03 Mai 2022
“A guerra da Ucrânia lança luz sobre as sinistras devoções teopolíticas dos antiliberais convertidos. Mesmo que Francisco tenha trabalhado para enfrentá-los, seu pontificado não durará para sempre. Caberá aos defensores do catolicismo do Vaticano II combater os esforços da extrema-direita católica (nos Estados Unidos e em outros lugares), que busca vincular a ênfase na moralidade com o etnonacionalismo e o autoritarismo político. Ao mesmo tempo, a guerra força a autocrítica entre os católicos progressistas, cujos horizontes podem agora estar obscurecidos. As visões de uma utopia pós-conciliar devem ser deixadas para trás; devemos admitir um pouco da ingenuidade do próprio Vaticano II”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por Commonweal, 29-04-0222. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Desde o início da guerra brutal da Rússia contra a Ucrânia, a Igreja Católica parece ter tido dificuldades em responder aos desafios diplomáticos que se apresentam. Aqui estamos nós, no meio de um dos mais sérios e perigosos (se não o mais perigoso) conflitos desde 1945. Mas o Vaticano – em vez de se basear, digamos, no exemplo corajoso do Papa João XXIII em ajudar habilmente as negociações para desarmar a crise dos mísseis cubanos há 50 anos – parece dar mais importância às imagens. Isso foi evidente na ênfase sobre o visual da Via Crúcis na Sexta-Feira Santa em Roma.
Em 1962, as poucas palavras que vieram do Vaticano foram mensuradas e focadas; sua diplomacia não hesitou às demandas do circo midiático. Mas a escolha do Papa Francisco para ter uma mulher da Ucrânia e uma da Rússia rezando juntas na 13ª Estação no 15 de abril resultou desnecessária, uma polêmica evitável. Verdade, isso era para parecer um gesto profético. Mas falhou em considerar como a linguagem da reconciliação – a qual foi incluída no “roteiro original” para o evento, com a inclusão de duas mulheres – parecia ser percebida como uma imposição sobre a Ucrânia, logo após as covas comuns e as evidências de possíveis crimes de guerra terem sido descobertos em Bucha e demais locais. Isso parecia trair como a linguagem da “irmandade” entre os povos russos e ucranianos carregam ecos da era soviética. No fim, as duas mulheres – que trabalham em um hospital de Roma – caminharam juntas com a cruz, enquanto os participantes foram convidados a ficar em “silêncio meditativo” e rezar em seus corações pela paz no mundo.
No dia seguinte, o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, restaurou a ordem nas relações entre a Santa Sé e os representantes ucranianos. Mas o dano estava feito, e isso ampliou a distância entre esse pontificado e grandes partes do Catolicismo do Leste Europeu e sua diáspora. É verdade que o Vaticano caminha em uma corda-bamba diplomática, mas, ao fazê-lo, cada vez mais corre o risco de desenhar equivalência moral entre a Rússia e a Ucrânia. Talvez isso é o que acontece quando mesmo a diplomacia pode ser moldada por sua percepção nas redes sociais, e quando autoridades – ou oportunistas – agem mais como influencers que diplomatas. Ainda, o dilema do Vaticano não pode ser atribuído simplesmente aos problema com a comunicação. A guerra de Putin exige que a Santa Sé elabore uma nova doutrina para as relações internacionais, que não adere à Ostpolitik de décadas atrás. A era da Guerra Fria nunca viu um conflito europeu como este, em que o agressor expressou a intenção genocida de negar o direito dos povos ucranianos existirem. Exceto por noções de longo prazo como uma Igreja mais global e menos europeia, e, ao mesmo tempo, uma Igreja menor e mais evangélica, Roma realmente não teve uma estratégia sobre o que acontece na Igreja e nas relações entre as igrejas internacionalmente.
Mas mesmo assim, a crise sinaliza algo mais: o crepúsculo do paradigma político e teológico da Igreja Católica. Se pensarmos no progressismo católico como uma das “famílias culturais coletivas” do mundo, podemos ver como a guerra está desafiando as suposições (ou talvez as ilusões) que adotou após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. Esse progressismo tem sido caracterizado por uma coleção de impulsos benevolentes dos quais pessoas razoáveis não poderiam discordar: paz, expansão de direitos para indivíduos e comunidades, respeito ao planeta, fraternidade universal e assim por diante. Mas a guerra, pode-se dizer agora, trouxe a História de volta à Europa.
Algo semelhante pode ser dito sobre a temporada de sessenta anos da Igreja pós-Vaticano II. Pensávamos que tínhamos deixado para trás a era dos grandes conflitos. Embora alguns dos antigos regimes políticos e religiosos persistissem, sua influência e impacto pareciam diminuir: eles não iriam mais determinar o futuro. Na verdade, parecia que um novo mundo havia chegado. Agora temos que nos perguntar se essa esperança foi mal colocada. Talvez o domínio da ordem do velho mundo fosse mais forte do que sabíamos, ou pelo menos mais forte do que o sonho de construir uma nova Igreja no mundo.
Nos últimos anos, os espaços de diálogo foram sobrecarregados ou desapareceram, tanto na política quanto na Igreja: as decisões são tomadas em lugares inacessíveis ou difíceis de localizar. A sinodalidade ainda pode trazer mudanças reais para a Igreja, a longo prazo. Mas parece que perdemos a paciência (e a obediência) que caracterizou as gerações de Chenu, Congar, de Lubac, Rahner e dos estudiosos, sacerdotes e monges que me treinaram. Agora parece que o romantismo ou a visão gerencial são as únicas opções para pensar o passado e o presente da Igreja; caminhar sozinho (ou sair) parece ser mais popular do que “caminhar juntos”, ritmo do processo sinodal.
Ainda assim, em uma nota positiva, Roma demonstrou alguma sabedoria durante esta crise. Francisco está tentando salvar a Igreja Católica do perigo mortal para o qual Bento XVI e a elite que ele nomeou estavam cegos: cair na mesma armadilha civilizacional que a Igreja Ortodoxa Russa caiu na década de 1990. Ao contrário do Patriarca Kirill de Moscou (e de alguns cardeais católicos), Francisco se recusa a ver a Igreja rebaixada a um refúgio ideológico, seja para românticos ou cínicos, da massa de identidades coletivas que se formaram durante a Guerra Fria.
Andrea Graziosi, um dos grandes historiadores italianos e especialista da Rússia e da Ucrânia no século passado, escreveu recentemente que “a crise do nosso Ocidente, visível nos anos setenta e depois oculta pelo triunfo de 1991, foi na primeira década do nosso século visível para todos, incluindo Putin”. A crise da Igreja também é visível para todos desde o início deste século. Nesta mudança de época, a Igreja Católica, o Vaticano e o papado ainda estão tentando encontrar um papel. Poderíamos pensar em Bento como o último papa da velha era e em Francisco como o primeiro papa de uma nova era. Um paralelo político pode ser as presidências de George W. Bush e, na nova era, de Barack Obama. Mas então todos nós sabemos quem seguiu Obama. Devemos, portanto, estar atentos ao que pode acontecer na Igreja Católica.
É uma questão importante, dada a confusão dos esforços diplomáticos e de relações internacionais em relação à Ucrânia. A guerra está tendo um impacto maior na Igreja do que, digamos, o 11 de setembro. Em 1991, o Vaticano já entendia como a primeira guerra do Iraque afetaria as relações entre o cristianismo e o islamismo globalmente, e o que as guerras dos EUA no Oriente Médio poderiam significar para a região (neocons americanos, incluindo neocons católicos, podem ter se beneficiado de tal previsão na época). Mas agora, o legado da Ostpolitik pós-conciliar, a ideia de João Paulo II da unidade do continente europeu “do Atlântico aos Montes Urais”, o lamento de Bento XVI sobre as “raízes cristãs da Europa” – tudo isso parece ultrapassado. O regime de Putin, apoiado pelo Patriarca de Moscou, nos obriga a considerar se as categorias e abordagens que outrora nos ajudaram a interpretar o século XX não são mais válidas.
A crise de confiança dos líderes católicos na condução do Vaticano da guerra russa na Ucrânia é o resultado do nacionalismo crescente na Europa, mas também reacende as queixas católicas orientais que estavam sob controle há muito tempo. E também apresenta uma espécie de emergência teológica em cima da paralisia institucional do catolicismo romano: o escândalo dos abusos, o colapso iminente do sistema clerical, a negligência ou desprezo aos problemas eclesiais (por exemplo, mulheres na Igreja). Questões-chave foram colocadas à hierarquia da Igreja, e com mais coerência teológica do que hoje, pelo menos cinquenta anos atrás, antes que o pós-modernismo tornasse tão árduo o próprio conceito de reforma. Agora pode ser tarde demais.
A guerra também lança luz sobre as sinistras devoções teopolíticas dos antiliberais convertidos. Mesmo que Francisco tenha trabalhado para enfrentá-los, seu pontificado não durará para sempre. Caberá aos defensores do catolicismo do Vaticano II combater os esforços da extrema-direita católica (nos Estados Unidos e em outros lugares), que busca vincular a ênfase na moralidade com o etnonacionalismo e o autoritarismo político.
Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia força o autoexame entre os católicos progressistas, cujos horizontes podem agora estar obscurecidos. As visões de uma utopia pós-conciliar devem ser deixadas para trás; devemos admitir um pouco da ingenuidade do próprio Vaticano II (por exemplo, sua concepção de martírio e mártires apenas como algo do passado). Um progressismo ingênuo pós-Vaticano II antecipou inconscientemente a tese de Fukuyama de “fim da história”. Mas agora deve contar com essas ilusões, tanto nas relações internacionais quanto na Igreja.
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Ucrânia, o Vaticano e o Vaticano II: a guerra apresenta desafios à Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU