28 Mai 2021
"Chesed e din, ou seja, amor pela justiça - como eros e ágape - são judaicamente inseparáveis, aliás, exigem e reforçam-se mutuamente, evitando que o particular sufoque o universal ou o sentimento prejudique a razão", escreve o filósofo italiano Massimo Giuliani, professor da Universidade de Trento, em artigo publicado por Avvenire, 27-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
No início havia o mal-entendido, talvez gerado pelo arqui-herético Marcião já no II século da era cristã. O equívoco de que o Deus da Bíblia Hebraica fosse apenas um demiurgo responsável pelo mal no mundo, obcecado pela justiça na forma de castigo, e que, em vez disso, o Deus "mais alto", o do Novo Testamento, fosse todo amor e perdão, e que entre os dois só pudesse haver inimizade e conflito.
Grande parte da difícil relação entre judeus e cristãos dependeria dessa suposta contraposição, tão fácil de formular quanto falsa de demonstrar. Falsa, obviamente, já a partir dos textos do Antigo Testamento onde o Criador tem, simultaneamente, os traços mais severos do pai (ou rei) e as maneiras afetuosas e doces da mãe, e onde a metáfora mais usada para as relações entre Deus e o seu povo continua a ser aquela dos esposos, até mesmo dos amantes, como no poderoso poema do Cântico dos Cânticos.
No entanto, o estereótipo persistiu e sobreviveu em não pouca retórica religiosa e, consequentemente, até mesmo em muitos intelectuais leigos. Com essa premissa em mente, a filósofa Catherine Chalier, a mais conhecida dos intérpretes judeus de Emmanuel Lévinas, deu uma série de palestras no Institut Catholique de Paris, para a cadeira dedicada a Étienne Gilson, na tentativa de explicar quanto o amor, em todas as suas dimensões, está presente como mandamento e como valor nas escrituras sagradas do Judaísmo: da Torá aos profetas, do Talmud aos filósofos judeus medievais, aos grandes mestres do chassidismo, palavra esta que vem precisamente de chesed, que em hebraico significa amor e misericórdia.
L’amore nell’ebraismo. Filosofia e spiritualità ebraiche
Essas palestras agora são reunidas em um volume intitulado L’amore nell’ebraismo. Filosofia e spiritualità ebraiche (O amor no judaísmo. Filosofia e espiritualidade hebraicas, em tradução livre, Giuntina, p. 300, € 18,00), um livro que evita os perigos especulares da apologia e da presunção, e consegue dialogar, do ponto de vista judaico, com toda a história do pensamento cristão. Mas como explicar, de forma simples e convincente, que a controvérsia entre a Lei e o amor é falsa e tendenciosa? Que todo preceito judaico é sempre animado pelo amor a Deus e a todas as outras criaturas vivas? Que não há dicotomia entre as instâncias de verdadeira justiça e uma disposição para o perdão autêntico, mas apenas uma exigente coimplicação? E como narrar a beleza da integração entre Eros e ágape, que nos textos bíblicos continuamente se entrelaçam, se temperam e se exaltam, sem nenhuma forma de sexofobia ou dualismo maniqueísta? Forte da linguagem paradoxal e às vezes hiperbólica de seu mentor Lévinas, Catherine Chalier enfrenta um estereótipo após o outro e mergulha o leitor e a leitora dessas páginas no oceano de reflexão rabínica sobre o tema do amor de Deus (onde o genitivo é tanto subjetivo como objetivo) e do dever de amar o próximo e o estrangeiro como qualquer um que pareça vulnerável na escala social e até mesmo no horizonte de toda a criação.
Quem se empenhar na labuta dessa leitura, ou melhor, desse estudo das fontes, ficará surpreendido com o grande número de questões com que procede a estudiosa, como se a graça divina e o amor humano permanecessem, essencialmente, não apenas um dom que contempla quem lhe é sujeito sempre despreparado e até mesmo inadequado para responder, mas acima de tudo um mistério, um enigma a ser questionado e sobre o qual as perguntas se sobrepõem às respostas possíveis. Também não faltam questões provocativas aqui e ali, como aquela sobre a cegueira cristã que por séculos não conseguiu perceber como "a perseverança judaica na fé dos pais e na observância dos preceitos" - chamada com desprezo de obstinação - nada mais era que esse amor, um amor radical por Deus e sua Torá ou, como o próprio Lévinas ousadamente escreveu, "um amor pela Torá mais do que pelo próprio Deus". Este mal-entendido "fragilizou tragicamente o amor cristão aos olhos dos judeus", diz Chalier, que imediatamente estende a questão também à forma como abordamos e julgamos as experiências religiosas de outros povos, as culturas e as religiões diferentes da nossa. Nossos pensamentos se voltam para William James e seu texto pioneiro, não citado aqui, sobre a "variedade da experiência religiosa".
Outro estereótipo frequente é aquele que contrapõe o amor com o temor de Deus, como se não se tratasse de dois aspectos relacionados e como se esse traço típico da espiritualidade bíblica fosse repentinamente absorvido e dissolvido no mandamento evangélico de “não temer”. Com paciência, Chalier mostra que na tradição bíblico-rabínica ter temor não é sinônimo de ter medo ou sentir terror (tal aspecto da Bíblia muitas vezes parece silenciado pelos teólogos cristãos); ao contrário, o temor está sempre associado à consciência da incomensurabilidade do divino e expressa a consequente consciência dos nossos limites cognitivos e afetivos, dos nossos erros conceituais, da nossa fragilidade moral.
Jogar fora o temor de Deus, nesse sentido, impede não tanto a compreensão da rica antropologia dos textos sagrados quanto as nossas tentativas de "conhecer a Deus". E quem mais do que Maimônides colocou esse conhecimento no centro de sua espiritualidade, bem como da filosofia do mundo judaico? A teologia negativa do maior pensador judeu da Idade Média visava, de fato, purificar a nossa imaginação de antropomorfismos enganosos, rigorosamente nos lembrando que até mesmo a expressão "Deus é bom" projeta sobre Deus a nossa experiência de bondade. Isso não nos impede de saber que "Deus ama o mundo", mas liberta o amor divino de nossa pretensão de fixá-lo em categorias humanas.
Para Maimônides, a Bíblia ensina que “o conhecimento e o amor são inseparáveis, pelo menos o verdadeiro conhecimento, aquele que está livre da escória da ignorância e dos preconceitos sobre Deus”. Pouco conhecimento é igual a pouco amor, esse é o traço comum a toda espiritualidade judaica, afirma Chalier em várias ocasiões, porque só se pode amar (não apenas humanamente falando), o que se conhece. Daí o imperativo judaico de estudar. "Vá e estude" é o aviso com o qual Hillel, o ancião, no Talmud, acompanha a regra áurea, o preceito de não causar mal aos outros. De fato, como se pode amar o Criador, diz toda a tradição rabínica subsequente, se não se reconhece, por negligência no estudo, o valor de sua extraordinária criação?
Mas as páginas mais fascinantes são aquelas que iluminam a necessidade de temperar o próprio amor com um senso da justiça, sem o qual o amor corre o risco de se tornar "patético" (no sentido levinasiano do termo), centrado no nosso pathos mais do que no rosto alheio, rodando sobre a nossa capacidade de empatia que, no entanto, fica circunscrita à relação imediata e perde de vista aquele "terceiro" que o amor não vê, que fica fora da perspectiva afetiva.
A Tzedaqà é a justiça que estende o amor para além do horizonte dos amantes e estimula o amor a se abrir, a não se tornar patético ou até mesmo patológico. Chesed e din, ou seja, amor pela justiça - como eros e ágape - são judaicamente inseparáveis, aliás, exigem e reforçam-se mutuamente, evitando que o particular sufoque o universal ou o sentimento prejudique a razão. Ora, pode esse amor justo e essa justiça rica em pietas ir tão longe até o sacrifício de si? No último capítulo, a filósofa judia francesa também aborda essa questão, mostrando como a tradição rabínica a conhece bem, mas não tem pressa em dar respostas. Além disso, o versículo do Cântico reza: "Forte como a morte é o amor". Se for mais forte (ou não), nem sempre depende da escolha humana.
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Eros e ágape declinados em hebraico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU