09 Mai 2022
Vivemos um momento de grande confusão, “que afeta inclusive o Papa Francisco”, que mantém uma postura bastante equidistante entre os protagonistas da guerra na Ucrânia: “Ele tenta demonstrar que não nem de uma parte nem de outra” com a esperança de conseguir uma saída negociada. Uma postura que “corre o risco de criar uma confusão histórica para a Santa Sé”, segundo explica Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, com Bento XVI e Francisco.
A entrevista é de Álex Rodríguez, publicada por La Vanguardia, 07-05-2022. A tradução é do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
O Papa disse na conversa com o diretor do Corriere della Sera, posteriormente autorizada pela Santa Sé, que os ‘latidos da OTAN nas portas da Rússia” talvez levaram Putin a reagir mal e desencadear o conflito. “Uma ira que não sei se foi provocada, mas, parece que sim, facilitada. Segundo o senhor o que o Papa insinua?
É bastante evidente o que o Papa quis dizer. Ele reflete pensamento pessoal do Pontífice e é evidente que é uma crítica às duas partes que estão em conflito, apesar de que Francisco tem muito claro quem é o agressor e quem é o agredido. Acredito que o Papa ainda espera uma solução negociada que, por outra parte, é a única saída do conflito, porque é difícil que esta guerra termine com um ganhador.
Posicionando-se desta maneira, quase com equidistância, o Papa tenta demonstrar que não está nem de uma nem de outra parte. Mas desta forma o risco é que coloque numa confusão diplomática e histórica Santa Sé, por como será julgada no futuro por sua posição neste conflito. É o que passou com Pio XII na Segunda Guerra Mundial, frente ao extermínio dos judeus, que, sem dúvida, foram protegidos pelo Papa mas sem denúncias públicas.
Sim, porque a doutrina da Igreja sustenta que pode haver uma guerra justa ou defesa justa quando um país é agredido. Não é o caso da Rússia, que invadiu a Ucrânia. Ou é o que Francisco quer dizer quando fala dos latidos da OTAN?
Este é o ponto mais crítico evidentemente, porque nunca um Papa se expressou de maneira tão clara politicamente, apesar que repita que não quer se meter em política e que não entende muito dela. Creio que é uma tentativa de favorecer o diálogo, mas é uma tentativa desesperada porque, no momento, não se vê como se pode sair deste beco.
Acredita que o Papa está de acordo com Lula, que considera Zelenski tão culpável pela guerra como Putin?
A mentalidade com a qual um sul-americano julga estes acontecimentos é comum. Digamos que se nota uma distância destes países com esta nova tragédia europeia, que no entanto afeta o mundo inteiro.
Mas a equidistância de Francisco tem matizes...
Sim, porque também denunciou com palavras muito claras as barbaridades e atrocidades cometidas pelos russos. Até na conversa com o Corriere della Sera evocou a situação de Ruanda, um verdadeiro genocídio. E é evidente que os ucranianos não são culpados desta matança.
E com nome e sobrenome.
Nunca nomeara nestes meses nem os russos nem Putin. Agora é a primeira vez que o faz. Disse que Kirill não deve ser o coroinha de Putin, que os homens de Igreja não devem ser como os políticos. Ele busca caminhar por uma via muita estreita, mas esta via é cada vez mais estreita porque a situação bélica parece não ter uma saída imediata. Há analistas que preveem três anos de guerra, algo tremendo depois de dois anos de pandemia. Se é assim, os efeitos serão impensáveis.
Talvez por isso expressou várias vezes em público seu desejo de se reunir com Putin para pedir que pare a guerra. Também se oferece como mediador e ir pessoalmente a Kiev se sua presença resultasse útil...
Sim, mas Putin já lhe disse que não. Além disso, a postura da Santa Sé e pessoalmente do Papa tem razões ecumênicas de não romper com o patriarcado de Moscou. Contudo, suas declarações sobre Kirill foram rechaçadas pelos próprios russos. É compreensível, porque nunca houve uma denúncia tão clara do que se chamava de cesaropapismo, ou seja, a obediência do poder religioso ao poder civil, o que não é uma novidade na tradição oriental em geral e russa, especialmente. Mas uma denúncia tão forte não se conhecia.
É surpreendente que revele uma conversa privada com Kirill de um mês e meio atrás e o faça para lhe dizer que, a seu juízo, se converteu num coroinha de Putin.
Sim, sim. Julga-o de maneira muito clara. É muito difícil avaliar esta conversa, que de fato provocou desconcerto. Afirma-se que se trata de uma tentativa de busca do equilíbrio, mas o resultado, no momento, não é este.
No momento se cancelou o encontro do Papa com o Kirill em Jerusalém no próximo dia 14 de junho, agora recuperar as pontes de diálogo entre as igrejas cristãs católica e ortodoxa russa parece ser muito complicado...
Além disso, o mundo ortodoxo se fragmentou completamente. Uma crise que vinha gestando desde tempos atrás. Basta lembrar que em 2016 o Patriarcado de Moscou não participou no Concílio Pan-Ortodoxo e que incrementou uma política expansionista muito agressiva no território canônico do Patriarcado de Alexandria, ou seja, na África. Mais ainda, não tem relações desde muitos anos com o Patriarcado da Ortodoxa, que é Constantinopla, que criticou com dureza a invasão russa...
E o mesmo mundo ortodoxo russo está dividido. Há declarações muito críticas de antigos colaboradores de Kirill. Está se delineando um perfil de Kirill muito complicado, que se conhecia mas que nunca fora tão evidente. É o perfil de um homem rico que oferece a Putin uma ideologia, um suporte teológico a este renascimento imperialista. É a doutrina do ‘mundo russo’, que inclui a Bielorrussia e a Ucrânia. Putin declarou reiteradamente que a Ucrânia não existe, que é uma invenção de Lenin. Segundo ele, é preciso retornar, em parte, ao Império czarista dos Romanov e, de outra, voltar à época de Stalin. E esta visão é apoiada por Kirill.
Entramos no final de um Pontificado?
Nunca se sabe. Depois de nove anos, efetivamente a idade do Papa obriga que se fale de uma fase final, que, no entanto, pode durar anos... O Pontificado entrou numa nova época com a viagem ao Chile, em 2018, quando houve os graves problemas e erros na gestão dos abusos. No início estalou a pandemia, e o próprio Papa reconheceu que a viveu muito mal, e agora vem esta guerra.
Uma guerra quando Francisco tem 85 anos, num momento com uma saúde delicada e numa situação crítica com várias frentes abertas, como o escândalo dos abusos sexuais, o clericalismo, a reforma da cúria... O senhor acredita que Francisco vendo que não pode cumprir sua missão pastoral renunciaria, como fez Bento XVI?
Acredito que ele não renunciaria. Nem João Paulo II o fez.
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“O Papa corre o risco de criar uma confusão histórica para a Santa Sé”. Entrevista com Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU