09 Mai 2022
"É preciso construir uma cultura que promova a consciência e o gosto pela unidade humana, que coloque os povos acima dos Estados, que gere uma reforma da ONU e um constitucionalismo mundial – que já se havia começado - para que armas e exércitos sejam reduzidos, bens fundamentais sejam tornados públicos, direitos sejam afirmados para todos e efetivados por instituições supraestatais adequadas de suplência e garantia", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 08-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Primeira vítima e intérprete do warshow que, enquanto estávamos sonâmbulos (Limes), invadiu nossas vidas, Zelensky fez uma proposta sensacional: vamos acabar com a guerra.
A proposta (se não for revogada) é voltar à situação de 23 de fevereiro de 2022. Isso significa: se queremos viver o presente e talvez ter um futuro, vamos agir como se o passado, ou seja, essa terrível guerra, não tivesse existido. Mas o passado não pode ser removido; o que, em vez disso, é possível fazer, como disse certa vez o sábio e desafortunado Gorbachev, é que os mortos não segurem os vivos pela mão, ou seja, que não nos deixemos determinar pela trágica guerra vivida.
Mas então por que a fizemos? Se pensarmos que bastaria reconhecer a Crimeia, que com o referendo voltou à Rússia, uma Ucrânia inofensiva não incluída na OTAN, o exército com o Z parado na fronteira e talvez a autonomia dos acordos de Minsk, garantidos por Merkel e Macron, por que a escolha mortal de jogar a Ucrânia na dor de todos e no desespero dos pobres e do mundo à beira de uma guerra nuclear?
A questão é arrasadora; no entanto, como está escrito na carta que já conta com milhares de assinaturas em que pedimos ao papa para enviar Merkel a Biden e Putin para mediar um acordo político, o que é preciso hoje não é distribuir os erros e as razões, mas reprogramar uma história que contemple a coexistência de todos e não exclua ninguém, nem Estados nem povos.
A combinação disposta ("a operação") que levou à guerra de fato "desviou o curso da história", inaugurando "um caminho de tréguas interrompidas, certamente não de verdadeira paz", em que "serão reescritos os equilíbrios de forças em escala global”, como explica Limes na edição intitulada “Fim da Paz” que não pode ser arquivada mesmo que outras a tenham seguido. De fato, se esta é a linha que divide duas épocas, estamos ali, no limiar da primeira trégua, e devemos decidir tudo sobre como queremos continuar; isto é, todos nós temos que decidir tudo.
Claro que podemos fazer isso apenas na esfera do decidível, que pode incluir o estabelecimento da paz apenas se rejeitarmos a ideia, que ao contrário nos é dada como certa, de que "a guerra é inata no homem". Se não o for (e seria estranho que o orgulhoso Ocidente se considerasse inabilitado para decidir sobre o que mais importa) é professado por todos que devemos nos libertar da guerra, especialmente da warshow, como a partir desta serão todas as futuras guerras paramundiais, com exceção daquela nuclear que, por outro lado, não poderá ser filmada por ninguém. Mas, entretanto, hoje o tabu da guerra nuclear parece ter caído.
A libertação da guerra, em vez da luta para "estabelecer um vencedor único e definitivo" para a dominação do mundo, como nos imputam os chineses, seria certamente uma revolução, maior do que todas as outras, daquela estadunidense à francesa e à de outubro, que também foram possíveis.
Mas, para uma última citação de Limes, que parece derrubar a inquietante previsão de todo o dossiê, diremos que a revolução só é possível se for concebida e desejada, como sugere a "prosa profética" de Anna Maria Ortese, como "a libertação dos outros". Os outros são, em primeiro lugar, os outros povos, “os povos mudos desta terra”, aqueles interessados em viver, não em digladiar-se pelo poder.
A decisão a tomar é, portanto, a partir de agora, libertar os outros da guerra, dos campos de concentração, da fome, da pobreza, da privação da dignidade e do trabalho, da perda da política, do dever de fugir e das migrações forçadas, da doença e da falta de cuidados, do recrudescimento do clima, da instabilidade ecológica e da devastação da Terra.
Mas por que a liberação dos "outros", por que essa troca com os outros, por que esse cuidado, impossível sem amor, pelos outros? Porque só assim podemos nos salvar.
Para isso, é preciso construir uma cultura que promova a consciência e o gosto pela unidade humana, que coloque os povos acima dos Estados, que gere uma reforma da ONU e um constitucionalismo mundial – a que já se havia começado - para que armas e exércitos sejam reduzidos, bens fundamentais sejam tornados públicos, direitos sejam afirmados para todos e efetivados por instituições supraestatais adequadas de suplência e garantia.
Se esta for a agenda, então envolve a todos. E, portanto, se for possível escrever isso em um artigo de jornal, quem renunciou a todo empenho deve assumi-lo, quem parou de estudar volte a fazê-lo, quem deixou a política deve retornar, quem desmantelou os partidos que os construa, quem serviu a senhores iníquos se liberte e quem fechou, reabra.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Libertar-nos do “warshow” para depois nos salvar. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU