13 Janeiro 2015
"Sabemo-lo bem e não podemos negá-lo: Cristo Jesus nos une e nos separa. Nos une como judeu, profeta em obras e palavras; mas nos separa como Messias, filho de Deus, único mediador de nossa salvação", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado pelo jornal Avvenire, 11-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
"João Paulo II – em sua pessoal atenção com os judeus e com o intento de reparar culpas das quais não eram estranhas as responsabilidades também da parte dos cristãos – cunhou uma fórmula muito eficaz: “Os judeus são nossos irmãos mais velhos!”, recorda o monge. E acrescenta: "Seria mais exato dizer que somos ‘irmãos gêmeos’.
Eis o artigo.
Nostra aetate, na parte dedicada ao judaísmo, deu indicações autorizadas para a reflexão comum de judeus e cristãos e ofereceu uma inspiração criativa para gestos que neste meio século tem não só confirmado o dado conciliar, mas lhe permitiram explicitar todas as suas potencialidades em caminhos jamais percorridos, e inesperados. Devemos reconhecer uma boa recepção do ditado conciliar na Igreja, não obstante, ainda se podem denunciar inadimplências em nível de periferias eclesiais: as mesmas autoridades das igrejas são com frequência envolvidas em encontros, diálogos, iniciativas que assinalam a absoluta novidade do comportamento dos cristãos perante os judeus.
O parágrafo 4 da Nostra Aetate, dedicado ao mistério de Israel, havia ousado afirmar com força que “há um elo espiritual entre o povo do Novo Testamento e a estirpe de Abraão”. A Igreja, ramo de oliveira selvagem inserido no tronco santo de Israel, confessa o imprescindível elo com o povo das promessas e das bênçãos e ao mesmo tempo se sente colocada diante do mistério da permanência de Israel na história ao lado da Igreja, sinal este do ‘ainda-não’ realizado desígnio de salvação da parte de Deus. Entre Israel e a Igreja permanece uma tensão que deve ser fecunda: aquela do zelo, do ciúme em vista da unidade esperada por Deus (cf. Ro 11,14).
O caminho para uma confiante, transparente prática do ecumenismo tinha assim sido aberto pelo Concílio, um caminho específico, não assimilável ao diálogo inter-religioso, porque o elo entre Israel e a Igreja não está no mesmo nível do elo com os outros fies.
Mas, em que consiste este elo? João Paulo II – em sua pessoal atenção com os judeus e com o intento de reparar culpas das quais não eram estranhas as responsabilidades também da parte dos cristãos – cunhou uma fórmula muito eficaz: “Os judeus são nossos irmãos mais velhos!”.
A expressão foi bem acolhida e ressoou em cada diálogo judaico-cristão, mas teológica e historicamente os atuais judeus não são irmãos mais velhos, mas estão antes de nós ou numa posição de excelência em relação a nós: é indispensável, embora bem outra coisa do que simples saber ler a história humana e a história da salvação, captando, judeus e cristãos juntos, uma derivação de um único tronco (o que por nós é chamado Antigo Testamento), uma derivação que não dá precedência de um sobre o outro. Seria mais exato dizer que somos ‘irmãos gêmeos’.
É de fato na interpretação do Antigo Testamento que se formaram – numa época de pluralismo de formas e de pertencimentos: saduceus, essênios, fariseus... duas comunidades separadas e diversas, embora ambas se referindo aos mesmos textos e à mesma história da salvação. Como anotava o cardeal Ratzinger, “fé cristã e judaísmo são dois modos de apropriar-se das Escrituras de Israel que, em definitivo, dependem da posição assumida diante de Jesus”. O Antigo Testamento abre ambos os caminhos, e se a interpretação cristã vê realizarem-se em Jesus Cristo as profecias do Antigo Testamento porque agora o centro da fé é ele, o Messias e Senhor, a interpretação judaica colocou no centro a Tora que, com os comentários rabínicos de Mishna e Talmude, é amada e custodiada “mais do que o próprio Deus”,
Eis porque devemos dizer que os dois modos de fé são irmãos gêmeos, antes do que definir os judeus como “irmãos mais velhos”, expressão que, aliás, remete às vivências do Antigo Testamento, no qual o irmão mais novo sempre tira o calçado ao mais velho, aspecto não sei quanto agradável aos judeus. São Paulo, na carta aos romanos, dirá em tom profético: “Se sua recusa (de Cristo) marcou a reconciliação com o mundo, qual jamais poderá ser sua remissão senão uma ressurreição dos mortos?” (Ro 11,15).
Eis porque hoje a Igreja não organiza nenhuma missão para os judeus, como o tentou e praticou nos séculos passados, chegando até a usar a tortura, a perseguição e a imposição: os judeus já são convertidos dos ídolos para o Deus vivo e seu ingresso na igreja, como para Paulo em Damasco, jamais será ‘conversão’, mas somente ‘revelação’ de Cristo (Cf. At. 22,6 ss.; Gal. 1,16).
Diálogo sim – e convicto e necessário – mas nenhuma ação de proselitismo com os judeus: esta é hoje a consciência e a vontade da Igreja.
Após a Nostra Aetate houve muitos gestos e muitas palavras dos papas, sobretudo de João Paulo II e, em continuidade com ele, de Bento XVI. Agora, com o advento do Papa Francisco – que na Argentina já havia colocado como sua grande tarefa pastoral o encontro com a comunidade judaica – o diálogo tomou novo impulso e se revigorou de esperanças.
Sim, muito mudou desde os anos do pós-guerra – quando éramos convidados a desconfiar dos ‘judeus’, presença forte e eloqüente no meu Monferrato natal até hoje, quando também a possibilidade de viagens aos Lugares santos constitui uma forte oportunidade de conhecer o povo judaico, suas preces e seus costumes, sua cultura... Talvez nas igrejas locais – salvo casos como Milão, graças ao episcopado do cardeal Martini, - não há na pastoral e na catequese uma particular atenção a este tema e a esta esperança, mas é também verdade que cinquenta anos sobre dois mil assinalados pelo anti-judaísmo são uma breve estação, um breve período que pode ser somente de semeação e não de crescimento e de colheita.
Irmãos gêmeos, com igual direito a apelar às Escrituras do povo de Israel, irmãos que confessam o mesmo Deus e estão à espera do Messias, aquele Messias que os cristãos já reconhecem em Jesus Cristo, aquele Messias que para os judeus ainda é velado, mas que é invocado na história como salvação definitiva do mundo. Também nós cristãos esperamos como eles “que possam chegar os tempos da consolação e o Senhor mande aquele que havia destinado [aos judeus] como Messias, isto é, Jesus” (At. 3, 20).
Esta ‘pedra milenar’ da espera messiânica nos coloca ambos como herdeiros do Antigo Testamento e nos põe uns junto aos outros numa situação particularíssima: Israel não faz parte das diversas religiões do mundo, mas é junto a nós cristãos como uma presença fraterna que nos intriga, a qual não podemos deixar de lado e que devemos considerar (olhando não a todos os judeus, mas àqueles que crêem, cônscios de estar em aliança com Deus e de ser seus testemunhos no mundo, o “Israel de Deus” de que fala São Paulo) ligados a nós por uma relação constitutiva na qual lhes é solicitada a observância da Lei e a missão de testemunhar o Deus único, esperando o seu Dia.
Em relação a eles compete a nós um testemunho, mas nenhum proselitismo, porque, como disse João Paulo II em Mainz em 1982, “a antiga aliança jamais foi revogada por Deus”. Sim, junto a nós há um irmão, povo de Deus, Israel “ao qual pertencem as promessas, as bênçãos, a glória, as alianças... e do qual provém Cristo” (Ro 9,4 ss.). Sabemo-lo bem e não podemos negá-lo: Cristo Jesus nos une e nos separa. Nos une como judeu, profeta em obras e palavras; mas nos separa como Messias, filho de Deus, único mediador de nossa salvação.
Não existe, portanto, por ora uma só missão de Israel e da Igreja perante o mundo: permanecem duas e diversas, na espera que se cumpram “os tempos dos pagãos”, os tempos da evangelização, e que Deus conduza à unidade o que por causa do pecado foi dividido.
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Judeus e cristãos irmãos gêmeos. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU