Amoris laetitia e a Igreja do Bom Samaritano: um ponto de virada na teologia moral

(Foto: Reprodução)

03 Junho 2022

 

"Com base na 'liberdade da teologia moral', talvez ao contrário do passado, hoje é possível expressar o próprio pensamento sem medo, o que garante um maior desenvolvimento da teologia moral".

 

A opinião é de Gabriel Kavčič, padre esloveno, doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsianum. O artigo foi publicado por Settimana News, 28-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

De 11 a 14 de maio de 2022, na Universidade Gregoriana, foi realizado o Congresso Internacional de Teologia Moral Práticas pastorais, experiência de vida e teologia moral: Amoris laetitia entre novas oportunidades e novos caminhos”.

 

(Foto: Divulgação)

 

Com o congresso, desejava-se celebrar o quinto aniversário da Amoris laetitia, aprofundando as sugestões oferecidas pela exortação apostólica e abordar alguns pontos críticos que surgiram no momento da sua difusão na pastoral da Igreja.

 

Uma virada para a teologia moral

 

Se quiséssemos resumir a mensagem do congresso, poderíamos dizer que, segundo os palestrantes, a Amoris laetitia representa um ponto de virada para a teologia moral, que precisa ser desenvolvida muito além do contexto da família na qual o documento pontifício se insere.

 

O congresso caracterizou-se por um denso programa e por uma grande variedade internacional de oradores. Em certo sentido, o Santo Padre também esteve presente no congresso, ao acolher os participantes em audiência.

 

No primeiro dia, houve algumas intervenções que analisaram o modo como a Amoris laetitia foi acolhida no mundo. A diversidade das culturas de onde provinham os oradores encontrou um ponto comum na dificuldade de propor uma pastoral da família. Se na África se sente falta de catequeses e cursos pré-matrimoniais, na Europa o problema cada vez mais preocupante é representado pela desnatalidade. No Chile, deplora-se a forte secularização, atípica para a América Latina, e as noções irrealistas e idealizadas da vida familiar que ainda persistem na Igreja devido ao forte clericalismo.

 

Talvez a conclusão mais importante da manhã tenha sido que, em termos de situações pastorais concretas, a Amoris laetitia representa uma importante inovação que consegue preencher a lacuna que se criou entre a doutrina e a prática. Também é característico o fato de que o povo de Deus acolheu favoravelmente as mudanças, quando estas, apesar das fortes resistências conservadoras, ocorreram.

 

 

Uma “Igreja do Bom Samaritano”

 

Dos outros dias do congresso, vou me limitar a recordar algumas intervenções, sem qualquer pretensão de completude.

 

Lisa Sowle Cahill, um nome muito conhecido no mundo da ética teológica, deteve-se na complexidade das situações familiares, sublinhando “a imagem excessivamente idealizada que o Magistério da Igreja tem da família”, perguntando-se se o ensino católico é adequado para nossos tempos, dado “o abismo extremamente profundo entre um bilhão de católicos e o ensinamento da Igreja”, segundo ela. Foi preciosa a referência ao ensinamento de Tomás de Aquino, com base no qual “a verdade moral prática se encontra na realidade familiar”, não na aplicação das regras. Daí a conclusão de que as respostas magisteriais até a Amoris laetitia devem ser consideradas não mais adequadas. O desejo conclusivo foi de que no futuro a Igreja seja mais inclusiva, uma “Igreja do Bom Samaritano”, na qual a pessoa se sinta em casa.

 

Philippe Bordeyne, decano do Instituto João Paulo II, concentrou-se principalmente nos conceitos de diálogo, sinodalidade e sensus fidei. A sua intervenção poderia ser resumida na necessidade de construir o “princípio da sinodalidade” sobre o “princípio da pastoralidade”, isto é, passar de uma teologia moral como um conjunto de normas, à escuta e à “liberdade de escolha do bem possível”, acentuando, na pastoral familiar, a eclesiologia do Povo de Deus.

 

No contexto da questão de como a abordagem da Amoris laetitia influencia a teologia moral fundamental, pode-se mencionar a contribuição de Alain Thomasset, que se debruçou sobretudo na delicada relação entre norma e consciência, referindo-se ao papel indispensável do discernimento. Conseguindo manter-se fiel ao Magistério da Igreja, o orador procurou não ignorar as diversas abordagens do magistério papal ao longo das décadas, que tentou ler em conjunto.

 

Clericalismo, liberdade de pesquisa, consciência

 

Embora consciente de ter omitido a maioria das intervenções, pode-se perguntar quais foram as orientações gerais do congresso. Elas poderiam ser resumidas talvez em três elementos:

 

1) a luta contra o clericalismo;

2) a nova liberdade da teologia moral; e

3) o forte apoio à renovação da ética teológica católica com base na confiança na consciência humana.

 

A luta contra o clericalismo, em primeiro lugar. Em muitas intervenções, pôde-se perceber, ou mesmo sentir explicitamente, uma desconfiança em relação aos pastores do povo de Deus que “resistem à mudança”. Trata-se de uma crítica que certamente pode ser válida e correta, mas às vezes surgiu até um certo desprezo em relação à aplicação real das novas ideias da teologia moral na pastoral concreta. Na realidade, porém, a maioria dos teólogos morais provavelmente está de alguma forma distante da prática pastoral concreta. Pode-se até temer que os teólogos morais, depois de séculos, estejam levando a ética de volta ao tempo do probabilismo, ou seja, a uma espécie de luta entre diversas autoridades que, em situações éticas semelhantes, chegam a conclusões completamente diferentes.

 

A esse propósito, o congresso evidenciou uma fragilidade metodológica, representada pela sua “unilateralidade”. Embora se tenha falado continuamente de pluralidade de opiniões, de diálogo e de tolerância à discordância, na realidade não houve um verdadeiro debate com as chamadas “tendências conservadoras”. Em outras palavras, faltou um debate crítico com autores que partem de uma perspectiva teológico-moral diferente e que legitimamente têm opiniões diferentes a respeito da Amoris laetitia.

 

A questão decisiva

 

Por fim, uma última impressão: com base na já mencionada “liberdade da teologia moral”, o congresso demonstrou que, talvez ao contrário do passado, hoje é possível expressar o próprio pensamento sem medo, o que garante um maior desenvolvimento da teologia moral.

 

Nessa linha, evidencia-se a questão decisiva que a teologia moral católica terá que enfrentar no futuro. Embora os oradores tenham sido unânimes ao considerar que a Amoris laetitia representa um ponto importante na renovação da ética teológica, a pergunta principal ficou sem resposta. Trata da questão dos fundamentos deontológicos da moral católica. Ou seja: trata-se de abandonar gradualmente os fundamentos deontológicos da teologia moral ou se devem buscar remédios pastorais dentro de uma estrutura existente, daquela que se costuma chamar de “moral objetiva”?

 

É verdade que muitas vezes somos chamados a enfrentar os problemas urgentes e concretos da vida pastoral. Mas é igualmente verdade que não daremos uma resposta verdadeira e clara a esses problemas se, mais cedo ou mais tarde, não enfrentarmos com coragem a questão dos fundamentos. Esse poderia ser o tema de um dos próximos congressos sobre a Amoris laetitia.

 

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