofrem, especialmente neste período pós pandemia. Uma presença Política, expressão de caridade e amor, que a Igreja experimenta do próprio Deus”, como nos lembra Moisés Sbardelotto. É a esta direção que os nostálgicos se opõem.
Não vejo uma tensão justa e coerente que fosse benfazeja à Igreja num contexto pautado pela diversidade e que conduzisse à unidade. Enxergo sim, entrincheirados e medrosos, que fechados sobre si mesmos, atacam e destroem como feras feridas. A constante e sistemática referência a papas anteriores é perversa! Ao desrespeitar o atual, invocam a memória de homens que não podem responder fora do seu contexto. Nenhum papa legitimaria lá atrás, pautas como as levantadas hoje, eivadas de ódio e incapacidade de diálogo.
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Equívoco dos saudosistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU