04 Novembro 2019
Michael Seewald, teólogo dogmático de Münster, fala sobre decisões equivocadas, doutrinas corretas e fundamentalismo na Igreja.
A entrevista é de Hartmut Meesmann, publicada por Publik-Forum, 04-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Senhor Seewald, muitos católicos lamentam a falta de um grande bloco de reformas. O que é particularmente urgente, na sua opinião?
A Igreja deve estar atenta para evitar subestimar os requisitos exigidos hoje para uma comunidade boa e justa. Se, por exemplo, ensina oficialmente que mulheres e homens têm igual dignidade, mas não direitos iguais, isso para a maioria dos católicos não é mais aceitável. Contradiz os padrões sociais que praticam e exigem cotidianamente. Dizer que na Igreja as coisas devem seguir um caminho totalmente diferente, porque sua ordem deriva de Deus, é um argumento fraco. Por que razão, dizendo isso de maneira escolástica, a ordem natural e a ordem da redenção deveriam se contradizer a ponto de a equiparação das mulheres ser algo bom no âmbito secular, mas impossível no âmbito eclesial?
Um segundo ponto: a Igreja precisa de uma ética das relações, não apenas de uma moral sexual. O casamento como sacramento tem uma importância particular. No entanto, existem maneiras de viver juntos que não assumem a forma de casamento - ou porque os parceiros não o desejam ou porque a Igreja proíbe a eles o casamento. É o que acontece, por exemplo, para casais do mesmo sexo. Também em tais uniões podem ser vivenciados muitos valores aos quais a Igreja atribui grande importância. E isso, a Igreja deveria reconhecê-lo. Frequentemente se justifica com a referência à natureza, a posição assumida em relação aos papéis sexuais e à homossexualidade. Argumenta-se que da natureza se deveria deduzir o que é natural e desejado por Deus. A teologia católica não pode renunciar totalmente ao conceito de natureza. Mas deveríamos estar cientes que a natureza é acessível a nós apenas em uma forma cultural e socialmente caracterizada, e que, portanto, naquilo que nós percebemos como natureza, há sempre muita cultura.
Você está pedindo reformas eclesiais, mas ao mesmo tempo é cético quanto à possibilidade de que sejam realizadas.
O atual debate sobre as reformas se move hoje em um espaço teologicamente estreito. Isso também se aplica ao caminho sinodal. A recente intervenção da cúria romana tenta definir as regras do jogo desse caminho, regras que são parte do problema, não da solução. Seria preciso, ao invés disso, coragem. Já não basta mais distribuir placebos dogmáticos que por décadas foram os remédios escolhidos pelo magistério. Se a maioria dos bispos alemães mais uma vez se deixar intimidar por uma pequena minoria em suas fileiras, esse caminho se revelará um desastre. E que isso aconteça é bastante possível.
Você gostaria que a Igreja reconhecesse as conquistas do Iluminismo. Mas o papa e os bispos continuam reivindicando o direito de prescrever aos fiéis o que e como devem ou não devem acreditar.
Mas isso é cada vez menos bem-sucedido. Numa sociedade livre, à Igreja não resta que apresentar sua fé com humildade e boas argumentações. Não terá sucesso se continuar em rota de colisão com a concepção de vida da maioria dos contemporâneos. Naturalmente, não deve ceder ao que é desdenhosamente chamado de "espírito do tempo". Mas os cristãos devem provar quais mudanças podem assumir para que o evangelho possa ganhar credibilidade no mundo de hoje. Um cardeal que também é um grande teólogo escreveu para mim: depois de ter superado o fundamentalismo bíblico, a Igreja deve agora deixar para trás o fundamentalismo magisterial. Acho que é uma afirmação muito sábia. Se nós lêssemos a Bíblia de maneira literal sem levar em conta o contexto dos vários momentos em que foi escrita e sem considerar as tensões internas que a caracterizam, nenhuma pessoa razoável poderia mais levá-la a sério. O magistério não é a Bíblia. Mas até os textos magisteriais nasceram de determinadas situações, comentam-se uns aos outros e não raramente também se contradizem. Por que não deveríamos poder continuar essa história viva? Tenho a impressão de que, para a defesa de alguma posição magisterial fundamentalista, não se trate apenas de teologia, mas de vontade de poder.
O papa e os bispos deveriam limitar seus poderes de vontade própria?
Já seria um progresso se fosse admitido que na Igreja não existe apenas serviço desinteressado, mas que é também uma questão de poder. Então é preciso perguntar quais organismos têm poder sobre quem e como tais organismos podem ser controlados.
O que os líderes da Igreja deveriam aprender?
Não apenas os líderes, mas todos nós deveríamos desenvolver a consciência de que a Igreja organizada como uma oligarquia magisterial não tem nenhum futuro. A tragédia da situação está no fato de que nos últimos sessenta anos experimentamos fortes mudanças na teologia e na prática da fé, mas que a arquitetura magisterial da Igreja, com sua fixidez de autoridade, permaneceu inalterada. João Paulo II reforçou ainda mais a reivindicação de autoridade ... Até 1992, era claro que o Papa estava ligado à revelação no que ele ensina de maneira dogmática. O catecismo da Igreja Católica de 1992 elimina esse vínculo e dá ao magistério a possibilidade de definir dogma até mesmo o que não é revelado, mas do que se afirma que, de alguma forma, depende da revelação. Esse é um grande aumento de autoridade. O magistério se torna produtor de fé em vez de ser sua testemunha.
Em seu livro "Dogma im Wandel" [dogma em transformação], você argumenta que o ensinamento da Igreja pode mudar radicalmente. Como é possível, quando se fala que se trata de verdades eternas?
Existem pelo menos três estratégias da Igreja em relação às mudanças de seu ensinamento. A primeira é a autocorreção claramente expressa. O papa Pio XII, por exemplo, mudou forma e matéria do sacramento da ordem. Parece pouco espetacular, mas corresponde a uma revolução teológico-sacramental.
A segunda estratégia é o esquecimento. Livramo-nos de um ensinamento que se mostrou equivocado simplesmente esquecendo-o. É o caso, por exemplo, do monogenismo, isto é, da doutrina segundo a qual todos os seres humanos descendem biologicamente de Adão e Eva.
A terceira maneira de desenvolver a doutrina eu a chamo de "dissimulação da inovação". Ensina-se algo diferente, mas essa correção não é admitida, mas se faz de conta que sempre se ensinou o que apenas recentemente está sendo ensinado. Vamos pensar, por exemplo, na posição atual da Igreja em relação à liberdade de religião e de consciência. Encontrou essa posição apenas no Concílio Vaticano II, mas hoje dá a impressão de que sem a Igreja não possa haver democracia e liberdade.
Quando se chega a uma correção do ensinamento da fé?
Quando a Igreja constata que houve desenvolvimentos fora dela, é preciso perguntar: o que se tornou evidente ali, está mais em conformidade com o evangelho do que foi ensinado até agora? O Concílio levantou essa questão. Assim, por exemplo, no caso da liberdade de religião e de consciência, pode-se falar, usando uma expressão de Böckenförde, de uma virada copernicana. Pelo menos para o exterior. No seu interno, a Igreja até hoje não aceita realmente a liberdade de consciência.
Em que pode se basear como teólogo quando pede transformações?
Houve argumentos que levaram a determinadas reformas na história da teologia. Mas, às vezes, foi a pressão social e política sobre a Igreja a ser tão forte que foi preciso ceder.
Atualmente, existe uma forte pressão para o pedido de ordenação de mulheres. A proibição vacila?
Não, a proibição não vacila. Mas a decisão magisterial de João Paulo II não está isenta de problemas, que continuarão sendo discutidos. A decisão afirma primeiramente a necessidade de preservar o que existe desde sempre. Ela, porém, surge misteriosamente de uma arquitetura magisterial que não tem nem trinta anos, ou seja, da já mencionada extensão da infalibilidade do papa ao âmbito externo à revelação. Essa é uma mudança que não está em sintonia nem com o Vaticano I nem com o Vaticano II. Estou convencido de que, com essa construção introduzida exclusivamente para excluir a ordenação feminina, João Paulo II tenha prejudicado a Igreja. O que Paulo VI fez com a Humanae vitae, ou seja, que a autoridade do magistério em questões de moral não é mais levada a sério pela maioria dos católicos, João Paulo II conseguiu fazê-lo com a Ordinatio sacerdotalis no âmbito da doutrina de fé. Mas, por enquanto, nada vai mudar.
Você duvida até de que exista o chamado "depositum fidei" imutável, no qual nem mesmo uma vírgula pede ser alterada.
A fé é um tesouro do qual coisas antigas e novas podem ser extraídas. No entanto, que exista um "depositum fidei" que possa simplesmente ser transmitido através dos tempos como um pacote bem fechado, o considero uma afirmação enganosa. O teólogo evangélico Gerhard Ebeling afirmou justamente: o catolicismo é marcado por uma dupla tendência, um conservadorismo radical e, ao mesmo tempo, um evolucionismo radical. Que se sustentam entre si. A Igreja faz grandes esforços inovadores para dar a impressão de preservar apenas aquilo que sempre foi assim. Mas a tradição não é simplesmente o que sempre foi assim. A tradição, ao contrário, é o que do passado permanece significativo para o presente. E em tempos diferentes, isso foi diferente. Ou seja: presentes diferentes produzem tradições diferentes. É por isso que o argumento da tradição deve ser usado com cuidado.
O que fala aos grupos reformistas que esperam uma renovação que derive de um retorno às origens, isto é, às estruturas das primeiras comunidades cristãs?
Não dou nenhum peso a esse romantismo histórico. Quanto mais eu estudo a história dos dogmas, mais me parece claro que orientações de comportamento não podem ser extraídas da história. Seria um curto-circuito no qual caem os círculos conservadores, assim como os grupos progressistas. A Igreja deve conhecer sua história e agir historicamente informada. Mas a história não nos subtrai da necessidade de tomar decisões para o hoje.
É verdade que Roma queria impedir a publicação de seu livro "Dogma im Wandel"?
A Constituição, à qual até mesmo a Igreja Católica na Alemanha deve se ater, garante a professores de universidades estatais a liberdade de pesquisa e de ensino. Portanto, não podem me impedir de publicar um livro.
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“Agora seria preciso coragem”. Entrevista com Michael Seewald - Instituto Humanitas Unisinos - IHU