O giro da Rússia para a Eurásia e o Brasil com isso

Representantes dos países dos BRICS reunidos em 2019 | Foto: Alan Santos - PR

06 Abril 2022



Lavrov na China e Índia indica o novo polo de poder global e nos coloca a questão: qual será a posição do nosso País no BRICS 5G?

 

O artigo é de Carlos Tautz, jornalista e doutorando em História na UFF, publicado em seu blog, 30-03-2022.

 

Eis o artigo. 

 

Em sua primeira viagem para fora da Europa após a invasão da #Ucrânia, #SergeiLavrov, o Ministro das Relações Exteriores da #Russia, visita nesta semana #India e #China, países que são o eixo principal das relações globais russas e que, sintomaticamente, não ratificaram na #ONU as cinco (até 30/03) propostas de #sanções dos #EUA e da #UniaoEuropeia contra #Moscou por conta da guerra.

As pautas principais de Lavrov nesta viagem são a adoção do sistema comum de compensações financeiras por fora do #Swift (o sistema de trocas entre 11 mil bancos de mais de 200 países, criado em 1973, sediado na Bélgica e que usa o dólar como moeda de referência); a venda de altos volumes de gás natural e o seu pagamento em rublos russos, yuans chineses e rúpias indianas; e a continuidade das exportações de armas russas para #NovaDeli – a Rússia é o principal parceiro da Índia nessa área.

A ação de #Lavrov marca a opção, há muito planejada, de um giro geopolítico de Moscou, em que a União Europeia (UE) perde para uma ampla região do globo chamada de Eurásia a primazia das relações estruturantes da Rússia - nos campos energético, financeiro e militar, que distanciará ainda mais os três países da outrora hegemonia global dos EUA.

A viagem do Ministro chave de Vladimir #Putin reforça laços com os dois gigantes territoriais - com quem a Rússia divide fronteiras extensas - e alivia a pressão exercida por #Washington para que a Nova Déli se converta em mais um polo asiático de contenção de Moscou e que Beijing ceda nas disputas comerciais, tecnológica e militar com os estadunidenses.

 

O primeiro mês da nova ordem global

 

O 25 de março passado marcou o primeiro mês da invasão da Ucrânia pela Rússia e o estabelecimento de novos contornos na condução de alguns estados que provavelmente indicarão os rumos da geopolítica global nas próximas décadas.

 

São estes os principais contornos:

1. o mais importante: a confirmação do fim da hegemonia única, imperial e global dos EUA, que se mostraram incapazes de cumprir a autoprojeção de #unipolaridade e que estão imersos em tremendas contradições de classe, que podem chegar ao ponto - se é que já não chegaram... - de serem incontornáveis;

2. A inutilidade da UE como polo de acumulação frente ao dólar; como colchão de disputas internas; e como eterno elemento de contenção da Rússia - hoje melhor preparada para enfrentar os EUA até do que esteve durante o auge da fase das ideologias antagônicas da Guerra Fria (1945-91);

3. A retomada da disputa geopolítica global em pelo menos dois polos. De um lado, a #Rússia-China e a sua mútua "amizade sem fim", conforme longo e profundo comunicado conjunto emitido na antevéspera dos Jogos Olímpicos de Inverno, ocorridos em fevereiro passado em Beijing; e, do outro, os EUA, cindido politicamente, e que correm o risco de o parvo Joe Biden ser fragorosamente derrotado em 2024 pelo supremo representante das catacumbas ideológicas Donald Trump;

4. A futura consolidação da #Eurásia como novo polo de acumulação e irradiação de poder energético-financeiro-militar, tendo como centro dinâmico a relação sino-russa-indiana, coração do grupo de países #BRICS, integrado por #Brasil, Rússia, Índia, China e #ÁfricadoSul.

 

A unipolaridade centrada nos EUA mostrou-se inviável e abriu espaços para países que já centralizaram e concentraram pesadamente suas economias, criando burguesias internas capazes de enfrentar as burguesias centradas nos EUA e na UE. Levando, assim, as subpotências regionais a se encaixarem nas brechas da nova #divisãoglobaldotrabalho e a acomodar interesses dessas burguesias e de frações de suas classes trabalhadoras. Entre essas subpotências estão o Brasil, a #Argentina, o #Irã e a #Turquia.

Em tese, o Brasil deveria sair na frente na disputa com outras subpotências regionais, por ser membro do BRICS desde 2009 e por ter tido um papel central na concepção e na constituição do grupo. Esta condição tenderia a garantir ao País melhor articulação com o centro decisório do novo e poderoso polo BRICS, que vem reconquistando posições até em inovações capazes de impactar a geopolítica, como o 5G nas telecomunicações.

Por ora, é difícil qualificar a extensão desta nova ordem marcada pela guerra na Ucrânia, a virada estratégica da Rússia em direção à Eurásia e a consequente reorganização, em curso, do BRICS e da multipolaridade. Mas, fato é que as brechas na unipolaridade estadunidense se abriram, e que os países que as ocuparem o quanto antes garantirão espaços privilegiados no jogo de poder global nas próximas décadas.

 

EUA: fraturas internas e o dólar contestado

 

No outro lado do espectro de poder, chama a atenção a intrincada situação interna aos EUA, a mais poderosa nação do planeta. A respeito dessa encruzilhada, conversei com um velho senador americano que há 60 anos milita no Partido Democrata, que se reivindica "de esquerda" e que em 1960 integrou a coordenação de campanha à Presidência dos EUA de John Fitzgerald Kennedy.

Na avaliação de Rodger Randle, que aos 79 anos trabalha no Center for Studies in Democracy and Culture da Universidade de Oklahoma, ninguém pode antever no que resultará a extrema polarização vivida pela sociedade estadunidense. Segundo ele, todas as hipóteses devem ser consideradas, inclusive a da guerra interna (ele não chama de Guerra Civil por uma questão conceitual) de vizinhos com posições antagônicas e armados até os dentes.

A possibilidade de fragmentação política e até institucional dos EUA acontece simultaneamente ao desafio à antiga primazia do dólar como meio de troca, meio de garantia de reserva e expressão de uma hegemonia global os EUA. Quem avalia, cheio de dedos, é o Fundo Monetário Internacional (FMI) no documento A Erosão Furtiva do Domínio do dólar: Diversificadores Ativos e a Ascensão do Moedas de Reserva Não-Tradicionais (The Stealth Erosion of Dollar Dominance: Active Diversifiers and the Rise of Nontraditional Reserve Currencies), divulgado agora em março:

"A tendência mais notável nas últimas décadas tem sido o aumento das moedas de reserva não tradicionais - as moedas de países sem a escala econômica e o volume das transações transfronteiriças que distinguiram os emissores tradicionais de moedas de reserva. Historicamente, o domínio internacional do dólar e, em menor grau, do euro, da libra esterlina e do iene, foi apoiado pelo facto de existirem mercados bem organizados entre muitas moedas locais e apenas as Quatro Grandes moedas. (...) Tudo isto sugere que se o domínio do dólar chegar ao fim (um cenário, não uma previsão), então o dólar poderia ser abatido não pelos principais rivais do dólar, mas por um amplo grupo de moedas alternativas".

Nesta recomposição global, surge a dúvida natural: qual será a posição do Brasil, inclusive com possível vitória de Lula nas eleições de outubro?

 

O BRICS 5G e as incertezas sobre aposição do Brasil

 

Ainda não é possível saber a extensão dos acordos de convivência e sobrevivência de Lula com o tucano de coração Geraldo Alckmin (PSB). Provável candidato a vice na chapa do petista em outubro, esse Alckmin de hoje é aquele mesmo comandante-em-chefe do massacre de Pinheirinho (2012) e golpista (2016).

Não é possível descobrir se existem mais acordos de Lula, mas o que se verifica são reiteradas bênçãos dos tucanos José Serra e Aloysio Nunes (ex-Ministros das Relações Exteriores em governos pró-EUA) a mais um insólito casamento político de Lula.

Mas perceptível é a (incontornável?) contradição entre aquele Lula - em cujo segundo governo o BRICS foi criado (2009) - e este de agora, que se alia à sua antítese pró-EUA.

Justo quando o momento histórico exige uma decisiva tomada de posição quanto ao novo polo de poder que está rapidamente se formando em torno do BRICS 5G.

Afinal, recorde-se: a inserção subalterna do Brasil no sistema internacional é a marca indelével dos governos do PSDB (partido de Alckmin até há 15 minutos) com Fernando Henrique Cardoso (1995/03) e de quando os tucanos meteram o bico no Ministério das Relações Internacionais - com Celso Lafer (1992), o próprio FHC (1992/93), Serra (2016/17) e Nunes (2017/18).

Da entrega da Vale do Rio Doce e da Embratel e as vendas das empresas estaduais de energia e de saneamento à adoção do câmbio fixo, do superávit primário, da liberdade de voo para os capitais e a independência de fato do Banco Central, os tucanos nunca renegaram a alma neoliberal nem desperdiçaram uma só oportunidade de protagonizar a vexaminosa e contente vassalagem explícita aos EUA, como preconizada pelo Consenso de Washington.

Por isso se justifica a dúvida: qual Lula prevalecerá a partir de 1º de janeiro de 2023, em caso de vitória em outubro?

Afinal, com Celso Amorim como Chanceler (2003/11) e Ministro da Defesa (2011/15) nas gestões petistas, a diplomacia brasileira caminhou no sentido oposto ao dos tucanos. Na América do Sul, durante a gestão de Amorim, participou da criação da Unasul - União das Nações Sul-Americanas (2004), do Banco do Sul (2007), do Conselho de Defesa da América do Sul (2008) e da Celac - Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (2010).

No front global, o Brasil ousou intermediar, juntamente com a Turquia, um acordo nuclear com o Irã (2010) e ajudou a criar o Novo Banco de Desenvolvimento (2013), no âmbito do BRICS, para fugir da insuperável hegemonia de EUA e UE no Banco Mundial e FMI, e estruturar a arquitetura financeira mundial em termos menos desiguais.

Em 2022, entretanto, com o planeta dando cambalhotas geopolíticas, não se sabe a posição que tomará o Brasil, porque o país foi deliberadamente enfraquecido pela aliança entre militares historicamente entreguistas; um mercado que ganha rios de dinheiro com o presidente fascista e a malta hidrófoba de ratos magros que assalta o erário empunhando moralismos, Bíblias e crucifixos.

De Bolsonaro, o nada é tudo que se pode esperar. Mas Lula, caso vença em outubro, poderia conduzir a Nação às primeiras posições do globo. Ocorre que o petista, a continuar acompanhado de gente que sempre vestiu a camisa do adversário, dificilmente conseguiria cumprir mais essa tarefa histórica que se lhe apresenta.

A ambiguidade cobra seu preço.

 

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