01 Junho 2022
“A humanidade está enfrentando a maior reviravolta de sua história com a revolução digital, que apenas começou, e com avanços tecnológicos rápidos como o desenvolvimento vertiginoso da inteligência artificial. E enquanto ele – como todos nós, meros mortais – tem suas falhas, Francisco nos deu alguns roteiros raros e preciosos para navegar nessa ‘mudança de época’ como ele gosta de chamar”, escreve o vaticanista Robert Mickens, em artigo publicado por La Croix International, 27-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A inabilidade da Santa Sé em mediar um fim para a guerra da Rússia contra a Ucrânia, tem deixado muitas pessoas questionando as palavras e ações simbólicas que o Papa Francisco tem empregado em relação ao conflito armado.
Há importantes razões históricas, eclesiais e geográficas para que simplesmente não seja ofício do Pontífice Romano resolver o que está acontecendo entre os dois principais países ortodoxos no Leste Europeu.
Ainda, comentaristas católicos e ocidentais não tem entendido essa realidade.
Não obstante, aquele que ainda criticam Francisco por não nomear a Rússia ou Vladimir Putin, argumentam que – por não identificar claramente o agressor – ele está desperdiçando a sua autoridade moral e a da Igreja Católica no cenário global.
Aqueles que defendem o papa argumentam que ele está realmente salvaguardando essa mesma autoridade, recusando-se a “nomear e envergonhar” o Kremlin e seu líder, preservando assim sua liderança moral, mantendo-se acima do conflito.
Talvez um ou outro dessas visões esteja certo. Mas o perigo em ambas é que elas reduzem a missão do papado em uma arena global para uma simples liderança moral.
Na verdade, nós católicos temos abraçado essa ideia desde pelo menos 1870 com o colapso dos Estados Papais.
Uma vez que o papado romano perdeu quase todo seu poder temporal, a Santa Sé estrategicamente abraçou seu novo perfil como líder moral e com isso conseguiu manter uma característica primordial de seu passado imperialista – reconhecimento legal como um quase-estado.
Isso a permitiu que atualmente tenha relações diplomáticas com 183 estados soberanos e ser membro oficial (ou observador) das mais importantes organizações internacionais e intergovernamentais.
Assim, nós, católicos, passamos a aceitar que o Bispo de Roma age puramente como uma autoridade moral quando entra nos assuntos temporais (não religiosos) do mundo.
Mas existe o perigo de mal-entendido o que isso significa, especialmente quando aplicado ao Papa Francisco, a quem muitos chamam de “líder moral do mundo”.
Em primeiro lugar, de que mundo estamos falando? Não fique chocado, mas a maioria das pessoas que vivem no Planeta Terra provavelmente não tem ideia de quem é o papa ou o que ele faz.
Tome a China como exemplo. Os líderes políticos e cristãos do país comunista sabem muito bem quem é Francisco, mas quantos dos mais de 1,4 bilhão de habitantes da China – a grande maioria deles ateus ou budistas culturais – sabem ou se importam?
Um amigo italiano gosta de contar uma experiência que teve alguns anos atrás com um estudante de intercâmbio chinês em sua universidade que acabava de chegar a Roma para estudar relações internacionais.
Ele levou o visitante à Praça São Pedro e, apontando para o Palácio Apostólico, disse: “É onde mora o papa”. O jovem pareceu intrigado e perguntou inocentemente: “O papa? Ele é o rei da Itália?”.
Depois, há quase 300 milhões de pessoas que vivem na Rússia e nas repúblicas da antiga União Soviética, compostas principalmente por cristãos ortodoxos e muçulmanos.
Quantos deles sabem alguma coisa sobre o papa? Entre aqueles que o fazem, a maioria deles (especialmente os ortodoxos) provavelmente não tem uma visão favorável dele.
O ponto é que quando nós ocidentais falamos sobre “o mundo inteiro”, tendemos a fazê-lo pensando de uma maneira eurocentrista ou ocidental-centrista.
Por exemplo, os líderes das nações da OTAN afirmam que o “mundo está unido” contra Putin e sua invasão da Ucrânia.
Mas a China, o Sul Global e algumas das maiores nações do mundo – Brasil, Índia, Bangladesh e Paquistão, para citar alguns – se recusaram a participar das sanções que os Estados Unidos e seus aliados aplicaram contra a Rússia.
Portanto, devemos ter cuidado ao chamar o papa de líder moral do mundo.
Depois, há um problema do que se pretende – e entendido – ao chamá-lo de líder moral.
Mais uma vez, a resposta provavelmente depende de onde uma pessoa nasceu e cresceu e se ela ou ele foi criado em uma tradição de fé, entre outros fatores.
Muitas pessoas nos Estados Unidos, por exemplo, tendem a identificar a palavra “moral” com o que é comportamento correto ou lícito e muitas vezes aplicam o adjetivo de forma redutiva à conduta sexual.
Nem todo mundo faz isso, é claro, mas pode-se argumentar que a maioria das pessoas nesta nação – muitas das quais ainda têm fortes conotações puritanas – enquadram a moralidade em termos que são preto e branco.
E a psique coletiva nos EUA, como em países de todo o mundo, muitas vezes confunde seus próprios interesses nacionais, objetivos e modo de vida com o que é moral.
É assim que – novamente usando os Estados Unidos como exemplo – um país pode reivindicar ser religioso e temente a Deus quando uma grande parte de seu povo defende o direito de os cidadãos terem armas de assalto de estilo militar?
Há um perigo em ver o papa – especialmente o Papa Francisco – como um líder moral mundial. Na verdade, é muito reducionista.
Também torna muito fácil descartar a verdadeira “revolução” que ele vem tentando provocar durante seus mais de nove anos como “chefe da Igreja Católica Romana” – a pecha que a Al Jazeera colocou na tela para identificar Francisco porque, obviamente, nem todo o público global da rede sabe quem ele é!
Lembre-se do que o papa de 85 anos disse naquela entrevista abrangente e de grande sucesso que ele deu apenas alguns meses após sua eleição. “A primeira reforma deve ser a atitude”, insistiu.
Foi no contexto da reforma da Igreja e seu ponto era que deve haver uma mudança de mentalidade para que quaisquer mudanças estruturais realmente se enraízem.
Mas a ideia do que muitas vezes chamei de “programa de ajuste de atitude” do papa também pode ser aplicada a coisas fora da Igreja, como proteger o meio ambiente, lidar efetivamente com questões de migração, criar um sistema econômico mais humano e justo, renunciando ao recurso à violência armada e assim por diante.
Francisco não reduz nenhuma dessas questões a meras questões morais, que muitas vezes são mantidas cativas a interesses sectários e visões partidárias que dividem o mundo – em todos os seus aspectos – em bem e mal, certo ou errado, nós contra eles...
Não, o papa argentino é impressionantemente não sectário.
Suas encíclicas e todos os seus principais escritos são um esforço para ajudar todas as pessoas, qualquer que seja sua raça ou religião, que somos uma família humana e que nossa diversidade deve ser valorizada e respeitada; que é possível harmonizar criativamente essa diversidade e que o mundo pode ser unido desta forma.
Chame isso de posição moral, se quiser, mas não confunda com uma “moralidade” estritamente baseada em regras, da qual o papa parece desconfiar muito.
Francisco tem nos repetido várias vezes durante todos esses anos que tudo (e todos) está interligado.
Ele nos lembra continuamente que nós humanos somos apenas uma parte de toda a criação, rejeitando o antropocentrismo que o mundo ocidental (especialmente) colocou no centro de sua ética e até usou para defender sua destruição do planeta.
Volte e medite cuidadosamente sobre o que ele escreveu em Laudato Si' (“Sobre o cuidado da casa comum”), Fratelli tutti (“Sobre fraternidade e amizade social”) e até mesmo Evangelii gaudium (“Sobre o anúncio do Evangelho no mundo de hoje”) e você verá por que chamar o Papa Francisco de líder moral do mundo não faz justiça ao que ele realmente está fazendo.
A humanidade está enfrentando a maior reviravolta de sua história com a revolução digital, que apenas começou, e com avanços tecnológicos rápidos como o desenvolvimento vertiginoso da inteligência artificial.
E enquanto ele – como todos nós, meros mortais – tem suas falhas, Francisco nos deu alguns roteiros raros e preciosos para navegar nessa “mudança de época”, como ele gosta de chamar.
Estas não são diretrizes morais. Em vez disso, eles formam um projeto radicalmente humano e intensamente relacional (trinitário) para o caminho a seguir.
Nós os ignoramos, como eles dizem, por nossa conta e risco.
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Os perigos de definir o Papa Francisco como o “líder moral do mundo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU