19 Abril 2016
Não raramente, a coisa mais prudente que podemos fazer, em situações de emergência, é, acima de tudo, não ficar imóveis nos próprios hábitos práticos e enrijecidos nos próprios horizontes mentais. Mas a resistência dos hábitos cansados e dos horizontes estreitos é muito forte. Talvez apenas uma "interpretação autêntica de cima" seja capaz de abalá-la: aonde a evidência não chega, a autoridade pode remediar. Em pleno estilo católico.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 17-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Era bastante fácil pensar que as grandes mistificações – já difusas desde o dia dia 8 por parte de renomados ambientes eclesiais sobre o impacto pastoral e teológico da exortação apostólica – teriam vida breve. Afirmar com desenvoltura que "não havia nada de novo" e que todos os 325 números da Amoris laetitia deviam ser interpretados exclusivamente à luz de quatro ou cinco números da Familiaris consortio parecia ser, desde então, uma "linha de resistência" desprovida de qualquer plausibilidade e muito próxima da irresponsabilidade.
Nos dias seguintes, no entanto, essa "leitura" também tinha começado a passar dos jornais e das entrevistas às "práticas pastorais": de fato, tenho notícias confirmadas de que alguns relatores – diante do clero reunidos em dioceses individuais – já teriam valorizado irresponsavelmente essa leitura infundada.
É preciso reconhecer, no entanto, que desde o início uma grande parte da opinião pública, boa parte dos teólogos e dos pastores, em vez disso, tinha destacado as grandes novidades que a Amoris laetitia envolve e tinha se disposto à "conversão pastoral" necessária.
Mas agora o Papa Francisco diretamente vem dissolver as obstinadas resistências residuais. Ao retornar da ilha de Lesbos, durante a costumeira coletiva de imprensa "nas alturas", Francisco respondeu não só às prementes perguntas sobre o sentido da visita e sobre as implicações políticas e humanitárias do seu gesto, mas também sobre as primeiras reações à Amoris laetitia.
Reproduzo aqui, em seguida, o texto, retomando-o do jornal Avvenire e, depois, comento-o:
O texto da entrevista (do Avvenire)
Pergunta - Como o senhor sabe, houve muitas discussões sobre um dos pontos da sua exortação Amoris laetitia: alguns defendem que nada mudou para o acesso aos sacramentos aos divorciados recasados, outros defendem que muita coisa mudou e há muitas novas aberturas. Existem novas possibilidades concretas ou não?
Papa Francisco - Eu posso dizer que sim. Mas seria uma resposta pequena demais. Eu recomendo que vocês leiam a apresentação do documento que foi feita pelo cardeal Schönborn, que é um grande teólogo e trabalhou na Congregação para a Doutrina da Fé.
Pergunta: Por que o senhor colocou em nota de rodapé e não no texto a referência ao acesso aos sacramentos?
Papa Francisco - Ouça, um dos últimos papas, falando do Concílio, disse que havia dois Concílios, o Vaticano II, em São Pedro, e o dos meios de comunicação. Quando eu convoquei o primeiro Sínodo, a grande preocupação da maioria dos meios de comunicação era: os divorciados recasados poderão fazer a comunhão? Como eu não sou santo, isso me incomodou um pouco e me deu um pouco de tristeza. Porque esses meios de comunicação não se dão conta de que esse não é o problema importante. A família está em crise, os jovens não querem se casar, há uma queda de natalidade na Europa que é de chorar, a falta de trabalho, as crianças que crescem sozinhas... Esses são os grandes problemas. Eu não me lembro dessa nota, mas, se está em nota, é porque é uma citação da Evangelii gaudium.
As respostas e o seu contexto
Deve-se dizer imediatamente que essas são as duas últimas perguntas de uma longa entrevista dedicada em 4/5 ao tema da catástrofe humanitária, da tristeza pela desumanidade das condições de vida dos refugiados.
No fim dessas considerações, as duas perguntas sobre o resultado do Sínodo soam quase "estranhas" e "inoportunas". Isso explica também por que, na segunda resposta, o papa insiste justamente em não "perder o senso das proporções" e em não perder as prioridades do texto.
Portanto, a primeira preocupação é recuperar o discurso de fundo, sobre amor, matrimônio e família. Só dentro dessa perspectiva "fisiológica" pode-se captar o sentido da resposta às "patologias".
Mas, ao lado disso, é preciso reconhecer que Francisco admite abertamente três coisas:
a) No que diz respeito à condição dos "divorciados recasados", há novas possibilidades concretas de acesso aos sacramentos;
b) Para entender isso, a referência indicada por Francisco, obviamente para além do texto da Amoris laetitia, é a apresentação do cardeal Schönborn;
c) Sobre a "querela sobre a nota", outro pretexto levantado pelos negadores de toda novidade, Francisco remete a uma citação da Evangelii gaudium, como afirmação já adquirida pelo Magistério.
A afirmação clara e as duas referências
Então, podemos dizer que encontramos nessa entrevista uma afirmação clara e duas referências.
A afirmação clara é de que há novidades concretas, que comprometem a Igreja a uma virada pastoral de discernimento, acompanhamento e integração, não redutível à práxis anterior. Quem ainda quisesse negar isso não poderia fazer isso com a "cobertura" do Papa Francisco. Isso, para que fique claro, ainda é possível, até mesmo para os teólogos que querem assinalam ao Magistério a sua dissidência motivada.
Mas, das duas referências, a da apresentação do cardeal Schönborn parece ser particularmente importante. O que Schönborn tinha dito a esse respeito, no dia da apresentação?
Reproduzo aqui, em seguida, a parte conclusiva do discurso do cardeal Schönborn, que é muito clara:
"Naturalmente, põe-se a pergunta: e o que diz o papa a propósito do acesso aos sacramentos para pessoas que vivem em situações 'irregulares'? O Papa Bento XVI já havia dito que não existem 'receitas simples' (AL 298, nota 333). E o Papa Francisco volta a lembrar a necessidade de discernir bem as situações, na linha da Familiaris consortio (84) de São João Paulo II (AL 298). 'O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus' (AL 305). E o Papa Francisco nos lembra de uma frase importante que ele havia escrito na Evangelii gaudium 44: 'Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades' (AL 305). No sentido dessa 'via caritatis' (AL 306), o papa afirma, de maneira humilde e simples, em uma nota (351), que também pode haver a ajuda dos sacramentos 'em certos casos'. Mas, para esse fim, ele não nos oferece uma casuística, receitas, mas simplesmente nos recorda duas das suas frases famosas: 'Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor' (EG 44) e a Eucaristia 'não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos' (EG 44).
"Não é um desafio excessivo para os pastores, para os líderes espirituais, para as comunidades, se o 'discernimento das situações' não é regulado de modo mais preciso? O Papa Francisco conhece essa preocupação: 'Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma' (AL 308). A ela, ele objeta dizendo: 'Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho' (AL 311).
"O Papa Francisco confia na 'alegria do amor'. O amor sabe encontrar o caminho. É a bússola que nos indica a estrada. Ele é a meta e o próprio caminho, porque Deus é o amor, e porque o amor é de Deus. Nada é tão exigente quanto o amor. Não se pode tê-lo de forma barata. Por isso, ninguém deve temer que o Papa Francisco nos convide, com a Amoris laetitia, a um caminho fácil demais. O caminho não é fácil, mas é cheio de alegria!"
Essas poucas palavras do cardeal Schönborn – que merecem ser lidas na sua integralidade – também ajudam na hermenêutica da nota 351. Ela introduz – humildemente e sem alarde, quase de modo penitencial – a via dos sacramentos como possível "terapia".
Sobre tudo isso, a Igreja deve meditar, mas não para se afanar para negar a evidência de uma mudança, mas para se colocar dentro dessa necessária "conversão pastoral", com toda a lucidez e a prudência necessária.
Não raramente, de fato, a coisa mais prudente que podemos fazer, em situações de emergência, é, acima de tudo, não ficar imóveis nos próprios hábitos práticos e enrijecidos nos próprios horizontes mentais.
Mas a resistência dos hábitos cansados e dos horizontes estreitos é muito forte. Talvez apenas uma "interpretação autêntica de cima" seja capaz de abalá-la: aonde a evidência não chega, a autoridade pode remediar. Em pleno estilo católico.
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Descobrindo a "Amoris laetitia": interpretação autêntica "de cima". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU