Atribuir a paz à realidade e a guerra à ideologia

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02 Mai 2022

 

Uma colossal mobilização de armas e recursos se concentra sobre a guerra, num embate entre determinações cada vez mais explícitas, às quais tudo o mais é sacrificado. Evapora a possibilidade de negociações, ainda que parciais. A lama seca na Ucrânia.

 

O artigo é de Francesco Strazzari, professor de relações internacionais na Sant’Anna School of Advanced Studies, Pisa, Itália, publicado por il manifesto, 01-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

E cada um pensa em poder ganhar lutando. Assim, o secretário-geral da ONU deixa a cena entre os mísseis, aquele da OTAN fala de guerra por anos, e no parlamento inglês - o berço da democracia - a ideia de suporte terrestre é evocada. Nada parece parar a guerra: estamos em plena escalada, chegamos lá pela lógica da realidade destacada justamente por aqueles que foram tachados de idealismo pacifista. O impulso para a escalada também diz respeito aos objetivos: reduzir a capacidade da Rússia de causar danos no futuro - objetivo evocado pelo secretário de Defesa Austin durante sua visita a Kiev - na verdade nos projeta em um cenário muito diferente daquele da contribuição para pôr um fim à agressão.

 

Com certeza, diante do afluxo de armas cada vez mais pesadas e sofisticadas, até agora a escalada de intensidade tem sido relativa: cada vez mais destruição de infraestruturas, mas os russos até agora não se impuseram e a eficácia da sua ação militar continua a levantar dúvidas. No entanto, a guerra muda: o general Gerasimov, ex-chefe das forças armadas, está chegando ao teatro ucraniano, enquanto circulam rumores de uma mobilização geral. Nos talk shows da televisão russa, péssimo reflexo dos nossos igualmente péssimos, praticamente os cenários nucleares são evocados todos os dias, especulando sobre a incineração das capitais europeias.

 

Há anos Rússia e Estados Unidos estão empenhados na modernização de seus arsenais nucleares, com dificuldades significativas em termos de controle de armamentos. Ainda ontem, Moscou chamou o diálogo estratégico de 'congelado'. Moscou e Washington detêm mais de 90% das ogivas nucleares do planeta: aquelas montadas em misseis balísticos intercontinentais podem ser lançadas em 15 minutos após a ordem presidencial.

 

Moscou, Rússia. (Imagem: Google Maps)

 

No início da Era Putin, a Rússia embarcou em um programa que levou a testar vetores hipersônicos: como os chineses e estadunidenses, trata-se de um problema sério para os mecanismos de dissuasão. O Kremlin dispõe cerca de 14.000 armas nucleares (a maioria não imediatamente utilizáveis), enquanto se estima que possa mobilizar 16.000 armas nucleares táticas por mar ou no campo de batalha. Em contraste, os Estados Unidos têm cerca de 3.750 ogivas (150 na Europa, incluindo a Itália).

 

A partir de 2020, a Rússia tornou pública a própria doutrina nuclear, substancialmente ancorada à ideia de emprego em condições de ameaça para a existência do Estado. Desde então, Putin evocou repetidamente o uso de bomba atômica, exaltando a destruição do arsenal russo. O ministro das Relações Exteriores Lavrov recentemente rejeitou a ideia, difundida no Ocidente, de que a Rússia pretende alimentar a escalada por meio de referências à energia nuclear com o único propósito de induzir uma diminuição do conflito convencional. Aqui se repropõe o paradoxo da lógica nuclear: a dissuasão só funciona na medida em que as ameaças parecem muito credíveis, isto é, legíveis num quadro coerente, de forte determinação e na ausência de hesitações. Isso alimenta a escalada na retórica pública. Em outras palavras, conta o convencimento e, portanto, a dimensão ideológica da guerra. Não aparecem hoje razões racionais para que a Rússia, dada a configuração da guerra em andamento, poderia cruzar racionalmente o limiar do uso de armas nucleares táticas. No entanto, estamos diante de um invasor que já errou os cálculos e que com crescente insistência evoca o tema da existência da nação russa, representada como ameaçada pelos interesses e valores do Ocidente.

 

Desde o início da invasão da Ucrânia, a mensagem do Kremlin é simples e orientada a inibir a reação internacional: fiquem longe da operação na Ucrânia ou terão que enfrentar o risco de uma escalada com implicações nucleares. Diante dessa premissa e do risco existencial que o Kremlin assumiu, negociar com a Rússia significa tocar alguns dos princípios cardeais da ordem internacional. Especialmente na presença de graves crimes de guerra, negociar o destino das regiões conquistadas com a força será extremamente difícil: talvez pior só seria pensar que a vitória está atrás da esquina se a destruição for maior e mais demorada.

 

Além disso, desde 2008, quando anexou os territórios da Abkhazia e da Ossétia do Sul, Putin tem sido claro sobre o precedente da independência de Kosovo em relação com os "muitos Donbas" que existem no antigo espaço soviético. Apesar desta insistência, nestes 14 anos a Rússia nunca reconheceu a independência do Kosovo, nem - pelo menos até agora - a da própria Transnístria.

 

Ossétia do Sul, Geórgia. (Imagem: Google Maps)

 

Kosovo (Imagem: Google Maps)

 

Não emerge, em essência, uma verdadeira doutrina Putin sobre independências e anexações, talvez também para não contrariar a China e a Índia, envolvidas com suas próprias questões separatistas. Em vez disso, emerge cada vez mais uma retórica 'contra a opressão neocolonial ocidental' que paradoxalmente hoje é candidata ao expansionismo russo, justamente quando coloca à ferro e fogo a Ucrânia como se fosse uma província rebelde, para desafiar o Ocidente liberal-democrático também em nome de outras potências regionais. Esta dinâmica é insidiosa para a Europa.

 

Transnístria, Moldávia (Imagem: Google Maps)

 

Ver os mercenários russos do Wagner aclamados como libertadores na África, cavalgando a impopularidade dos ocidentais enquanto abrem fogo contra civis, nos fala da urgência de a Europa se libertar das políticas de dois pesos e duas medidas filhas dos mais controversos processos de (des)colonização (incluindo os Territórios Palestinos ou as ocupações militares turcas em nome da ideologia neo-otomana). Em outras palavras, ela nos fala como seja necessário investir materialmente na paz: atribuir a paz à realidade e a guerra à ideologia.

 

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