Discernimento moral e benignidade pastoral: para além das incompreensões e resistências à Amoris laetitia

Foto: Pixabay

19 Outubro 2021

 

"Para além das incompreensões e resistências à Amoris laetitiaa sua recepção continuará exigindo e pressupondo trabalho cuidadoso – dos sujeitos, em vista da construção de consensos interpretativos, e de ações conjuntas, em vista da 'superação de uma moral fria ao tratar de temas e realidades delicadas [...] a partir de gabinetes de portas fechadas' –, pois os que estão no centro da discussão, são 'filhos e filhas de Deus, cada um em sua máxima grandeza e sua máxima pequenez e fragilidade', todos necessitados de compreensão, perdão, acompanhamento, esperança e integração (p. 70). A Amoris laetitia, 'do início ao fim, é um convite para acolher a vida no seu dinamismo de ‘sempre mais’ ou de ‘ir além’, pois a vida não pode ser encaixada numa moldura, visto que sua natureza é de expandir-se, lançar raízes e florescer' (p. 125). Assim, a 'Amoris laetitia apresenta-se como um novo convite para ‘ir mais fundo’, ‘ir para onde as águas são mais fundas e ‘lançar as redes para a pesca’” (p. 110).", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Discernimento moral e benignidade pastoral: para além das incompreensões e resistências à Amoris laetitia, Ronaldo Zacharias e Maria Inês de Castro Millen (Santuário, 2021, 352 p.)

 

Eis o artigo.

 

Imagem: Capa do livro Discernimento moral

e benignidade pastoral: para além das incompreensões

e resistências à Amoris laetitia | Foto: Reprodução

 

Em 19 de março de 2016, o Papa Francisco promulgava a Exortação Apostólica Amoris laetitia. Tão importante quanto a sua publicação tem sido a sua recepção. Sabendo que a recepção é um processo que envolve basicamente quatro elementos – o tempo, o espaço ou lugar, os atores e o objeto em causa –, mesmo depois de cinco (5) anos de sua publicação, a Amoris laetitia é objeto de adesão sincera e de declarada incompreensão. Assim como ela amplia o horizonte – tanto da cultura teológica quanto da práxis pastoral –, continua a suscitar resistências de diversas intensidades e diferentes significados. Ocupar-se desse panorama composto de “sins”, “nãos” e “talvez” é a tarefa prioritária da obra Discernimento moral e benignidade pastoral: para além das incompreensões e resistências à Amoris laetitia (Santuário, 2021, 352 p.), organizada pelos doutores em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias e Maria Inês de Castro Millen.

 

Fruto do 44º Congresso da Sociedade Brasileira de Teologia Moral (SBTM), realizado em setembro de 2021, esta obra objetiva “abordar a receptividade da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris laetitia, perguntando pelas muitas incompreensões e resistências que aconteceram ao longo destes cinco anos de sua publicação. Quer ainda, na perspectiva da construção de parâmetros éticos-morais, apontar para o discernimento moral e para a benignidade pastoral como atitudes imprescindíveis que não podem mais ser apresentadas apenas como expectativas a serem cumpridas num futuro desconhecido” (p. 7). Os organizadores salientam ainda que, em meio a incompreensões e resistências, o discernimento moral e a benignidade pastoral para com as famílias e, de modo especial, em relação aos casais que vivem em situações chamadas “irregulares”, acabam não sendo assumidos como caminho efetivo da renovação da pastoral familiar na Igreja.

 

Por meio das reflexões que compõem esta obra, os autores ajudam-nos a compreender a importância do fato de a Amoris laetitia ser o resultado de um processo sinodal que visa colocar a Igreja em “saída”, conforme os insistentes apelos do Papa Francisco, a fim de que cuide com compaixão da fragilidade e das feridas de tantas famílias. Consideremos atentamente cada uma das contribuições.

 

No primeiro capítulo, o doutor em Teologia, Paolo Carlotti, apresenta uma visão crítica das incompreensões relativas à Amoris laetitia (p. 13-41), selecionando algumas questões consideradas emblemáticas e sintetizadoras das diversas reações e incompreensões sobre o magistério moral do Papa Francisco:

1) se a Amoris laetitia pode ser considerada como autêntico magistério pontifício (p. 17-19);

2) se a Amoris laetitia apresenta alguma novidade no magistério moral (p. 20-33);

3) se a Amoris laetitia implica uma aprovação indiscriminada de todas as formas de convivência matrimonial irregular, banalizando-se a misericórdia divina (p. 33-36);

4) se a Amoris laetitia é fonte de dispersão e desorientação, antes de tudo para os pastores, devido à sua difícil interpretação (p. 36-39).

 

Carlotti procura responder a tais inquietações afirmando:

 

1) a autenticidade magisterial da Amoris laetitia;

2) a revalorização do “sujeito” como a novidade do magistério moral pastoral de Francisco;

3) a necessidade de superação de uma espécie de endosso benevolente ou anistia generalizada nas posições a serem tomadas;

4) a urgência de assumir o magistério moral de Francisco como um magistério empenhativo, que implica uma séria abordagem da reflexão teológico-moral e da renovação responsável de algumas modalidades pastorais.

 

Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, Bispo Auxiliar de Belo Horizonte, apresenta alguns questionamentos no segundo capítulo: o que está em jogo são, de fato, incompreensões em relação à Amoris laetitia ou afeição ao desamor? (p. 43-72); o Papa está sendo herético ou seus acusadores estão sendo intelectualmente desonestos? (p. 62-65). O autor chama a atenção para o fato de que a Exortação nasce, compreende-se e se impõe como uma orientação eclesial da mais alta importância para a Igreja em todos os lugares, ambientada nesta nova época em que vivemos, tanto em relação ao mundo quanto em relação à Igreja (p. 44-60). Para ele, é preciso considerar a Amoris laetitia no horizonte do que foi proposto pela Evangelii gaudium: a lei do amor, a primazia da graça como farol da evangelização, a universalização da oferta da salvação, a alteridade (p. 53-57). Não há também como compreender a Amoris laetitia fora do horizonte da misericórdia de Deus (p. 57-60). O autor entende ser a Amoris laetitia “uma espécie de grande louvação a Deus pelo amor que sustenta o matrimônio e a família” (p. 61): “essa é a impressão de todos aqueles que leem esta Exortação Apostólica Pós-Sinodal, que experimentem o amor como a maior das virtudes (1Cor 13,13), porque Deus é amor, e como Amor é experimentado espiritualmente. Compreender ou não a Amoris laetitia é, portanto, uma questão espiritual, de pertencimento sacramental à comunidade eclesial de abertura ao Senhor. Compreender a Amoris laetitia será impossível para aqueles que numa vida inteira de carreirismo eclesiástico, disputam o poder para manter sob controle as pessoas. Também não será fácil para os que esfriaram o próprio coração ou endureceram como pedra, atentos ao que é passageiro e ilusório e desabraçados do que não passa. É neste sentido que tais incompreensões podem ser traduzidas por afeição ao desamor” (p. 61).

 

O doutor em Teologia Moral, Ronaldo Zacharias, destaca que, entre as várias incompreensões e resistências que a Amoris laetitia tem encontrado, uma delas refere-se à relação entre sacramento e ética. Daí o enfoque das reflexões feitas no terceiro capítulo: Amoris laetitia, sacramentos e moral: Francisco e o embate com os “modernos” cavalos de Troia (p. 74-108). Zacharias aprofunda o significado da relação entre sacramentos e moral, a fim de evidenciar alguns aspectos que, embora específicos da área teológica, estão na base de tantas incompreensões e resistências, percorrendo os seguintes passos: 1) as críticas feitas à Amoris laetitia sobre a nota de rodapé n. 351, referente ao número 305, do capítulo VIII (p. 74-79); 2) possíveis respostas a tais críticas, salientando a relação entre sacramento e moral (p. 80-91); 3) as implicações que derivam para o agir cristão da prioridade dada ao sacramento  (p. 92-100). Diante disso, conclui afirmando que “afirmar a pastoralidade da Amoris laetitia é mais do que legítimo. Classificá-la como ‘pastoral’ para diminuir o seu valor magisterial não tem o menor sentido, a não ser camuflar o desejo de emudecê-la. Não me parece que sejam as vestes da pastoral que estão sendo usadas como cavalo de Troia na Igreja [crítica feita a Francisco por alguns de seus opositores], mas, sim, as de um ‘magistério paralelo’ que se infiltrou na Igreja como verdadeiro cavalo de Troia, insistindo em chamar de fidelidade o que a muito tempo está muito distante do Evangelho de Jesus Cristo e – por que não? – do Jesus dos Evangelhos” (p. 102).

 

A alegria do amor em família: para uma renovada experiência de Igreja é o tema desenvolvido pela doutora em Teologia Moral, Solange Aparecida Novaes, no quarto capítulo (p. 109-140). A autora desenvolve sua reflexão em três partes: 1) inicia apresentando algumas incompreensões que, com um olhar mais atento, revelam-se como explicitações do caminho sinodal de uma Igreja em busca de uma eclesiologia de comunhão, cujo caminho, a exemplo de Jesus, não pode ser outro senão a “misericórdia pastoral” (p. 113-118); 2) em seguida, concentra a atenção na mudança de paradigma em ato no mundo e na Igreja, o que aponta, sempre mais claramente, para a importância do anúncio da boa notícia em vista de uma renovada experiência de Igreja (p. 118-128); 3) por fim, procura ler as indicações pastorais que evidenciam a proximidade pastoral da Igreja indicada pela Amoris laetitia através do olhar às pessoas na singularidade de suas histórias e da acolhida humanizadora e, portanto, evangélica, de cada um de seus filhos e filhas (p. 128-133) e conclui afirmando que a Amoris laetitia aponta para a maioridade na vivência da fé cristã, enriquecendo todo o patrimônio da tradição (p. 133-137). Na amorosa comunhão com a Igreja, essa maioridade “significa a coragem de responsavelmente tomar decisões [...] deduzidas de normas gerais, mesmo sem ignorá-las ou contradizê-las” (p. 136).

 

No quinto capítulo (p. 141-164), o doutor em Teologia, Antonio Autiero, considerando criticamente as resistências à Amoris Laetitia evidencia que, além da materialidade das questões emergentes na crítica à Exortação Apostólica, é também muito relevante a compreensão da abordagem tipológica e do sistema hermenêutico ao qual elas se referem – doutrina e verdade (p. 144-150; a grandeza e as fragilidades do amor (p. 150-154); a relação entre consciência e atos morais (p. 154-157); a importância de se passar do juízo ao cuidado (p. 157-159). Sobre esta leitura de horizonte interpretativo é que o autor se deteve, na convicção de que, a partir dela, é possível obter pistas de reflexão que permitam manter viva e dinâmica a atenção ao tema da família e às relações afetivas e compreender a evolução dos modelos, acompanhando suas fragilidades.

 

Autiero conclui afirmando (dizendo) que “as resistências à Amoris laetitia referem-se a preocupantes deficiências, tanto de caráter antropológico quanto teológico e eclesiológico. Prestar atenção a tais limitações não serve somente para melhor entender o alcance das resistências, mas também para colher, em sentido crítico e autocrítico, pistas decisivas que devem acompanhar a própria recepção da Amoris laetitia, não como documento fechado em si, mas como oportunidade de um processo aberto à família e ao matrimônio como realidades em movimento. Tudo isso no contexto construtivo de paixão pelo ser humano e suas capacidades relacionais e de serviço a uma Igreja fiel à novidade do Evangelho” (p. 161).

 

A doutora em Ética Teológica e Social, Maria Teresa Dávila, no sexto capítulo – Resistências à Amoris laetitia? Ou uma questão de incongruência? (p. 165-181) –, entende que não estamos apenas diante de um fenômeno de resistência ao acolhimento e à aplicação do documento na vida das famílias e comunidades católicas, mas de uma incongruência entre os elementos descritivos e analíticos do documento na vida das famílias que estão intimamente incorporadas aos sistemas globais de conquista e aquisição, cabendo à Igreja responder de forma pastoral, fiel e caridosa às três “patologias” que as famílias modernas enfrentam: o capitalismo tardio (p. 168-171), a crise da saúde mental (p. 171-175), as questões de gênero e sexualidade (p. 175-178). A autora chama “tais desafios de ‘patologias’ porque sua presença na sociedade e seu impacto sobre as famílias representam a complicada relação das dinâmicas sociais, culturais e econômicas, religiosas, psicológicas e políticas que as famílias enfrentam de forma aguda e crônica ao mesmo tempo” (p. 168).

 

No sétimo capítulo – Amoris laetitia e o senso da fé: discernindo, acompanhando e superando resistências (p. 183-216) –, o doutor em Teologia, Cesar Kuzma, ressalta aspectos de Amoris laetitia com os quais devemos todos dialogar em vista da superação de resistências (p. 196-207), entendendo ser esta  a tarefa e o labor teológico, a partir de uma “recepção verdadeira, honesta, coerente e criativa, fiel à Igreja e disposta a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais do documento, a fim de melhor servir e contribuir para o entendimento presente e futuro” (p. 184). Abordando a origem e recepção da Amoris laetitia (p. 184-189), propondo caminhos e entendimentos (p. 189-196), o autor entende que o “destino do documento se dará pelo processo de sua origem, isto é, na aproximação das realidades e no ouvir e sentir daqueles que estão inseridos e envolvidos na dinâmica das famílias” (p. 184). Por meio de um caminho sinodal (p. 207-211), “este sentir com o mundo se torna um ponto fundamental para sentir com a Igreja, num senso da fé convidativo e criativo, disposto a avançar e a renovar na força do Espírito, que é quem conduz a Igreja nos passos de Jesus” (p. 184).

 

A doutora em Teologia Moral, Claudia Leal Luna, no oitavo capítulo (p. 127-239), propõe uma “reflexão sobre a leitura e interpretação da Amoris laetitia à luz da noção de espiritualidade evangelizadora ‘em saída’ que, desde a Evangelii gaudium, emerge como um modo de compreender a atuação católica nos tempos em que vivemos” (p. 218). Nas notas de esclarecimento em vista de uma espiritualidade familiar “em saída”, a autora destaca que a relação entre espiritualidade familiar e espiritualidade em “saída” deve ser considerada num primeiro momento, à luz da “categoria teológica de ‘sementes do Verbo’”, a fim de que seja possível refletir “sobre o modo de pensar a identidade da ‘família cristã’ e o caráter de anúncio evangelizador às famílias que não correspondem ao modelo tradicionalmente proposto como horizonte ético a ser alcançado” (p. 220). Num segundo momento, a autora foca na “dignidade das mulheres dentro da família, questão amplamente abordada pela ética social contemporânea e sobre a qual a Igreja oferece uma palavra específica” (p. 219-220). Para ela, uma espiritualidade familiar em saída “atende a critérios verificadores e orientadores do discernimento que cuidam especialmente da inclusão de todos e todas, porque não existe nenhuma família, por mais ferida que esteja, que não possa oferecer em seu seio aceitação, intimidade, alegria e conversão. Essa espiritualidade funciona como critério de discernimento hermenêutico e prático e nos permite abrir caminhos, corrigir erros e sonhar uma Igreja que é ‘família de famílias’” (p. 235).

 

Amoris laetitia e discernimento moral: o amor se manifesta de diversos modos é o objeto de reflexão do nono capítulo (p. 241-259). A doutora em Teologia, Jutta Batterberg Galindo, observa que as diferentes questões e os diversos aspectos trazidos pela Amoris laetitia exigem o repensar de questões antigas, como as famílias (p. 244-246); a relação do casal (p. 246-253); o vínculo dos divorciados casados novamente; a educação dos filhos; o enfrentamento de outras questões que surgem de novas situações emergentes, como a união entre pessoas do mesmo sexo; a influência da cultura e da economia na estabilidade familiar; e a consideração de aspectos que, embora não apareçam explicitamente, é apropriado questionar a partir da fé cristã, com a formação da consciência, o abandono de filhos de casamentos anteriores por pais e/ou mães, além da adoção por famílias homossexuais (p. 253-257). Para a autora, “cada um desses tópicos suscita uma elaboração intensa, extensa e exaustiva que o documento não consegue fazer, mas que permanece como tarefa para especialistas e para o magistério” (p. 244).

 

O doutor em Ciências Sociais, Fernando Altemeyer Junior, no décimo capítulo, apresenta os doze (12) pilares do discernimento sobre o amor na família (p. 261-280). O julgamento moral e o discernimento exigem: 1) o acolhimento da moção do Espírito Santo (p. 265-266); 2) o seguimento e a imitação de Jesus Cristo (p. 266-267); 3) a análise da situação (p. 267-268); 4) a consideração das leis locais e dos costumes culturais (p. 268-269); 5) o bem das pessoas envolvidas (p. 269-270); 6) a possibilidade de generalizar sem anular a pessoa (p. 270-271); 7) o pensamento dinâmico da Igreja, na qual os fiéis tomam parte como membros e sujeitos batizados (p. 271-272); 8) a imaginação (p. 273); 9) a vocação pessoal que amadurece em curto, médio e longo prazo (p. 273-274); 10) o prazer do bem e o bem do prazer (p. 274-276); 11) o amor na tríplice dimensão de afeto, comunhão e gratuidade (p. 276-277); 12) a consciência pessoal (p. 277-278).

 

No décimo primeiro capítulo – Amoris laetitia e benignidade pastoral: um novo paradigma hermenêutico (p. 281-305), de autoria da doutoranda em Teologia Moral, Marcela Lapalma, a partir da categoria de benignidade pastoral, são considerados três momentos hermenêuticos:  o autor (p. 285-288); o texto (p. 289-295) e o leitor (p. 296-299). Por meio deles, a autora pretende resgatar o significado da  os três momentos ou fases (que deseja resgatar: a) compreensão, interpretação e aplicação do texto. “Esse movimento, reconhecido como movimento hermenêutico, ajudará a integrar e avaliar uma conclusão final” (p. 284). Buscando associar-se ao espírito renovador da Amoris laetitia, a autora, num primeiro momento relaciona o Papa Francisco a Santo Afonso Maria de Ligório porque observa traços comuns que os unem, ou seja, “ambos partem de uma experiência de conversão, abrindo caminhos inovadores e ousados, mas sedimentados na convicção do amor misericordioso de Deus” (p. 299). Por isso, num segundo momento, todo o documento é lido a partir da categoria da benignidade pastoral, visto ser ele “expressão de benignidade para a própria vida, um caminho criativo e fecundo de realização, de esperança e confiança no amor de Deus” (p. 300). Cada pessoa, identificada “como intérprete que assume sua identidade condicionada, assume um rosto na figura do teólogo moral e, em particular, da teóloga moral. Para eles e, especificamente, para elas, apresenta-se o desafio de unirem-se com coragem para produzir uma proposta ancorada nessa benignidade que perpassa a própria vida” (p. 300).

 

O doutor em História, Sérgio Ricardo Coutinho, é o autor do décimo segundo capítulo, apresentando a Amoris laetitia entre Veritatis splendor e Fratelli tutti ou entre a ideologia de cristandade e uma abertura à história (p. 307-335). Sendo historiador, o autor traça alguns pontos sobre as incompreensões e as resistências à Amoris laetitia e sobre o modo como estas impedem uma mudança na pastoral da Igreja, especialmente acerca dos casais em segunda união. Busca, por isso,  verificar quais são “as disputas de conceitos e as guerras teológicas que remetem à própria recepção do Concílio Vaticano II, vindas daqueles setores, antigos e novos, chamados de ‘tradicionalistas’” (p. 309), confrontando a permanência da ideologia da cristandade e do jusnaturalismo . Um confronto  “entre a permanência da ideologia de Cristandade e do jusnaturalismo em contraposição ao modelo de uma maior abertura da Igreja à história”(p. 309). A sobrevida da ideologia de Cristandade se dá na rejeição ao Vaticano II, no temor da Amoris laetitia e na defesa do jusnaturalismo da Veritatis splendor (p. 309-321), isso porque “para os grupos ‘tradicionalistas’, especialmente os chamados ‘integristas’, há um sinal claro de relação entre Amoris laetitia e Concílio Vaticano II. A relação passa necessariamente por uma questão eclesiológica: ‘de uma Igreja de sempre’ com uma ‘família de sempre’” (p. 309). Uma maior abertura à história e à família cristã / uma combinação entre “eclesiologia” e “família cristã” se dá em Amoris laetitia e Fratelli tutti (p. 321-330). Assim, “diferentemente de se propor uma leitura da Amoris laetitia pelo viés de Cristandade de Veritatis splendor, deve-se lê-la em conjunto com a Fratelli tutti”(p. 323). 

 

O décimo terceiro capítulo (p. 337-351) faz uma homenagem ao Frei Carlos Josaphat Pinto de Oliveira, OP, falecido em 9 de novembro de 2020, após ter completado 99 anos de vida. O doutor em Teologia Moral, André Luiz Bocatto de Almeida, traçando alguns aspectos biográficos do Fr. Josaphat (p. 338-341) e destacando suas principais obras e publicações (p. 341-351), o descreve como o “teólogo do diálogo, do bom humor e do rigor acadêmico” (p. 337), uma das grandes riquezas da Igreja no Brasil.

 

Os desafios da recepção... As reflexões desta obra confirmam que a recepção de Amoris laetitia não se dá por decretos ou assimilação automática. Pelo contrário, a recepção é adesão e processo de construção, é interpretação e tradução, aplicação e assimilação, é discernimento. A recepção significa acolhida dos ensinamentos num processo crítico e criativo que envolve todos os fiéis, a começar por aqueles que ocupam funções pedagógicas dentro da Igreja.

 

“A Amoris laetitia expressa o reconhecimento do primado do Evangelho sobre as expressões doutrinais e normativas – e sobre como a tradição as compreendeu e transmitiu –, pois essas requerem continuamente ser repensadas à luz do Evangelho” (p. 150). Por isso, ela tem atraído admiradores e opositores, suscitado adesão e contraposição, entusiasmo e indiferença: “a recepção da Amoris laetitia, mesmo após cinco anos da sua publicação, tem sido bastante problemática” (p. 100).

 

Conforme renomados especialistas, a proposta de Francisco sofre rejeição no interior da própria Igreja. Isso, infelizmente, contradiz a edificação da unidade interna e do senso de fidelidade ao Pontífice. É preocupante o silêncio que prevalece entre os bispos, as Conferências Episcopais e o clero de um modo geral em relação às propostas de Francisco, pois, na realidade, não são exclusivamente dele, mas expressam tanto o sentir da Igreja – consultada antes dos dois Sínodos que abordaram o tema –, quanto a unidade entre os padres sinodais – que aprovaram o texto final sobre o qual Francisco se debruçou para escrever a Amoris laetitia. Nesse contexto, a rejeição à Exortação Apostólica não deixa de ser rejeição à ação que o próprio Espírito do Senhor suscita na Igreja.

 

Para além das incompreensões e resistências à Amoris laetitia, a sua recepção continuará exigindo e pressupondo trabalho cuidadoso – dos sujeitos, em vista da construção de consensos interpretativos, e de ações conjuntas, em vista da “superação de uma moral fria ao tratar de temas e realidades delicadas [...] a partir de gabinetes de portas fechadas” –, pois os que estão no centro da discussão, são “filhos e filhas de Deus, cada um em sua máxima grandeza e sua máxima pequenez e fragilidade”, todos necessitados de compreensão, perdão, acompanhamento, esperança e integração (p. 70). A Amoris laetitia, “do início ao fim, é um convite para acolher a vida no seu dinamismo de ‘sempre mais’ ou de ‘ir além’, pois a vida não pode ser encaixada numa moldura, visto que sua natureza é de expandir-se, lançar raízes e florescer” (p. 125). Assim, a “Amoris laetitia apresenta-se como um novo convite para ‘ir mais fundo’, ‘ir para onde as águas são mais fundas e ‘lançar as redes para a pesca’” (p. 110).

 

É preciso ir além do moralismo e dos condicionamentos casuísticos. O discernimento moral e a benignidade pastoral não podem mais esperar! Estamos diante de um excelente livro a ser usado com muito proveito por todos aqueles que querem aprofundar e concretizar os objetivos e orientações presentes na Amoris laetitia. As reflexões nele contidas mostram claramente que, para além das incompreensões e resistências que aconteceram ao longo destes cinco anos desde a sua publicação, é fundamental estarmos atentos para que tanto o discernimento moral quanto a benignidade pastoral sejam assumidos “como atitudes imprescindíveis que não podem mais ser apresentadas apenas como expectativas a serem cumpridas num futuro desconhecido” (p. 7).

 

Leia mais